30 de mai. de 2011

Tragédia paraense

Primeiro, eles denunciaram madeireiros ilegais. Depois, foram ameaçados. Por fim, mortos. E ainda levaram vaias dos políticos

 

José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo da Silva, líderes do Projeto Agroextrativista Praialta-Piranheira, em Nova Ipixuna, no Pará, foram emboscados em uma estrada e executados com tiros na cabeça na última terça. Por denunciarem a ação de madeireiros ilegais, sofriam constantes ameaças e intimidações. Zé Cláudio ainda teve uma orelha decepada e levada pelos seus assassinos, provavelmente para mostrar aos mandantes que o serviço foi realizado com sucesso. Naquela mesma tarde, a notícia do assassinato foi lida no plenário da Câmara, que estava se preparando para transformar o atual Código Florestal em embrulho de peixe. Ouviu-se, então, uma vaia vinda das galerias e da garganta de deputados da bancada ruralista ali presentes.
 
Rodolfo Oliveira/AG Pára
Rodolfo Oliveira/AG Pára
Velório do casal assassinado no Pará


Que a vida dos mais pobres não vale o esterco que o gado enterra na Amazônia, isso é público e notório. Ainda mais quando eles, através de sua organização, conseguem mostrar que é possível crescer economicamente e ser sustentável. Ou seja, quando provam que dá para respeitar leis ambientais, garantir renda própria e produzir alimentos para a sociedade. E, se isso funciona, por que mudar as leis?


Mas quando o Congresso é usado como palco para tripudiar sobre a morte de pessoas que defendiam o respeito à vida e ao ambiente é porque inauguramos uma nova era. O pudor que aparentemente demonstravam certos representantes políticos de produtores rurais na época do massacre de 19 trabalhadores rurais em Eldorado dos Carajás, em 1996, da chacina de quatro funcionários que fiscalizavam fazendas na região de Unaí (MG), em 2004, e da execução da irmã Dorothy Stang, em 2005, não existe mais. O pessoal do "progresso" a todo custo resolveu sair do armário com sangue nos olhos. Talvez por se sentirem fortalecidos pelo seu peso na economia, talvez pelas alianças políticas que fizeram.
 

Jogam no nosso colo uma falsa escolha: o País tem que optar entre passar fome ou flexibilizar a legislação ambiental, não ser tão severo com quem usou escravos e evitar a demarcação de territórios indígenas a fim de garantir sua soberania alimentar.


Que tal uma terceira? Uma que inclua o respeito às leis ambientais sem chance para anistias que criem a sensação de impunidade do "desmata aí, que depois a gente perdoa". Que passe pela regularização fundiária geral, confiscando as terras griladas, e a realização de uma reforma agrária, com a garantia de que os recursos emprestados pelos governos às pequenas propriedades - verdadeiras responsáveis por garantir o alimento na mesa dos brasileiros - sejam, pelo menos, da mesma monta que os das grandes. Por preservar os direitos das populações tradicionais e de projetos extrativistas, cujas áreas possuem as mais altas taxas de conservação do País.
 

Isso inclui alterar o padrão de consumo, uma vez que nós do Sul Maravilha comemos e bebemos a Amazônia, o Cerrado e o Pantanal. De onde você acha que vem o bife do seu churrasco de domingo ou o carvão usado na fabricação de ferro-gusa, matéria-prima do aço com o qual é feito o seu carro? Através de conexões por cadeias produtivas nos tornamos corresponsáveis pelos crimes cometidos a milhares de quilômetros. E, consequentemente, rasgar o Código Florestal torna-se fundamental para ajudar a mantermos nosso padrão de consumo intocado. A maior parte da madeira extraída da Amazônia não vira mesinha de centro na Europa, mas é utilizada na construção civil brasileira. E imagine que temos Copa do Mundo e Olimpíada pela frente, fora a demanda gigantesca exigida pelo Minha Casa, Minha Vida e pelas grandes obras do PAC. Ao fazer o papel que seria do Estado e lutar contra madeireiros, morreram Maria e Zé Cláudio.


Não estou defendendo que nos organizemos em comunidades isoladas e cultivemos juta para fiar nossas próprias roupas. Avançamos tecnologicamente e nos beneficiamos disso - por mais que esse "progresso" tenha sido doloroso. E é exatamente por isso, pelo acúmulo de conhecimento sobre o meio em que vivemos, que é lógico reformular a maneira como nos relacionamos com o mundo.
 

O debate sobre o meio ambiente surge como uma discussão sobre a qualidade de vida, não se tratando apenas do pobre ipê que ficou machucado e do coitado do bagre-cego-com-cabelo-moicano que vai ficar sem casinha, mas também dessa ideia de progresso (alta tecnologia aliada a uma postura consumista) que não consegue dar respostas satisfatórias à sociedade. Faz parte dessa discussão a busca por modelos alternativos de desenvolvimento humano. Que só serão efetivos caso diminuam nosso apetite por recursos naturais. E que não matem a população mais humilde que tenta, ao contrário de nós, viver em comunhão com seu meio, protegendo-o.


Apesar de instrutiva, a vaia da tarde de terça foi desnecessária. Pois, horas depois, a Câmara dos Deputados aprovou a revisão do Código Florestal e suas emendas, reduzindo a proteção ambiental e anistiando, na prática, quem desmatou além da conta. Lançaram, dessa forma, uma vaia ensurdecedora sobre os corpos dos dois.

Fonte:

LEONARDO SAKAMOTO É JORNALISTA, DOUTOR EM CIÊNCIA POLÍTICA, COORDENADOR DA ONG REPÓRTER BRASIL E MEMBRO DA COMISSÃO NACIONAL PARA A ERRADICAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO.

O Estado de S. Paulo, Aliás (29/05/11)

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Mais dois casos... não bastam Chico Mendes, assassinado com tiros de escopeta no peito na porta dos fundos de sua casa, quando saía de casa para tomar banho, em 22/12/88 e  a missionária americana Dorothy Stang, assassinada a tiros, em 12/02/2005.
 
"Não quero flores no meu enterro, pois sei que vão arrancá-las da floresta." 
(Chico Mendes)


"Não vou fugir e nem abandonar a luta desses agricultores que estão desprotegidos no meio da floresta. Eles têm o sagrado direito a uma vida melhor numa terra onde possam viver e produzir com dignidade sem devastar."
(Dorothy Stang)

 
Luciana
 

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