10 de mar. de 2013

Eutanásia: o que aprendi com a minha mãe



Meu pai, irmã e eu sentamos num restaurante chinês quase vazio, escolhendo nossos pratos, incapazes de evitar a discussão que nos levara ali: quando seria o momento de deixar mamãe morrer?
Tinha sido um dia exaustivo no hospital, esperando – rezando – por qualquer sinal de que minha mãe poderia emergir de seu coma. Três dias antes, ela havia sido internada por náuseas; teve uma tosse horrível e enfrentava problemas para manter os alimentos no estômago. Mas quando a enfermeira tentou introduzir uma sonda nasogástrica, seu coração parou. Ela precisou de ressuscitação cardiovascular por nove minutos. Antes de que eu voasse para Chicago, um ventilador já estava respirando por ela, e a medicação intravenosa mantinha a pressão arterial estável. Hora após hora, meu pai, minha irmã e eu tentamos falar com ela, tocando suas músicas favoritas, encorajando-a a apertar nossas mãos ou abrir os olhos.
Os médicos não podiam dizer exatamente o que havia de errado, mas o prognóstico era sombrio, e eles sugeriram removê-la do respirador. Assim, aquela noite de janeiro, nos dirigimos a um restaurante no subúrbio de Detroit para uma inevitável reunião familiar.
Meu pai e irmã olharam para mim em busca de meus pensamentos. Em nossa família, sou a referência para todos os assuntos médicos. Por 15 anos, trabalhei como repórter de saúde: no Dallas Morning News, no Los Angeles Times e agora na ProPublica. Como tenho uma noção relativamente boa do complexo sistema norte-americano de saúde, fui eu quem ajudou meus pais a definir planos de medicamentos do Medicare1, pesquisar novos diagnósticos e questionar médicos sobre os tratamentos recomendados.
Como em muitas situações anteriores, eu esperava ter algumas respostas. No entanto, os anos como repórter nunca me prepararam para este momento, essa decisão. De fato, eu comecei a questionar algumas das minhas suposições sobre o sistema de saúde.
Há muito observo, e algumas vezes escrevo, sobre as perversas batalhas políticas em torno dos cuidados de fim da vida. Como muitos jornalistas de saúde, reviro os olhos quando ouço frases como “painéis da morte”, usadas para descrever uma proposta apresentada em 2009 no Congresso, que teria permitido ao Medicare reembolsar médicos que aconselhassem pacientes sobre como decidir até que ponto levar certos tratamentos. A polêmica, levantada por políticos conservadores e apresentadores de programas de auditório, obrigou os autores do “Lei de Tratamentos Sustentáveis” a retirar essa cláusula antes de o projeto virar lei.
Política à parte, sempre considerei o alto custo dos cuidados de fim da vida um assunto digno de discussão. Cerca de um quarto dos pagamentos do Medicare são gastos com o último ano da vida, de acordo com recentes estimativas. E o grau de atenção oferecido a pacientes neste último ano – quantos médicos eles visitam, o número de internações hospitalares em UTIs – varia drasticamente entre os Estados e mesmo dentro deles, de acordo com o conceituado Atlas Dartmouth. Estudos mostram que o cuidado é constantemente inútil. Não sempre prolonga a vida, e não sempre reflete o que os pacientes querem.
Em artigo que escrevi para o Los Angeles Times, em 2005, citei a fala de um médico que disse: “Há sempre um tratamento a mais, há sempre mais um, ‘Por que não tentar?’. Mas temos que ser sensíveis aos objetivos daquele paciente, que não são estar internado, ligado a tubos, sem chance de realmente se recuperar”.
Isso fez muito sentido pra mim naquela época. Mas isso se aplicaria a minha mãe?
Sabíamos de seus desejos para o fim da vida: ela dissera a meu pai que não queria ser mantida viva de modo artificial, se não tivesse chances reais de se recuperar significativamente. Mas o que era uma chance real? O que era uma recuperação significativa? Como nós saberíamos se os médicos e enfermeiras estavam certos? Em minhas reportagens, eu nunca havia percebido quão pouco os custos do sistema de saúde importam para a família do paciente. Quando aconteceu com minha mãe, o que nos importava é que seríamos responsáveis por qualquer decisão que tomássemos. E não teríamos a chance de escolher duas vezes.
Quando minha mãe chegou à UTI, não havia dúvidas de que sua função cerebral era prreocupante. Nas horas após ser ressuscitada, ela teve um tipo de convulsões que podem ocorrer quando falta oxigênio no cérebro. Depois disso, permaneceu imóvel. Quando o neurologista espetou-a com o alfinete de segurança, ela não respondeu. Quando tocou suas córneas, elas não se moveram reflexivamente.
Comecei a consultar a literatura médica, como faço na condição de repórter. Não achei nada animador. Estudos mostram que após 72 horas de coma causado por falta de oxigênio, as chances de recuperação de um paciente são quase nulas. Pedi para minha parceira de redação, em Nova York, fazer uma pesquisa adicional. Ela tampouco encontrou algo que pudesse trazer muita esperança.
Mas minha mãe não poderia superar os prognósticos? Harriet Ornstein era uma mulher determinada. Tinha 70 anos e havia superado adversidades muitas vezes antes. Em 2002, antes de meu casamento, ela foi assaltada em um estacionamento e quebrou o nariz ao bater o rosto na calçada. Mas lá estava ela para me acompanhar até o altar – olhos negros cobertos por maquiagem. Ela tinha doença de Parkinson havia uma década, e em 2010 sofreu um traumatismo craniano, porque um carro atropelou-a quando descia uma rampa de deficientes na farmácia. Mamãe persistiu, continuando a reabilitação e trabalhando para levar uma vida mais normal possível. Ela não poderia lutar contra esta nova situação também?
Verdade seja dita, eu já estava um tanto cético diante das previsões médicas. No ano passado, o coração do meu pai parou e foram necessários mais de dez minutos em ressuscitação cardiovascular para reanimá-lo. Os médicos e enfermeiras disseram que uma recuperação neurológica completa era improvável. Perguntaram sobre suas opções para o fim da vida. Mamãe e eu ficamos até tarde falando sobre a vida sem ele e discutindo a logística de seu funeral. Mas, apesar de tudo, ele se recuperou. Regressou para casa em algumas semanas de volta a seu antigo eu. Apreciei o poder da medicina moderna, mas me questionei: por que todos tinham tanta certeza de que ele iria morrer?
Também pesava sobre mim outra história que escrevi para o Los Angeles Times, sobre um paciente cuja morte cerebral havia sido declarada erroneamente por dois médicos. A família estava sendo encorajada a interromper o uso dos aparelhos e autorizou a entrada de uma equipe de doação de órgãos. Mas o exame de uma supervisora de enfermagem descobriu que o homem, de 4t anos, mantinha o poder de tossir reflexivamente, além de mover um ligeiramente a cabeça, ambos sinais inconsistentes com morte cerebral. Um neurocirurgião confirmou suas descobertas.
Ninguém estava sugerindo que minha mãe estivesse em morte cerebral, mas as avaliações médicas não ofereceram nenhuma pista encorajante. E se elas estivessem erradas, também?
Durante o jantar no restaurante chinês, fizemos um pacto: não decidiríamos com pressa. Procuraríamos uma segunda opinião médica. Mas se os testes continuassem negativos – eu pediria para ler os relatórios clínicos –, nós interromperíamos os cuidados agressivos.
Uma neurologista recomendada por um conhecido da família chegou na manhã seguinte. Depois de realizar um minucioso exame, essa médica tampouco demonstrou otimismo, mas disse que dois exames adicionais poderiam ser feitos, se nós ainda tivéssemos dúvidas. Se mais testes podiam ser feitos, meu pai decidiu que deveríamos fazê-los. Minha irmã e eu concordamos.
Na manhã de sexta, o momento do teste final chegou. Recebemos más notícias. Em uma sala de conferências estéril do hospital, um neurologista definiu nossas opções: nós poderíamos transferir minha mãe para a unidade de cuidados paliativos e inserir-lhe tubos de alimentação. Ou poderíamos desconectar o ventilador.
Decidimos que era hora de honrar os desejos da minha mãe. Choramos enquanto as enfermeiras a desconectaram, naquela tarde. A equipe do hospital considerou improvável que respirasse sozinha, mas ela o fez por várias horas. Morreu em paz, em seus próprios termos, tarde da noite – com meu pai, minha irmã e eu a seu lado.
Não acho que alguém possa nunca se sentir confortável sobre tal decisão, e o fato de ser um repórter de saúde agravou minhas dúvidas. Estava plenamente confiante de que fizemos o que minha mãe queria. Mas uma semana depois, quando voltei a Nova York, com alguma distância emocional, eu me perguntava como nosso pensamento e comportamento enquadrava-se com o que eu havia escrito como repórter. Teríamos desperdiçado recursos, enquanto tentávamos decidir, por dois dias? Se cada família fizer o que fizemos, dois dias multiplicados por milhares de pacientes somam milhões de dólares.
Curioso sobre como os especialistas veriam isso, liguei para Elliott S. Fisher. Há muito tempo respeito-o, professor de medicina da Dartmouth e um líder do Atlas Dartmouth. O Atlas foi o primeiro a identificar McAllen, no Texas, tema de uma memorável reportagem de Atul Gawande, no New Yorker (em 2009) sobre os gastos aparentemente descontrolados com o Medicare.
Perguntei a Fisher se pensava que minha família havia desperdiçado dinheiro. “Não”, ele respondeu. Ele também não teria achado abusivo se decidíssemos manter minha mãe no ventilador por uma semana ou duas, ainda que minha descrição de seus exames e testes neurológicos fosse pessimista.
“Você nunca precisa se apressar para decidir”, ele me disse. “A preocupação central deve ser, sempre, tomar a decisão certa para o paciente e a família… Temos muito dinheiro, no sistema de saúde dos EUA, para ter certeza de que estamos apoiando as famílias na tomada de uma decisão com a qual elas possam sentir-se bem. Sou muito sensível a isso”.
“Muito dinheiro? Como isso se articula com sua opinião de que muito dinheiro é gasto em cuidados no final da vida?” Ele respondeu que sua preocupação é mais em situações em que os desejos de fim de vida não são conhecidos, e casos em que médicos empurram tratamentos para doenças terminais que são claramente inúteis e podem prolongar o sofrimento. “Eu não acho que o melhor cuidado possível significa sempre manter as pessoas vivas, ou fazer a quimioterapia mais agressiva”, disse ele, “quando as evidências mostram que não há virtualmente chance alguma de esse tratamento fazer diferença para o paciente”.
Deixei a conversa concordando com o raciocínio de Fisher, mas acreditando que é muito mais difícil na prática do que na teoria. Você pode conhecer os desejos de alguém e ainda estar confuso sobre o que é mais apropriado fazer.
As últimas semanas foram as mais difíceis da minha vida. Espero que o que eu aprendi me faça um jornalista melhor e mais compassivo. Acima de tudo, vou sempre lembrar que por trás do debate sobre os custos e cuidados de fim da vida, há famílias reais que lutam com decisões reais.

 Por 

Charles Ornstein é repórter sênior e presidente da Associação de Jornalistas da Saúde dos Estados Unidos.

1 Medicareé nome do sistema de seguros de saúde gerido pelo governo dos EUA, criado em 1965 e destinado a pessoas a partir de 65 anos, ou que preencham certos critérios de rendimento. Em geral, as pessoas podem receber a ajuda doMedicare se tiverem contribuído para o sistema durante pelo menos dez anos e residam permanentemente nos Estados Unidos. As pessoas de menos de 65 anos podem beneficiar-se do programa Medicare se forem portadores de alguma deficiência ou estiverem com doenças renais graves.

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