29 de ago. de 2014

Os chocolates, a metafísica e a patrulha contra os gordos



Quem assistiu ao filme Paraíso, de Mariana Chenillo, sabe o que o escritor Michael Pollan quer dizer quando analisa a diferença entre comer comida e comer nutrientes na sociedade atual. Meio drama, meio comédia, o filme produzido por Gael Garcia Bernal é um retrato bem acabado das ansiedades do nosso tempo. Conta a história de um casal que vive de fato no paraíso até resolver se mudar para a cidade grande e se deparar com uma espécie de pecado original. Até ali, um parece feito para o outro: são companheiros, saem para dançar, têm uma vida sexual ativa, compartilham os mesmos hábitos e gostos e chamam um ao outro de Gordo e Gorda.
Isso não parece ser um problema até conhecerem, em uma festa, os novos amigos da nova empresa de Alfredo (Andrés Almeida), um banco sediado na Cidade do México. No evento, Carmen (Daniela Rincón) se depara com outro tipo de etiqueta: as mulheres são magérrimas, usam sempre vestido escuro (o dela é azul), têm cabelos longos e lisos e cravam o chão com sapatos de salto agulha como se andassem sobre algodão. Ao entrar no banheiro, ela ouve a conversa entre duas colegas do marido, que juram ter sentido nojo ao ver o tamanho do casal. “Já imaginou os dois transando?”, diz uma, entre risos. A outra fulmina: eles parecem ter saído de um quadro de Fernando Botero.
Ao testemunhar o diálogo, Carmen descobre o horror. Passa a não sair mais de casa e desenvolve uma obsessão pelo próprio peso, alvo de fuxico e rejeição no novo círculo social. Mergulha assim em um mercado patrulheiro do peso, adepto de táticas motivacionais que transformam as metas de emagrecimento em uma questão moral. No mundo contemporâneo, mostra a cineasta, o peso e a relação com a comida são duas entre outas tantas métricas criadas para dividir a humanidade entre vencedores e vencidos.
Em casa, Carmen tenta implementar novos hábitos alimentares. E convence o marido a acompanhá-la no sacrifício. Ele reluta, mas aceita e se empolga. Resultado: ele emagrece, ela não. E quanto menos ela emagrece, mais se culpa, mais se angustia, mais se esconde...e mais ela come.
A mudança de hábitos provoca estragos consideráveis naquela casa. Ao deixar de sentar na mesma mesa e compartilhar os mesmos alimentos, o casal passa a se distanciar. A falar outra língua. A criar áreas de atrito até então inexistentes.
O filme, de alguma maneira, mostra que o prato levado à mesa não é só um prato. É uma espécie de catalisador das dores ou das delícias ao redor. Em nosso circulo social é preciso, como na música, saber da piscina, da margarina, da carolina, da gasolina; é preciso saber inglês, o que sabemos e o que não sabemos mais. E é preciso calcular níveis de nutrientes e antioxidantes e entrar numa espiral de paranoia para ter uma vida amarrada e...saudável. Saudável? Sim, em nome desse conceito e de um peso dito ideal, tão autoritário quanto inalcançável, muitos aceitam praticar um exercício de automutilação cada vez mais comum. Tomamos comprimidos para não sentir fome, shakesemagrecedores para substituir a refeição e nos entupimos de porcariazinhas sem gosto ao longo dos dias para não chegar em casa com a tentação de subir ao paraíso pelo garfo de espaguete.
Quando isso acontece, dormimos mal – muitos só encontram alívio com o dedo indicador do refluxo gástrico. E nos deparamos cada vez mais com controles internos e eternos, que começam no programa de estúdio com cores amenas na tevê e terminam na fila do fasto food. Por isso sentamos à mesa e ouvimos dos acompanhantes: “você vai MESMO comer isso?”.
É uma condenação semelhante à enfrentada pelo ato sexual em outros séculos: só pode se for bem comportado – e, em nome disso, substituímos a experiência do prazer pela urgência da dor, da culpa, do compromisso. Pois o prazer de se sentar à mesa passa pelo mesmo processo. É como abrir mão do orgasmo para viver como meras entidades reprodutivas.
Em sua passagem ao Brasil, Michael Pollan concedeu uma série de entrevistas a respeito da nossa relação com os alimentos, tema de seu mais recente livro. Em uma delas, para a revista Vila Cultural, o escritor americano fez uma série de alertas sobre nossa “compreensão superficial” da comida, hoje relacionada a combustível, energia ou entretenimento – e sobre a qual as receitas de sucesso do momento criam relação direta com o tempo (“Cozinhe em cinco minutos”, “Perca 5kg em dois dias”, etc).
Uma aparente contradição desses tempos, defende o autor, é que as dietas da moda são incentivadas pela própria indústria alimentícia, que usa promessas de benefícios para a saúde e, no fim, nos leva a comer cada vez mais. Isso só demostra uma coisa: no meio da patrulha, ficamos simplesmente alienados em relação ao que comemos – e ao modo como comemos e ao impacto que esse modo produz nas nossas relações sociais, como mostra o filme de Mariana Chenillo.
“Hoje, quando vemos a promessa em um menu de que determinada comida tem poucos carboidratos, automaticamente pensamos que se trata de comida saudável e, assim, podemos comer maiores quantidades. As pessoas acabam comendo compulsivamente. Comem um excesso de ‘comidas saudáveis’. A obsessão com os nutrientes é uma receita para desenvolver ansiedade de comer, e ficar preocupado o tempo todo não é bom para a saúde. Comemos comida, e não nutrientes”.
As palavras do autor americano me levaram a visualizar os personagens dessa patrulha (a maioria entre sorrisos nas capas de revistas de saúde e boa forma). Desde então passei a trucidá-los em meus pratos com meus garfos, minhas facas e meus carboidratos.
Ao fim da entrevista, e do filme, lembrei que, dias atrás, meu filho de um ano e um mês provocou uma avalanche de ansiedades entre adultos saudáveis ao ser flagrado com a boca suja de chocolate em uma foto no Facebook. Houve gente que chegou a questionar nossa coragem de dar a ele algo tão condenável. Só então entendi o que Fernando Pessoa escreveu na sua Tabacaria: “Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates”.
Por

Matheus Pichonelli

Carta Capital

25 de ago. de 2014

Meu filho, não merece nada

Ao conviver com os bem mais jovens, com aqueles que se tornaram adultos há pouco e com aqueles que estão tateando para virar gente grande, percebo que estamos diante da geração mais preparada – e, ao mesmo tempo, da mais despreparada. Preparada do ponto de vista das habilidades, despreparada porque não sabe lidar com frustrações. Preparada porque é capaz de usar as ferramentas da tecnologia, despreparada porque despreza o esforço. Preparada porque conhece o mundo em viagens protegidas, despreparada porque desconhece a fragilidade da matéria da vida. E por tudo isso sofre, sofre muito, porque foi ensinada a acreditar que nasceu com o patrimônio da felicidade. E não foi ensinada a criar a partir da dor.

Há uma geração de classe média que estudou em bons colégios, é fluente em outras línguas, viajou para o exterior e teve acesso à cultura e à tecnologia. Uma geração que teve muito mais do que seus pais. Ao mesmo tempo, cresceu com a ilusão de que a vida é fácil. Ou que já nascem prontos – bastaria apenas que o mundo reconhecesse a sua genialidade.


Tenho me deparado com jovens que esperam ter no mercado de trabalho uma continuação de suas casas – onde o chefe seria um pai ou uma mãe complacente, que tudo concede. Foram ensinados a pensar que merecem, seja lá o que for que queiram. E quando isso não acontece – porque obviamente não acontece – sentem-se traídos, revoltam-se com a “injustiça” e boa parte se emburra e desiste.


Como esses estreantes na vida adulta foram crianças e adolescentes que ganharam tudo, sem ter de lutar por quase nada de relevante, desconhecem que a vida é construção – e para conquistar um espaço no mundo é preciso ralar muito. Com ética e honestidade – e não a cotoveladas ou aos gritos. Como seus pais não conseguiram dizer, é o mundo que anuncia a eles uma nova não lá muito animadora: viver é para os insistentes.


Por que boa parte dessa nova geração é assim? Penso que este é um questionamento importante para quem está educando uma criança ou um adolescente hoje. Nossa época tem sido marcada pela ilusão de que a felicidade é uma espécie de direito. E tenho testemunhado a angústia de muitos pais para garantir que os filhos sejam “felizes”. Pais que fazem malabarismos para dar tudo aos filhos e protegê-los de todos os perrengues – sem esperar nenhuma responsabilização nem reciprocidade.


É como se os filhos nascessem e imediatamente os pais já se tornassem devedores. Para estes, frustrar os filhos é sinônimo de fracasso pessoal. Mas é possível uma vida sem frustrações? Não é importante que os filhos compreendam como parte do processo educativo duas premissas básicas do viver, a frustração e o esforço? Ou a falta e a busca, duas faces de um mesmo movimento? Existe alguém que viva sem se confrontar dia após dia com os limites tanto de sua condição humana como de suas capacidades individuais?

Nossa classe média parece desprezar o esforço. Prefere a genialidade. O valor está no dom, naquilo que já nasce pronto. Dizer que “fulano é esforçado” é quase uma ofensa. Ter de dar duro para conquistar algo parece já vir assinalado com o carimbo de perdedor. Bacana é o cara que não estudou, passou a noite na balada e foi aprovado no vestibular de Medicina. Este atesta a excelência dos genes de seus pais. Esforçar-se é, no máximo, coisa para os filhos da classe C, que ainda precisam assegurar seu lugar no país.


Da mesma forma que supostamente seria possível construir um lugar sem esforço, existe a crença não menos fantasiosa de que é possível viver sem sofrer. De que as dores inerentes a toda vida são uma anomalia e, como percebo em muitos jovens, uma espécie de traição ao futuro que deveria estar garantido. Pais e filhos têm pagado caro pela crença de que a felicidade é um direito. E a frustração um fracasso. Talvez aí esteja uma pista para compreender a geração do “eu mereço”.


Basta andar por esse mundo para testemunhar o rosto de espanto e de mágoa de jovens ao descobrir que a vida não é como os pais tinham lhes prometido. Expressão que logo muda para o emburramento. E o pior é que sofrem terrivelmente. Porque possuem muitas habilidades e ferramentas, mas não têm o menor preparo para lidar com a dor e as decepções. Nem imaginam que viver é também ter de aceitar limitações – e que ninguém, por mais brilhante que seja, consegue tudo o que quer.


A questão, como poderia formular o filósofo Garrincha, é: “Estes pais e estes filhos combinaram com a vida que seria fácil”? É no passar dos dias que a conta não fecha e o projeto construído sobre fumaça desaparece deixando nenhum chão. Ninguém descobre que viver é complicado quando cresce ou deveria crescer – este momento é apenas quando a condição humana, frágil e falha, começa a se explicitar no confronto com os muros da realidade. Desde sempre sofremos. E mais vamos sofrer se não temos espaço nem mesmo para falar da tristeza e da confusão.


Me parece que é isso que tem acontecido em muitas famílias por aí: se a felicidade é um imperativo, o item principal do pacote completo que os pais supostamente teriam de garantir aos filhos para serem considerados bem sucedidos, como falar de dor, de medo e da sensação de se sentir desencaixado? Não há espaço para nada que seja da vida, que pertença aos espasmos de crescer duvidando de seu lugar no mundo, porque isso seria um reconhecimento da falência do projeto familiar construído sobre a ilusão da felicidade e da completude.


Quando o que não pode ser dito vira sintoma – já que ninguém está disposto a escutar, porque escutar significaria rever escolhas e reconhecer equívocos – o mais fácil é calar. E não por acaso se cala com medicamentos e cada vez mais cedo o desconforto de crianças que não se comportam segundo o manual. Assim, a família pode tocar o cotidiano sem que ninguém precise olhar de verdade para ninguém dentro de casa.


Se os filhos têm o direito de ser felizes simplesmente porque existem – e aos pais caberia garantir esse direito – que tipo de relação pais e filhos podem ter? Como seria possível estabelecer um vínculo genuíno se o sofrimento, o medo e as dúvidas estão previamente fora dele? Se a relação está construída sobre uma ilusão, só é possível fingir.


Aos filhos cabe fingir felicidade – e, como não conseguem, passam a exigir cada vez mais de tudo, especialmente coisas materiais, já que estas são as mais fáceis de alcançar – e aos pais cabe fingir ter a possibilidade de garantir a felicidade, o que sabem intimamente que é uma mentira porque a sentem na própria pele dia após dia. É pelos objetos de consumo que a novela familiar tem se desenrolado, onde os pais fazem de conta que dão o que ninguém pode dar, e os filhos simulam receber o que só eles podem buscar. E por isso logo é preciso criar uma nova demanda para manter o jogo funcionando.


O resultado disso é pais e filhos angustiados, que vão conviver uma vida inteira, mas se desconhecem. E, portanto, estão perdendo uma grande chance. Todos sofrem muito nesse teatro de desencontros anunciados. E mais sofrem porque precisam fingir que existe uma vida em que se pode tudo. E acreditar que se pode tudo é o atalho mais rápido para alcançar não a frustração que move, mas aquela que paralisa.


Quando converso com esses jovens no parapeito da vida adulta, com suas imensas possibilidades e riscos tão grandiosos quanto, percebo que precisam muito de realidade. Com tudo o que a realidade é. Sim, assumir a narrativa da própria vida é para quem tem coragem. Não é complicado porque você vai ter competidores com habilidades iguais ou superiores a sua, mas porque se tornar aquilo que se é, buscar a própria voz, é escolher um percurso pontilhado de desvios e sem nenhuma certeza de chegada. É viver com dúvidas e ter de responder pelas próprias escolhas. Mas é nesse movimento que a gente vira gente grande.

 
Seria muito bacana que os pais de hoje entendessem que tão importante quanto uma boa escola ou um curso de línguas ou um Ipad é dizer de vez em quando: “Te vira, meu filho. Você sempre poderá contar comigo, mas essa briga é tua”. Assim como sentar para jantar e falar da vida como ela é: “Olha, meu dia foi difícil” ou “Estou com dúvidas, estou com medo, estou confuso” ou “Não sei o que fazer, mas estou tentando descobrir”. Porque fingir que está tudo bem e que tudo pode significa dizer ao seu filho que você não confia nele nem o respeita, já que o trata como um imbecil, incapaz de compreender a matéria da existência. É tão ruim quanto ligar a TV em volume alto o suficiente para que nada que ameace o frágil equilíbrio doméstico possa ser dito.


Agora, se os pais mentiram que a felicidade é um direito e seu filho merece tudo simplesmente por existir, paciência. De nada vai adiantar choramingar ou emburrar ao descobrir que vai ter de conquistar seu espaço no mundo sem nenhuma garantia. O melhor a fazer é ter a coragem de escolher. Seja a escolha de lutar pelo seu desejo – ou para descobri-lo –, seja a de abrir mão dele. E não culpar ninguém porque eventualmente não deu certo, porque com certeza vai dar errado muitas vezes. Ou transferir para o outro a responsabilidade pela sua desistência.


Crescer é compreender que o fato de a vida ser falta não a torna menor. Sim, a vida é insuficiente. Mas é o que temos. E é melhor não perder tempo se sentindo injustiçado porque um dia ela acaba.


Por
Eliane Brum 
Revista Época 
11/07/2011

Temas de Redação ENEM

- A saúde pública brasileira na UTI
 Depois de medidas para a melhora da saúde pública via o programa Mais Médicos. Alguns médicos cubanos foram embora do país ao descobrirem que recebiam menos que os demais profissionais que aqui estão ocupando cargos similares, graças a um acordo feito com o governo de Cuba.
  - A transformação do papel da mulher na sociedade contemporânea
 Esse assunto é bem aberto e recorrente, podendo ser algo bom para s tema da redação do Enem 2015.
 - A questão do transporte urbano no Brasil
 Devido as muitas denuncias sobre o caos do transporte público do Brasil, esse assunto pode ser acionado nas próximas redações do Enem.
 - Álcool e direção: combinação fatal
O tema é bom, ainda mais para ser tratado por jovens, que são a maioria na execução dos testes do Enem.
 - Casamento gay
 O casamento gay sempre está em pauta e ganha cada vez mais força para ser tema da redação do Enem 2015.
 - O petróleo do pré-sal brasileiro
 Devido as polêmicas relacionada ao assunto esse tema que tem peso político pode ser acionado na redação do Enem 2015.
 - A lei de cotas nas universidades
 Saber o que as pessoas acham sobre as cotas em universidades também pode ser tema para redação do Enem.
 - Redução da maioridade penal
 Devido aos muitos projetos para a redução da maioridade penal, esse pode ser tema de redação do Enem 2015.
 - Justiça com as próprias mãos
 Depois de muitos casos que a população resolveu fazer justiça com as próprias mãos, o tema ganhou força e pode ser acionado em 2015 no Enem.
Fonte: possíveis temas do REM

20 de ago. de 2014

Vidas Secas - a secura dos tempos (crônica)

a persistência da memóra
A persistência da memória
Salvador Dalí

Cabeça vazia é a oficina do diabo, dizia a minha vó e a vó de todos os meus amigos de infância. Ter tempo demais, sem exatamente ter o que fazer, é a mola propulsora para as crianças pintarem as paredes com pasta de dente, plantarem ovos no quintal ou roubarem os cigarros do pai.

Quando adultos, a lei e a ordem nos impedem de tapear o tempo com os velhos recursos infantis, e por isso preferimos tapeá-lo jurando não termos tempo para nada – ao menos para começar as tarefas adiadas desde a adolescência, como começar a ler Em Busca do Tempo Perdido.

Mas a verdade é que temos tempo de sobra. Temos tempo demais. Por isso estamos sempre conectados e em busca de listas salvadoras sobre as dez coisas que não podemos morrer sem fazer, conhecer, ouvir, lembrar ou esquecer.

Tempos atrás, perdíamos o sono e nos deparávamos à noite com nosso maior inimigo: o silêncio. Nada contra o silêncio, mas é ele, e nada mais, o maior delator de nosso fantasma mais primitivo: a consciência de que temos tempo de sombra, temos tempo demais, e não sabemos o que fazer com ele quando é noite, estão todos dormindo e as ruas, imersas em silêncio. Diante da noite, não há meio-termo entre matar ou morrer. Antigamente assaltávamos a geladeira. Ou ligávamos a TV para assistir ao Corujão. Ou escrevíamos cartas a amantes ou desafetos num impulso de empolgação que se desmancharia nas primeiras luzes do dia e da razão.

Hoje vamos à internet. Ali, encontramos uma legião de insones armados com facões e outros objetos pontiagudos para matar, estraçalhar, estripar o tempo de sobra. O tempo, delatado pelo silêncio, é nosso maior delator: não temos nada de bom para pensar. Por isso a paz não nos interessa. Ela nos leva ao silêncio, que nos leva a nós mesmos, e esse encontro é não só indesejado: é insuportável.

No livro Vidas Secas, Graciliano Ramos descreve uma cena em que Fabiano, o sertanejo do romance, perde uma aposta para o Soldado Amarelo. Quando percebe, está só, sentado na sarjeta, falido, bêbado e sem argumento para explicar em casa que o dinheiro para os mantimentos fora gasto em finalidades menos nobres. É a chegada ao inferno sem escaladas: em silêncio, Fabiano busca um resquício de bom pensamento para se acalmar. Em vão, conclui: a vida seria mais suportável se houvesse ao menos uma boa lembrança. Ele não tinha. Sua vida era seca. Infrutífera. Vulnerável. Como ele.

Em tempos de secura do ar, de reservatórios, de ideias ou desculpas convincentes sobre nossas faltas, eu deveria voltar a Graciliano Ramos, mas confesso que ando ocupado demais matando o tempo que juro não ter. Todos os meus objetos pontiagudos estão empenhados a matar o tempo na internet, mais especificamente no Facebook, espécie de redutor do muro que antes separava o que sentíamos e o que pronunciávamos.

Com ele, não faz o menor sentido ter uma ideia e não dividi-la. Não compartilhá-la. Não lançá-la para ser curtida. As ideias trancafiadas nos pesam: elas nos levam ao silêncio e às desconfianças, entre elas a de que não são originais, não valem ser ditas, não valem a atenção, não valem uma nota, não valem um post. Tarde demais: quando pensamos em dizer, já dissemos. Em conjunto, essa produção industrial de bobagens e reduções explícitas da realidade replicadas na rede nos dão a sensação de preenchimento. De tempo encurtado. De tempo útil. De vida bem vivida.

Vai ver é por isso que, em um estudo recente publicado na revista Science, as pessoas diziam preferir causar dor a si mesmas do que passar 15 minutos em um quarto sem nada para fazer além de pensar. No experimento, os cientistas das Universidades da Virgínia e de Harvard confinaram cerca de 200 pessoas em um quarto sem celular nem material para ler ou escrever e concluiu: mais de 57% das pessoas acharam difícil se concentrar; 80% disseram que seus pensamentos vagaram; metade achou a experiência desagradável. E, o mais estarrecedor: dois terços, sem ter o que fazer diante do silêncio, resolveram se entreter dando choques em si mesmos – um deles estraçalhou o próprio tédio com 190 choques. Nada poderia ser mais revelador dos nossos dias.

Pois ontem passei uma hora e quarenta minutos parado num ponto de ônibus à espera de um ônibus que não veio. Passaria uma hora e quarenta minutos me autoimolando se não fosse meu celular, que tanto relutei a conectar à internet. Foram quase cem minutos contatando meio mundo que me desse uma palha de conversa, em aplicativos de mensagem instantânea, sobre a vida, sobre a seca, sobre o tempo que nos resta e não concede tempo para nada, nem para ler os livros e as revistas que apodreciam em conjunto na minha mochila.

Se quer saber a dimensão do tempo, fique um minuto em silêncio, diziam os sábios, que talvez não suportassem passar 15 minutos sem conferir as últimas mensagens no celular a apitar nos bolsos das melhores famílias. Os meus vibram e apitam mesmo quando estão vazios. Sintomas da abstinência, manifestada toda vez que coloco o celular para carregar e me lembro de que nossas vidas pedem barulho e transbordamento o tempo todo. Elas estão secas demais para suportar 15 minutos de silêncio.

Por
Matheus Pichonelli
Fonte: Carta Capital 

Míriam Leitão e a ditadura militar



Miriam Leitão revelou ao repórter Luiz Cláudio Cunha sobre a época sombria em que penou nas mãos da barbárie. Grávida, Míriam foi torturada nua. Trancaram-na com uma cobra.
É muito provável que um dos seus algozes tenha sido Paulo Magalhães, o coronel do Exército morto meses atrás, depois de revelar atrocidades perpetradas contra seres humanos indefesos que ele e seus comparsas torturaram e mataram.
Confira abaixo o depoimento de Míriam Leitão a Luiz Cláudio Cunha.
‘Eu sozinha e nua. Eu e a cobra. Eu e o medo’
Eu morava numa favela de Vitória, o Morro da Fonte Grande. Num domingo, 3 de dezembro de 1972, eu e meu companheiro na época, Marcelo Netto, estudante de Medicina, acordamos cedo para ir à praia do Canto, próxima ao centro da capital. Acordei para ir à praia e acabei presa na Prainha. É o bairro que abriga o Forte de Piratininga, essa construção bonita do século 17. Ali está instalado o quartel do 38º Batalhão de Infantaria do Exército, do outro lado da baía.
Eu tinha dado quatro plantões seguidos na redação da rádio Espírito Santo e já tinha quase um ano de profissão. Eu vestia uma camisa branca larga, de homem, sobre o biquini vermelho. Caminhando pela Rua Sete em direção à praia, alguém gritou de repente:
– Ei, Marcelo?
Nos viramos e vimos dois homens correndo em nossa direção com armas. Eu reconheci um rosto que vira em frente à Polícia Federal. Meu ônibus sempre passava em frente à sede da PF e eu tentava guardar os rostos.
– É a Polícia Federal – avisei ao Marcelo
Em instantes estávamos cercados. Apareceram mais homens, mais um carro. Voltei a perguntar:
– O que está acontecendo?
Eles nos algemaram e empurraram o Marcelo para o camburão. Era uma camionete Veraneio, sem identificação. Eu tive uma reação curiosa: antes que me empurrassem sentei no chão da calçada e comecei a gritar, a berrar como louca, queria chamar a atenção das pessoas na rua. Mas ainda era cedo, manhã de domingo, havia pouca gente circulando. Achava que quanto mais gente visse aquela cena, mais chances eu teria de sair viva. Como eu berrava, me puxaram pelos cabelos, me agarraram para me colocar no carro. Eu, ainda com aquela coisa de Justiça na cabeça, reclamei:
– Moço, cadê a ordem de prisão?
O homem botou a metralhadora no meu peito e respondeu com outra pergunta:
– Esta serve?
As algemas eram diferentes, eram de plástico, e estavam muito apertadas, doíam no pulso. Viajamos sem capuz, eu e Marcelo, em direção a Vila Velha, onde fica o quartel do Exército. Eu ainda achava que não era nada comigo, que o alvo era o Marcelo. Ele estava no quarto ano de Medicina e tinha acabado de liderar a única greve de estudantes do país daquele ano, que trancou por dois dias as aulas na universidade de Vitória e paralisou os trabalhos no Hospital de Clínicas. Achei que estava presa só porque estava indo à praia com o Marcelo.
A Veraneio entrou no pátio do quartel, o batalhão de infantaria. Nos levaram por um corredor e nos separaram. Marcelo foi viver seu inferno, que durou 13 meses, e eu o meu. Sobre mim jogaram cães pastores babando de raiva. Eles ficavam ainda mais enfurecidos quando os soldados gritavam: “Terrorista, terrorista!”. Pareciam treinados para ficar mais bravos quando eram incitados pela palavra maldita. De repente, os soldados que me cercavam começaram a cantar aquela música do Ataulfo Alves: “Amélia não tinha a menor vaidade/ Amélia é que era mulher de verdade”. Só então percebi que minha prisão não era um engano. “Amélia” era o codinome que o meu chefe de ala no PCdoB tinha escolhido pra mim: “Você, a partir de agora, vai se chamar Amélia”. Quis reagir na hora, afinal não tenho nada de Amélia, mas não quis discordar logo na primeira reunião com o dirigente.
O comandante do batalhão era o coronel Sequeira [tenente-coronel Geraldo Cândido Sequeira, que exerceu o comando do 38º BI entre 10 de março de 1971 a 13 de março de 1973], que fingia que mandava, mas não via nada do que acontecia por lá. O homem que de fato mandava naquele lugar, naquele tempo, era o capitão Guilherme, o único nome que se conhecia dele. Ele era o chefe do S-2, o setor de inteligência do batalhão. Todos os interrogatórios e torturas estavam sob a coordenação dele. Ele pessoalmente nada fazia, mas a ele tudo era comunicado. Nesse primeiro dia me deu um bofetão só porque eu o encarei.
– Nunca mais me olhe assim! – avisou.
Fui levada para uma grande sala vazia, sem móveis, com as janelas cobertas por um plástico preto. Com a luz acesa na sala, vi um pequeno palco elevado, onde me colocaram de pé e me mandaram não recostar na parede. Chegaram três homens à paisana, um com muito cabelo, preto e liso, um outro ruivo e um descendente de japonês. Mandaram eu tirar a roupa. Uma peça a cada cinco minutos. Tirei o chinelo. O de cabelo preto me bateu:
– A roupa! Tire toda a roupa.
Fui tirando, constrangida, cada peça. Quando estava nua, eles mandaram entrar uns 10 soldados na sala. Eu tentava esconder minha nudez com as mãos. O homem de cabelo preto falou:
– Posso dizer a todos eles para irem pra cima de você, menina. E aqui não tem volta. Quando começamos, vamos até o fim.
Os soldados ficaram me olhando e os três homens à paisana gritavam, ameaçando me atacar, um clima de estupro iminente. O tempo nessas horas é relativo, não sei quanto tempo durou essa primeira ameaça. Viriam outras.
Eles saíram e o homem de cabelo preto, que alguém chamou de Dr. Pablo, voltou trazendo uma cobra grande, assustadora, que ele botou no chão da sala, e antes que eu a visse direito apagaram a luz, saíram e me deixaram ali, sozinha com a cobra. Eu não conseguia ver nada, estava tudo escuro, mas sabia que a cobra estava lá. A única coisa que lembrei naquele momento de pavor é que cobra é atraída pelo movimento. Então, fiquei estática, silenciosa, mal respirando, tremendo. Era dezembro, um verão quente em Vitória, mas eu tremia toda. Não era de frio. Era um tremor que vem de dentro. Ainda agora, quando falo nisso, o tremor volta. Tinha medo da cobra que não via, mas que era minha única companhia naquela sala sinistra. A escuridão, o longo tempo de espera, ficar de pé sem recostar em nada, tudo aumentava o sofrimento. Meu corpo doía.
Não sei quanto tempo durou esta agonia. Foram horas. Eu não tinha noção de dia ou noite na sala escurecida pelo plástico preto. E eu ali, sozinha, nua. Só eu e a cobra. Eu e o medo. O medo era ainda maior porque não via nada, mas sabia que a cobra estava ali, por perto. Não sabia se estava se movendo, se estava parada. Eu não ouvia nada, não via nada. Não era possível nem chorar, poderia atrair a cobra. Passei o resto da vida lembrando dessa sala de um quartel do Exército brasileiro. Lembro que quando aqueles três homens voltaram, davam gargalhadas, riam da situação. Eu pensava que era só sadismo. Não sabia que na tortura brasileira havia uma cobra, uma jiboia usada para aterrorizar e que além de tudo tinha o apelido de Míriam. Nem sei se era a mesma. Se era, talvez fosse esse o motivo de tanto riso. Míriam e Míriam, juntas na mesma sala. Essa era a graça, imagino.
Dr. Pablo voltou, depois, com os outros dois, e me encheu de perguntas. As de sempre: o que eu fazia, quem conhecia. Me davam tapas, chutes, puxavam pelo cabelo, bateram com minha cabeça na parede. Eu sangrava na nuca, o sangue molhou meu cabelo. Ninguém tratou de minha ferida , não me deram nenhum alimento naquele dia, exceto um copo de suco de laranja que, com a forte bofetada do capitão Guilherme, eu deixei cair no chão. Não recebi um único telefonema, não vi nenhum advogado, ninguém sabia o que tinha acontecido comigo, eu não sabia se as pessoas tinham ideia do meu desaparecimento. Só três dias após minha prisão é que meu pai recebeu, em Caratinga, um telefonema anônimo de uma mulher dizendo que eu tinha sido presa. Ele procurou muito e só conseguiu me localizar no fim daquele dezembro. Havia outros presos no quartel, mas só ao final de três semanas fui colocada na cela com a outras presas: Angela, Badora, Beth, Magdalena, estudantes, como eu.
Fiquei 48 horas sem comer. Eu entrei no quartel com 50 kg de peso, saí três meses depois pesando 39 kg. Eu cheguei lá com um mês de gravidez, e tinha enormes chances de perder meu bebê. Foi o que médico me disse, quando saí de lá, com quatro meses de gestação. Eu estava deprimida, mal alimentada, tensa, assustada, anêmica, com carência aguda de vitamina D por falta de sol. Nada que uma mulher deve ser para proteger seu bebê na barriga. Se meu filho sobrevivesse, teria sequelas, me disse o médico.
– A má notícia eu já sei, doutor, vou procurar logo um médico que me diga o que fazer para aumentar as chances do meu filho.
Mas isso foi ao sair. Lá dentro achei que não havia chance alguma para nós. Eu era levada de uma sala para outra, numa área administrativa do quartel, onde passava por outras sessões de perguntas, sempre as mesmas, tudo aos gritos, para manter o clima de terror, de intimidação. Na noite seguinte, atravessei a madrugada com uma sessão de interrogatório pesado, o Dr. Pablo e os outros dois berrando, me ameaçando de estupro, dizendo que iam me matar. Um dia achei que iria morrer. Entraram no meio da noite na cela do forte para onde eu fui levada após esses dois dias. Falaram que seria o último passeio e me levaram para um lugar escuro, no pátio do quartel, para simular um fuzilamento. Vi minha sombra refletida na parede branca do forte, a sombra de um corpo mirrado, uma menina de apenas 19 anos. Vi minha sombra projetada cercada de cães e fuzis, e pensei: “Eu sou muito nova para morrer. Quero viver”.
Um dia, um outro militar, que não era nenhum daqueles três, botou um revólver na minha cabeça e falou: “Eu posso te matar”. E forçou aquele cano frio na minha testa. Me deu um sentimento enorme de solidão, de abandono. Eu me senti absolutamente só no mundo. Pela falta de notícias, imaginava que o Marcelo estava morto. Entendi que iria morrer também e que ninguém saberia da minha morte, pensei. Mas não quis demonstrar medo. Lembro que o homem do revólver tinha olhos azuis. Olhei nos seus olhos e respondi: “Sim, você pode pode me matar”. E repeti, falando ainda mais alto, com ar de desafio: “Sim, você pode!”
Um dos interrogatórios foi feito na sala do capitão Guilherme, o S-2 que mandava em todos ali. Era noite, ele não estava, e me interrogaram na sala dele. Lembro dela porque havia na parede um quadro com a imagem do Duque de Caxias. Estava ainda com o biquíni e a camisa, era a única roupa que eu tinha, que me protegia. Nessa noite, na sala, de novo fui desnudada e os homens passaram o tempo todo me alisando, me apalpando, me bolinando, brincando comigo. Um deles me obrigou a deitar com ele no sofá. Não chegaram a consumar nada, mas estavam no limite do estupro, divertindo-se com tudo aquilo.
Eu estava com um mês de gravidez, e disse isso a eles. Não adiantou. Ignoraram a revelação e minha condição de grávida não aliviou minha condição lá dentro. Minha cabeça doía, com a pancada na parede, e o sangue coagulado na nuca incomodava. Eu não podia me lavar, não tinha nem roupa para trocar. Quando pensava em descansar e dormir um pouco, à noite, o lugar onde estava de repente era invadido, aos gritos, com um bando de pastores alemães latindo na minha cara. Não mordiam, mas pareciam que iam me estraçalhar, se escapassem da coleira. E, para enfurecer ainda mais os cães, os soldados gritavam a palavra que enlouquecia a cachorrada: “Terrorista, terrorista!…”
As primeiras três semanas que passei lá foram terríveis. Só melhorou quando o Dr. Pablo e seus dois companheiros foram embora. Entendi então que eles não pertenciam ao quartel de Vila Velha. Tinham vindo do Rio, é o que chegaram a conversar entre eles, em papos casuais: “E aí, quando voltarmos ao Rio, o que a gente vai fazer lá…” Isso fazia sentido, porque o quartel de Vila Velha integra o Comando do I Exército, hoje Comando do Leste, que tem o QG no Rio de Janeiro.
Quando o trio voltou para o Rio, a situação ficou menos ruim. Eles já não tinham mais nada para perguntar. Me tiraram da cela da fortaleza e me levaram para a cela coletiva. Foi melhor. Na cela do forte não havia janelas, a porta era inteiriça e minhas companhias eram apenas as baratas. Fiz uma foto minha, agora em 2011, ao lado da porta.
Até que chegou o dia de assinar a confissão, para dar início ao IPM, o inquérito policial-militar que acontecia lá mesmo, dentro do quartel. Me levaram para a sala do capitão Guilherme, o S-2, e levei um susto. Lá estava o Marcelo, que eu pensava estar morto. Os militares saíram da sala e nos deixaram sozinhos. Quando eu fui falar alguma coisa, o Marcelo me fez um sinal para ficar calada. Ele levantou, foi até a parede e levantou o quadro do Duque de Caxias. Estava cheio de fios e microfones lá atrás. Era tudo grampo.
Depois disso, o Marcelo foi levado para o Regimento Sampaio, na Vila Militar, no Rio de Janeiro, e lá ficou nove meses numa solitária. Sem banho de sol, sem nada para ler, sem ninguém para conversar. Foi colocado lá para enlouquecer. Nove longos e solitários meses… Nós, todos os presos, e os que já estavam soltos nos encontramos mais ou menos em junho na 2ª Auditoria da Aeronáutica, para o que eles chamam de sumário de culpa, o único momento em que o réu fala. Eu com uma barriga de sete meses de gravidez. O processo, que envolvia 28 pessoas, a maioria garotos da nossa idade, nos acusava de tentativa de organizar o PCdoB no estado, de aliciamento de estudantes, de panfletagem e pichações. Ao fim, eu e a maioria fomos absolvidos. O Marcelo foi condenado a um ano de cadeia. Nunca pedi indenização, nem Marcelo. Gostaria de ouvir um pedido de desculpas, porque isso me daria confiança de que meus netos não viverão o que eu vivi. É preciso reconhecer o erro para não repeti-lo. As Forças Armadas nunca reconheceram o que fizeram.
Nunca mais vi o capitão Guilherme, o S-2 que comandou tudo aquilo. Uma vez ele apareceu no Superior Tribunal Militar como assessor de um ministro. Marcelo foi expulso do curso de Medicina, após a prisão, e virou jornalista. Fomos para Brasília em 1977. Por ironia do destino, Marcelo só conseguiu vaga de repórter para cobrir os tribunais. E lá no STM, um dia, ele reviu o capitão Guilherme. Depois disso, não soubemos mais dele. Nem sei se o S-2 ainda está vivo.
O que eu sei é que mantive a promessa que me fiz, naquela noite em que vi minha sombra projetada na parede, antes do fuzilamento simulado. Eu sabia que era muito nova para morrer. Sei que outros presos viveram coisas piores e nem acho minha história importante. Mas foi o meu inferno. Tive sorte comparado a tantos outros.
Sobrevivi e meu filho Vladimir nasceu em agosto forte e saudável, sem qualquer sequela. Ele me deu duas netas, Manuela (3 anos) e Isabel (1). Do meu filho caçula, Matheus, ganhei outros dois netos, Mariana (8) e Daniel (4). Eles são o meu maior patrimônio.
Minha vingança foi sobreviver e vencer. Por meus filhos e netos, ainda aguardo um pedido de desculpas das Forças Armadas. Não cultivo nenhum ódio. Não sinto nada disso. Mas, esse gesto me daria segurança no futuro democrático do país.

Marco Civil da Internet

O Marco Civil da Internet, é uma espécie de "constituição" que vai reger, a partir de agora, o uso da rede no Brasil definindo direitos e deveres de usuários e provedores da web no país. 

Conheça os principais pontos do Marco Civil

Neutralidade na rede

O princípio da neutralidade diz que a rede deve ser igual para todos, sem diferença quanto ao tipo de uso. Assim, ao comprar um plano de internet, o usuário paga somente pela velocidade contratada e não pelo tipo de página que vai acessar. Ou seja: o usuário poderá acessar o que quiser, independente do tipo de conteúdo. Paga, de acordo, com o volume e velocidade contratados.Em acordo com a oposição ao governo, o texto na Câmara aprovado e confirmado no Senado, prevê que a neutralidade será regulamentada por meio de decreto após consulta à Agência Nacional de Telecomunicações e ao Conselho Gestor da Internet (CGI).


Privacidade na web

Além de criar um ponto de referência sobre a web no Brasil, o Marco prevê a inviolabilidade e sigilo de suas comunicações. O projeto de lei regula o monitoramento, filtro, análise e fiscalização de conteúdo para garantir o direito à privacidade. Somente por meio de ordens judiciais para fins de investigação criminal será possível ter acesso a esses conteúdos.

Outro ponto da proposta garante o direito dos usuários à privacidade , especialmente à inviolabilidade e ao sigilo das comunicações pela internet. O texto determina que as empresas desenvolvam mecanismos para garantir, por exemplo, que os e-mails só serão lidos pelos emissores e pelos destinatários da mensagem. O projeto assegura proteção a dados pessoais e registros de conexão e coloca na ilegalidade a cooperação das empresas de internet com órgãos de informação estrangeiros.As empresas que descumprirem as regras poderão ser penalizadas com advertência, multa, suspensão e até proibição definitiva de suas  atividades. E ainda existe a possibilidade de penalidades administrativas, cíveis e criminais.

Logs ou registros de acessos

Segundo o Marco Civil, os provedores de conexão são proibidos de guardar os registros de acesso a aplicações de internet. Ou seja, o seu rastro digital em sites, blogs, fóruns e redes sociais não ficará armazenado pela empresa que fornece o acesso. Mas, pelo artigo 15 do PL, toda empresa constituída juridicamente no Brasil (classificada como provedora de aplicação) deverá manter o registro desse traço por seis meses. Elas também poderão usá-lo durante esse período nos casos em que usuário permitir previamente. Mesmo assim, são proibidas de guardar dados excessivos que não sejam necessários à finalidade do combinado com o usuário.


Data centers fora do Brasil

O relator do projeto retirou do texto a exigência de data centers no Brasil para armazenamento de dados. Um data center é uma central de computadores com grande capacidade de armazenamento e processamento de dados onde ficam, normalmente, os arquivos dos sites, e-mails e os logs de acesso. Com as denúncias de espionagem eletrônica feita pelos Estados Unidos, o governo brasileiro tinha proposto o armazenamento de dados somente em máquinas dentro do território brasileiro, mas essa obrigação saiu do texto aprovado.

Fonte: www.ebc.com.br




Campanha: Fim do político profissional

Os gregos, na antiguidade, chamavam de idiotés quem não participava da política, ou seja, quem egoistamente ficava isolado em sua casa, obcecado em suas mesquinharias, sem contribuir para a comunidade, para a polis (cidade). Desse idiotés grego deriva nosso idiota atual, que você sabe bem de quem se trata.

Lançamos uma campanha denominada fim do político profissional — o sujeito que abandona a profissão para ocupar cargos eletivos eternamente, como no caso de José Sarney. 

Lutamos, dentre outras, por três coisas: 1ª) nenhum político pode deixar de exercer a sua profissão particular, compatibilizando-a com suas obrigações públicas; 2ª) nenhum político pode ser reeleito para o mesmo cargo executivo (salvo depois de longa quarentena) e 3ª) nenhum político pode exercer mais que dois mandatos consecutivos nos cargos legislativos (só podendo voltar depois da quarentena). José Sarney não teria exercido (nefastamente, diga-se de passagem) mais de 60 anos de vida pública se essa regra já estivesse valendo. 
Mas por que acabar com o político profissional? Porque essa é uma das maiores fontes da endêmica corrupção no país, sobretudo entre o político e o mundo empresarial e financeiro (os três formam uma troyka maligna quando atuam pensando exclusivamente nos seus interesses, em detrimento do povo). Para se entender quais são esses ‘interesses’, basta parafrasear um influente (e desqualificado) político norte-americano (citado por Cristóbal Montes), que dizia: “O que os homens de negócios não compreendem é que eu opero com os votos exatamente o que eles fazem com as especulações e os lucros ilícitos.”
O Brasil não necessita apenas dos movimentos horizontais (povo nas ruas exigindo ética e melhores serviços públicos), mas, sobretudo, dos verticais, para extirpar da cultura os aspectos nefastos, incluindo fundamentos personalistas e aristocráticos (que conduzem a privilégios e mordomias, violando-se flagrantemente a igualdade). Nunca o Brasil será um país confiável se os velhos costumes, as crenças arcaicas e as ideologias desgastadas não forem dissolvidos de uma vez por todas (a começar pelo voto). Nunca atualizaremos o país, de acordo com o mundo globalizado e técnico que vivemos, se a velha ordem colonial e patriarcal, dos senhores de engenho escravagistas, dos políticos corruptos clientelistas, não for revogada.
Um ficha-suja não deveria jamais poder concorrer a novas eleições. O aprimoramento das nossas instituições passa pela proibição das seguidas reeleições. O velho sistema político está morto (e deslegitimado). Ocorre que o novo ainda não nasceu. É hora de lutar por profundas mudanças nos nossos costumes e tradições. Temos que promover uma lei de iniciativa popular para limitar a possibilidade de os políticos fazerem carreiras eternas na política.

Por
Luiz Flávio Gomes é jurista e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil
Fonte: O dia - Opinião
http://institutoavantebrasil.com.br/topicos/fim-do-politico-profissional/

15 de ago. de 2014

Sobre política e jardinagem

De todas as vocações, a política é a mais nobre. Vocação, do latim vocare, quer dizer chamado. 
Vocação é um chamado interior de amor: chamado de amor por um ‘fazer’. No lugar desse
‘fazer’ o vocacionado quer ‘fazer amor’ com o mundo. Psicologia de amante: faria, mesmo que  não ganhasse nada.
‘Política’ vem de polis, cidade. A cidade era, para os gregos, um espaço seguro, ordenado e 
manso, onde os homens podiam se dedicar à busca da felicidade. O político seria aquele que cuidaria desse espaço. A vocação política, assim, estaria a serviço da felicidade dos moradores da cidade.
Talvez por terem sido nômades no deserto, os hebreus não sonhavam com cidades: sonhavam  com jardins. Quem mora no deserto sonha com oásis. Deus não criou uma cidade. Ele criou um jardim. Se perguntássemos a um profeta hebreu ‘o que é política?’, ele nos responderia, ‘a arte da jardinagem aplicada às coisas públicas’.
O político por vocação é um apaixonado pelo grande jardim para todos. Seu amor é tão grande que ele abre mão do pequeno jardim que ele poderia plantar para si mesmo. De que vale um pequeno jardim se à sua volta está o deserto? É preciso que o deserto inteiro se transforme em jardim.
Amo a minha vocação, que é escrever. Literatura é uma vocação bela e fraca. O escritor tem 
amor mas não tem poder. Mas o político tem. Um político por vocação é um poeta forte: ele 
tem o poder de transformar poemas sobre jardins em jardins de verdade. A vocação política é transformar sonhos em realidade. É uma vocação tão feliz que Platão sugeriu que os políticos não precisam possuir nada: bastar-lhes-ia o grande jardim para todos. Seria indigno que o jardineiro tivesse um espaço privilegiado, melhor e diferente do espaço ocupado por todos. 
Conheci e conheço muitos políticos por vocação. Sua vida foi e continua a ser um motivo de esperança.
Vocação é diferente de profissão. Na vocação a pessoa encontra a felicidade na própria ação. 
Na profissão o prazer se encontra não na ação. O prazer está no ganho que dela se deriva. O homem movido pela vocação é um amante. Faz amor com a amada pela alegria de fazer amor. 
O profissional não ama a mulher. Ele ama o dinheiro que recebe dela. É um gigolô. Todas as vocações podem ser transformadas em profissões O jardineiro por vocação ama o jardim de todos. O jardineiro por profissão usa o jardim de todos para construir seu jardim privado, ainda que, para que isso aconteça, ao seu redor aumente o deserto e o sofrimento.
Assim é a política. São muitos os políticos profissionais. Posso, então, enunciar minha segunda tese: de todas as profissões, a profissão política é a mais vil. O que explica o desencanto total do povo, em relação à política. Guimarães Rosa, perguntado por Günter Lorenz se ele se considerava político, respondeu: ‘Eu jamais poderia ser político com toda essa charlatanice da realidade... Ao contrário dos ‘legítimos’ políticos, acredito no homem e lhe desejo um futuro. O político pensa apenas em minutos. Sou escritor e penso em eternidades. Eu penso na ressurreição do homem.’ Quem pensa em minutos não tem paciência para plantar árvores. 
Uma árvore leva muitos anos para crescer. É mais lucrativo cortá-las.
Nosso futuro depende dessa luta entre políticos por vocação e políticos por profissão. O triste é que muitos que sentem o chamado da política não têm coragem de atendê-lo, por medo da 
vergonha de serem confundidos com gigolôs e de terem de conviver com gigolôs.
Escrevo para vocês, jovens, para seduzi-los à vocação política. Talvez haja jardineiros adormecidos dentro de vocês. A escuta da vocação é difícil, porque ela é perturbada pela 
gritaria das escolhas esperadas, normais, medicina, engenharia, computação, direito, ciência. 
Todas elas, legítimas, se forem vocação. Mas todas elas afunilantes: vão colocá-los num pequeno canto do jardim, muito distante do lugar onde o destino do jardim é decidido. Não seria muito mais fascinante participar dos destinos do jardim?
Acabamos de celebrar os 500 anos do descobrimento do Brasil. Os descobridores, ao chegar, 
não encontraram um jardim. Encontraram uma selva. Selva não é jardim. Selvas são cruéis e 
insensíveis, indiferentes ao sofrimento e à morte. Uma selva é uma parte da natureza ainda 
não tocada pela mão do homem. Aquela selva poderia ter sido transformada num jardim. Não
foi. Os que sobre ela agiram não eram jardineiros. Eram lenhadores e madeireiros. E foi assim que a selva, que poderia ter se tornado jardim para a felicidade de todos, foi sendo transformada em desertos salpicados de luxuriantes jardins privados onde uns poucos 
encontram vida e prazer.
Há descobrimentos de origens. Mais belos são os descobrimentos de destinos. Talvez, então, se os políticos por vocação se apossarem do jardim, poderemos começar a traçar um novo destino. Então, ao invés de desertos e jardins privados, teremos um grande jardim para todos, obra de homens que tiveram o amor e a paciência de plantar árvores à cuja sombra nunca se assentariam. 

Por
Rubem Alves 
Fonte: Folha de S. Paulo, Tendências e Debates, 19/05/2000.)

11 de ago. de 2014

Após 40 anos da morte do Frei Tito, o Brasil segue torturando

Tito de Alencar Lima, o Frei Tito, foi encontrado enforcado no dia 10 de agosto de 1974, durante seu exílio na França, como consequência da tortura que sofreu pelas mãos dos agentes da ditadura militar brasileira. Em 1969, ele foi um dos dominicanos presos pelo torturador Sérgio Paranhos Fleury, delegado do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), acusados de apoiar as ações da resistência contra o regime. O calvário de Tito, da prisão ao suicídio, tornou-se um dos símbolos da luta contra a ditadura.
Trago um trecho do testemunho de Tito à Justiça Militar, em 1969, em que conta como foram as sessões de tortura. O depoimento faz parte de ação movida pelo Ministério Público Federal contra os torturadores:
“Na quarta feira, fui acordado às 8 horas, subi para a sala de interrogatórios, onde a equipe do capitão Homero me esperava.
Repetiram as mesmas perguntas do dia anterior. A cada resposta negativa, ou recebia cuteladas na cabeça, nos braços e no peito.
Neste ritmo prosseguiram até o início da noite, quando me serviram a primeira refeição naquelas 48 horas. (…)
Na quinta- feira, três policiais acordaram-me à mesma hora do dia anterior. De estômago vazio, fui para a sala de interrogatórios. Um capitão, cercado por uma equipe, voltou às mesmas perguntas.
“Vai ter que falar, senão, só sai morto daqui”, gritou. Logo depois vi que isto não era apenas uma ameaça: era quase uma certeza.
Sentaram-me na “cadeira de dragão” (com chapas metálicas e fios), descarregaram choques nas mãos e na orelha esquerda. A cada descarga, eu estremecia todo, como se o organismo fosse decompor.
tito

Da sessão de choques, passaram-me ao pau-de-arara. Mais choques, pauladas no peito e nas pernas cada vez que elas se curvavam para aliviar a dor.
Uma hora depois, com o corpo todo sangrando e todo ferido, desmaiei. Fui desamarrado e reanimado. Conduziram-me à outra sala, dizendo que passariam a carga elétrica para 230 volts a fim de que eu falasse “antes de morrer”. Não chegaram a fazê-lo.
Voltaram às perguntas, batiam em minhas mãos com palmatórias. As mãos ficaram roxas e inchadas, a ponto de não ser possível fechá-las. Novas pauladas. Era impossível saber qual parte do corpo doía mais: tudo parecia massacrado.
Mesmo que quisesse, não poderia responder às perguntas: o raciocínio não se ordenava mais. Restava apenas o desejo de perder novamente os sentidos.
Este blog solicitou ao também frei dominicano e membro da Comissão Pastoral da Terra no Tocantins, Xavier Plassat, última pessoa a ver Tito com vida antes do suicídio, um relato sobre as consequências da tortura sobre o religioso. Xavier lançou, neste sábado (9), durante evento que celebrou a memória de Tito na capital paulista, o livro “As próprias pedras gritarão – Escritos, ideias e poemas de Frei Tito'':
“Convivi com frei Tito na comunidade dominicana de L’Arbresle (França). Foram duas primaveras, dois verões, mas um só outono e um só inverno. Ele com seus 27 anos e eu, meus 23.
Ali, surgiu entre nós uma relação feita de cumplicidade e de amizade, de sorrisos e de raivas, de luta e de fé, enfrentando o Fleury [Sérgio Fernando Paranhos Fleury, delegado em São Paulo, acusado de ser um dos principais torturadores do regime militar] que, por dentro do Tito, continuava sua tortura destruidora, partindo-lhe a alma entre resistência e desistência.
Resistência era quando Tito formava projetos, tocava violão, abraçava o amigo, brincava com as crianças, rezava, sorria.
Desistência era quando obedecia cegamente à intimação alucinante da voz que atormentava sua mente sem parar, fugindo para onde mandava que fosse, ou afundando-se em impenetráveis prantos ou desesperados silêncios.
Lembro como se fosse ontem: o dia era 11 de setembro de 1973. As rádios anunciavam o golpe de Pinochet. Ao chegar de longa viagem, achei Tito prostrado e gemendo ao pé de uma árvore, no estacionamento frente à portaria de La Corbusière, nosso convento.
Assim estava desde cedo. Ninguém entendia seu choramingo incessante e assustador. Sentei e fiquei ao lado, horas a fio, procurando abrigar o amigo da chuva intermitente. Pelas altas horas da noite, a duras custas, incrédulo, eu comecei a perceber do que Tito tremia e a quem implorava por piedade: era o Fleury, vociferando em (imaginário) alto-falante localizado do outro lado do vale.
Enquanto torturava um após o outro cada um dos seus irmãos, ele bradava insultos contra o Tito: “comunista, traidor, terrorista, a igreja te jogou fora, você não pisará mais neste chão sagrado, não há mais como tu escapar de mim''. Enquanto ele não se entregasse, continuaria a tortura da família por inteiro: os dez irmãos, o pai, a mãe. E Tito, o caçula, escutava soluços dos seus, entre gritos e imprecações.
Desse dia em diante, Tito pendularia entre o entregar-se e o resistir, como que acuado entre as paredes deste novo “corredor polonês”: morrer vivendo, viver morrendo.
Cumpria-se a louca promessa que recebeu durante as sessões reais de tortura. Em suas próprias palavras, em depoimento: “Quiseram-me deixar dependurado toda a noite no “pau-de-arara''. Mas o capitão Albernaz objetou: “Não é preciso, vamos ficar com ele aqui mais dias. Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis. Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia''.
Juntos, viajamos, cantamos, choramos, xingamos e desafiamos. Partilhamos do melhor e do pior. O chão que vem e o chão que se vá.
Até que um dia (era em agosto de 1974, na semana de São Domingos), Tito resolveu livrar-se definitivamente do torturador e da loucura que este pretendia infundir-lhe. Neste instante longamente preparado, num último mistério de resistência e de fé, Tito derrubou lhe a pretensão de poder continuar, dia após dia, roubando a sua vida.
“Melhor morrer que perder a vida. Opção 1: corda (suicídio, Vejube). Opção 2: tortura prolongada, Bacuri”, foram umas das últimas palavras que rabiscou no papel.
Entendi assim: minha vida, ninguém tira, é minha. Eu a estou entregando. Prova de amor, maior não há.
Se os discípulos se calarem, as próprias pedras gritarão.''
O golpe e a ditadura civil-militar ainda são temas que não fazem parte de nosso cotidiano em comparação com outros países que viveram realidades semelhantes e que almejam ser democracias. Por aqui, lidamos com o passado como se ele tivesse automaticamente feito as pazes com o presente. Não, não fez.
Em nome de uma suposta estabilidade institucional, o passado não resolvido permanece nos assombrando. Seja através de um olhar perdido da mãe de um amigo que, da janela, permanece a esperar o marido que jaz no fundo do mar, lançado de helicóptero. Seja adotando os métodos desenvolvidos por eles para garantir a ordem e o progresso.
O impacto de não resolvermos o nosso passado se faz sentir no dia-a-dia das periferias das grandes cidades, em manifestações, nos grotões da zona rural, com o Estado aterrorizando, reprimindo e torturando parte da população (normalmente mais pobre) com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica). A verdade é que não queremos olhar para o retrovisor não por ele mostrar o que está lá atrás, mas por nos revelar qual a nossa cara hoje.
Tito morre novamente e novamente, todos os dias, no Brasil, sob outros nomes, crenças, gênero ou cor de pele.
Como aqui já disse, que as histórias das mortes sob responsabilidade da ditadura, como a de frei Tito, sejam conhecidas e contadas nas escolas até entrarem nos ossos e vísceras de nossas crianças e adolescentes a fim de que nunca esqueçam que a liberdade do qual desfrutam não foi de mão beijada. Mas custou o sangue, a carne e a saudade de muita gente.
Por
Leonardo Sakamoto
Fonte: Blog do Sakamoto, de 10/08/14