27 de out. de 2012

Ao invés de abolir, o Brasil está exportando “quarto de empregada”


Incomodo-me bastante que muitas plantas de apartamentos por aqui ainda tenham o “Quarto de Empregada” destacado, ao lado da cozinha e da lavanderia – versão contemporânea da senzala. Como já disse anteriormente, a crítica pode parecer besta, mas isso é carregado de simbolismo e, portanto, fundamental, herança da escravidão oficial, que moldou o nosso país. Aquele tantinho de espaço ao lado das vassouras, rodos e produtos de limpeza, destinado à criadagem me irrita. Peço perdão aos amigos que, por contingências do emprego, utilizam esse tipo de serviço, mas creio que retomar a análise é válido.
- Ah, mas ela é minha empregada e não uma pessoa da família.
Tenho vontade de jogar um litro de cândida na cabeça da “sinhá” que solta um “minha” empregada, como se fosse uma tábua de passar roupa, um objeto pessoal. Bem, daí você já retira o naipe do interlocutor.

- Ah, e onde você quer que ela durma? Junto com as outras pessoas da casa?!
O ideal seria que ganhasse o suficiente para ter sua própria residência (lembrando que as empregadas domésticas contam com menos direitos trabalhistas que o restante dos trabalhadores), que não morasse nas franjas da cidade (para onde empurramos sistematicamente os mais pobres) e pudesse se deslocar para o emprego por um sistema de transporte coletivo de qualidade. E, nos casos eventuais de dormir na casa dos patrões, deveria compartilhar um espaço mais digno que o furúnculo da casa, por exemplo, um cômodo como os dos demais moradores ou um quarto de hóspede. Você manda o seu hóspede dormir ao lado da máquina de lavar?

- Ah, mas ela prefere assim, pois se sente mais à vontade. Lá vê a novela.
Ah, pelo amor de Deus! Quem está acostumado à exploração, e não tem consciência disso, automaticamente se refugia no lugar em que, acredita, dever pertencer. Noves fora que há famílias que realmente não fazem o mínimo esforço para que a pessoa se sinta como igual. E, como sabemos, a novela só passa na TV do quarto de empregada.

Mudar isso significa um aumento no custo do trabalho doméstico que vai impactar diretamente no custo de vida de uma parcela da população, pressionando por aumento de salários de quem utiliza esses serviços e gerando demandas junto a empresas e governos. Mas se ignorarmos os direitos dessas trabalhadoras, estamos considerando que uma sociedade pode (continuar a) aceitar basear o seu crescimento sobre o esfolamento de um determinado grupo.
O ideal seria que transformações ocorressem baseadas em um processo de conscientização, mas – como sempre – isso virá como consequência de outras lógicas sociais e econômicas. Grande parte das mulheres mais pobres das novas gerações preferem outros empregos mesmo que opressores e mal remunerados (como atendentes de telemarketing) do que tentarem a sorte empregadas domésticas. Querem fugir do estigma social impostos às suas mães e avós, além de contarem com melhor formação educacional.
O custo de usar os serviços de uma empregada que durma no emprego está cada vez maior e, assim como aconteceu em outras partes do mundo, chegará o dia em que ficará proibitivo para uma grande camada da população. Nesse momento, muitos terão que dar um jeito de tocarem esses afazeres por si, demandando das empresas mais tempo livre, com redução de jornada, por exemplo.
Não é à toa que cresce o número de empregadas de países sul-americanos, como Bolívia e Paraguai. Elas não cruzam a fronteira apenas para se acabar de trabalhar em oficinas de costura, ocupando uma função que interessa cada vez menos os jovens brasileiros. Seguem também para residências.
E enquanto importamos mão de obra, os mais endinheirados – que continuarão por aqui com seus quartos de empregada – já exportam “habitações de serviço” para outros países…
O gancho de trazer novamente este assunto foi a coluna deste sábado (27) da jornalista Mônica Bergamo, na Folha de S.Paulo. Como sempre, vale a leitura pela deliciosa ironia que permeia o seu texto:
“Quartos de empregada para brasileiros em Miami”, coluna de Mônica Bergamo
Dona da Halmoral Group, que vende imóveis de Miami (EUA) para brasileiros, a empresária Gabriela Haddad diz que foi ela, e não Yael Steiner, diretora do Centro da Cultura Judaica, quem traduziu a expressão “habitação de serviço” para “quartinho de empregada” em leilão beneficente realizado pelo CCJ nesta semana. Quem comprasse um apartamento por R$ 6,4 milhões ganhava um crédito da incorporadora que poderia reverter para o centro.
Steiner disse que a informação, publicada pela coluna, era “boba e mentirosa”. “Inventar e ironizar negativamente como se fossemos fúteis e ridículos e na minha boca ainda?” Disse também que “jamais faria comentário vulgar e discriminatório”.
A frase foi dita. Ao assumi-la como sua, Gabriela Haddad disse que era necessário explicar “o contexto”.
O quarto de empregada é um diferencial importante do prédio apresentado, o Boutique Chateau Beach, que fica em Sunny Isles, Miami. É que, lá, esse tipo de habitação não existe. As funcionárias domésticas não dormem na casa dos patrões nem ficam à disposição 24 horas por dia, como muitas vezes ainda ocorre no Brasil.
“Eu trabalho em Miami há 20 anos. Houve um boom de brasileiros comprando imóveis lá [na década de 90], quando o dólar custava um real”, afirma. “E os incorporadores pediam dicas sobre o que o brasileiro gostaria de ter no apartamento. Eu disse: ‘Quarto de empregada!’”
Os brasileiros que compram apartamentos em Miami “levam cozinheira, babá, motorista”. Para abrigá-los, têm que reformar os imóveis. “Tem gente que compra dois apartamentos e junta só para fazer a habitação de serviço”, explica Gabriela.
“Não são só os brasileiros que gostam. Todo sul-americano está habituado com isso”, diz a empresária. “Só que, nos EUA, eles não estão acostumados. É o país deles. Então, poucos prédios têm o quarto de empregada.” No máximo, “uns cinco, o que para Miami não é nada”. Os que têm o diferencial “são muito concorridos”.
Gabriela Haddad acredita que foi possivelmente a primeira a dar a preciosa dica para as incorporadoras de Miami que querem conquistar os brasileiros -que nesta década voltaram a comprar na cidade. “Eles adoram, acham bárbaro”, afirma a empresária.
Fonte
Por
Leandro Sakamoto

19 de out. de 2012

Escravidão Moderna

Olá Pessoal,

Assistam a este vídeo.

Nos últimos dois anos,  a fotógrafa Lisa Kristine tem viajado o mundo, documentando as realidades duras da insuportavelmente escravidão moderna. Ela compartilha assombrosamente belas imagens - mineiros no Congo, camadas de tijolos em Nepal - iluminando a situação dos 27 milhões de almas escravizadas em todo o mundo.

Lisa Kristine usa a fotografia para expor histórias profundamente humanas

Fonte:

http://on.ted.com/Kristine

E este vídeo:

Kevin Bales explica o negócio da escravidão moderna, uma economia multibilionária que sustenta algumas das piores indústrias sobre a terra.

Fonte:

http://www.ted.com/talks/kevin_bales_how_to_combat_modern_slavery.html

7 de out. de 2012

Eleições: tenho preguiça de quem tem preguiça de discutir política


Tenho muita preguiça de quem tem preguiça de discutir política. Principalmente em dias como este domingo, em que – ancoradas em nosso silêncio e nossa resignação – pessoas bisonhas tendem a ser eleitas para fazer rir indivíduos, empresas e organizações que os apoiam.
Sim, em última instância, somos nós os responsáveis por eleger os bisonhos supracitados. Seja por ter votado neles (reproduzindo o que terceiros disseram sem a devida análise de quem são, o que defendem e com quem estão), não votado mas também não tentado, ao menos, pautar a discussão sobre eles (quando temos certeza de que não farão um bom governo ou uma boa representação) ou , pior: não ter se interessado em saber o que faz um prefeito ou um vereador – ou se as opções que estão aí cumprem esse papel.
Passei a semana convencendo amigos e inimigos a votarem nos candidatos que, acredito, farão uma boa gestão e nos representarão na Câmara dos Vereadores. Fui à rua, conversei com pessoas do bairro onde moro (Sumaré) e naquele onde cresci (Campo Limpo), enfim, o que sempre faço nesses momentos. A internet é importante como plataforma de construção e reconstrução da realidade, mas não é a única camada de interação possível, nem a única desejável. O velho corpo a corpo é fundamental. Fiquei feliz de ter mudado votos, ainda mais de pessoas que tinham tomado suas decisões baseadas em informações erradas.
Na foto, uma preguiça que não se interessa pelos destinos da sua cidade pois, afinal de contas, é feita de pelúcia
Note que não estou citando o candidato X, Y ou Z. Não estou pregando, neste espaço, voto a alguém mas que, pelo amor que tem à sua própria qualidade de vida, você participe ativamente dos destinos da sua cidade. Ainda dá tempo de tomar conhecimento de quem é o cara ou a mina em que você vai depositar sua confiança e se ele ou ela é digno desse voto ou apenas um iogurte desnatado vendido pelo marketing. E se perder o timing, lembre-se que em muitas cidades haverá segundo turno, ou seja, chance renovada.
“Pô, mas política é chata demais.” Mas não precisa ser assim, ela parece chata porque construíram ela dessa forma. Invente sua maneira divertida de fazer política, oras, tem muita gente fazendo isso. E, principalmente, não xingue quem está travando o bom debate. Afinal de contas, a saída para contrapor uma voz não é forçar o silêncio, mas sim outra voz. O silêncio dói, machuca. O diálogo é música. Sinto um amargo na boca quando vejo pessoas que, sob o risco de verem seus argumentos naufragarem em sua própria arrogância, tentam calar o outro.
Muita gente simplesmente repete mantras que lê na internet, ouve em bares ou vê na igreja e não para para pensar se concorda ou não realmente com aquilo. É um Fla-Flu, um nós contra eles cego, que utiliza técnica de desumanização, tornando o outro uma coisa sem sentimentos. Isso é muito útil durante eleições polarizadas, mas péssimo para o cotidiano.
Somos seres complexos com múltiplos níveis de relações. Tenho colegas conservadores politicamente, mas liberais em comportamento que guardo em muito mais estima do que colegas progressistas politicamente, mas com um discurso e prática comportamentais tacanhos. Afinal de contas, não é possível defender a liberdade dos povos e transbordar machismo, tratando a companheira como uma serva em casa.
É mais fácil pensar de forma contrária, preto no branco, os de lá, os de cá. Mas, dessa forma, a vida vai ficando mais pobre. Sem o direito ao convívio diário com aqueles que pensam de forma diferente, estancamos em nossas posições, paramos de evoluir como humanidade. Do outro lado sempre estará um monstro e do lado de cá os santos. Isso sem contar a impossibilidade de apreciar tudo o que o outro tem de melhor – do ombro amigo à conversa inflamada em uma mesa de bar.
Neste domingo e para o segundo turno, onde ele ocorrer, sugiro que busquem a tolerância no diálogo, mesmo que firme e duro, e ao questionarem o outro sobre as raz ões que o levam a determinada escolha, não tenha medo de colocar à prova a sua própria opção. Que se for forte o bastante, resistirá ao contato com outra ideia. Nossa natureza não é de certezas, mas de dúvidas e falhas que só conseguem ser melhor percebidas nesse contato.
Por fim, quem rompe a barreira do conformismo e tenta debater política – independentemente do seu posicionamento – é taxado como chato, babaca ou subversivo. Ou seja, um mala sem alça que não entende que a cidade é um organismo autônomo que lhe presta um favor por deixar nela viver. E ainda é obrigado a ouvir coisas do tipo: “Ignora que ele vai embora”, “Ei! Estamos numa mesa de bar e você quer conversar de política? Deixa de ser idiota!”, “Você não curtiu a foto que postei no Face da minha rosquinha no café da manhã e quer agora que eu discuta política? Você se acha, né?”
O fato é que nós não nos sentimos donos da cidade em que vivemos. Acreditamos que somos ocupantes provisórios. Caso tivéssemos essa necessária sensação de pertencimento, participaríamos realmente da vida da metrópole e perceberíamos o quão importante são dias como hoje em que decisões para os próximos quatro anos serão tomadas.
Mas a cidade, como todos sabem, não nos pertence. Entregamos ela, há muito tempo, às indústrias de automóveis, às empreiteiras e às empresas de telefonia móvel, entre outras, que sabem do que a gente realmente precisa.
Fonte:
Blog do Sakamoto

O valor sem medida dos afetos



Na minha escola, era proibido jogar bola no pátio do recreio. As bolas haviam sido banidas pela direção. Mas a gente dava um jeito. Costumávamos levar o lanchinho em tapauer, já que as lancheiras eram “coisa de menina”. Os recipientes plásticos tinham uma dupla função. Depois de comer, fechávamos a tampa e eles faziam as vezes de bola. Um dia, fui parar na direção por isso. A diretora me fez duas perguntas. “É seu?” E depois: “menino, os pais não te ensinaram a dar valor às coisas?” Perdi a minha bola. Foi o meu primeiro contato explícito com o valor. Mais de uma década depois, fiz faculdade de engenharia. Uma das matérias que me encantava, e a única que acabei me destacando, foi matemática. Cursei obrigatórias e eletivas: cálculo diferencial e integral, álgebra, estatística, cálculo estocástico e econometria. No final, contente de avançar no fluxograma do curso, fiquei surpreso quando um professor me disse: “Agora você pega tudo isso, vai pro mercado financeiro e fica rico.” Por estranho que pareça, tive uma sensação parecida como quando fora repreendido na escola.
Dar e tirar valor
Depois do episódio da tapauer, fui educado que as coisas têm um valor em si mesmas. Um valor objetivo. Esse valor é representado por um número de unidades da moeda. O valor é medido pelo dinheiro. Embora o preço da coisa varie, existe um valor médio. É que as oscilações de oferta e demanda acabam convergindo, ao fim e ao cabo, num valor intrínseco. O dinheiro, por sua vez, se ganha com trabalho. O trabalho da gente também tem um valor. Esse valor igualmente varia, mas no final sucede uma média. Quem define essas médias, o preço das coisas e do trabalho, é o mercado. A nossa economia funciona pela lógica do mercado, de maneira que cada um receba o seu. Cada um possa ter acesso aos valores que faz jus. Para corrigir as distorções, existe o estado. O estado regula o mercado. O mercado em condições saudáveis exprime o equilíbrio da circulação dos valores na sociedade. Regular o mercado significa evitar que os preços desequilibrem o valor intrínseco das coisas e do trabalho, mantendo a ordem econômica. O dinheiro, portanto, permite medir simultaneamente o valor das coisas e o valor do nosso mérito, esforço e qualificação enquanto trabalhadores. A medida do dinheiro ordena tudo.
Mas uma coisa ficou latejando na minha cabeça desde a escola. Estou falando de um detalhe na segunda pergunta da diretora, depois que ela estabeleceu que a propriedade da tapauer era minha (ou dos meus pais). Ela falou em dar valor às coisas. Opa. Se as coisas têm um valor intrínseco, por que ela me exigiria dara elas algo? Por que as coisas afinal precisariam de mim, deste menino desobediente, para ter valor? Tem alguma coisa que não fecha. Talvez o valor não seja tão objetivo assim.
Volto a pensar no meu tapauer-bola, todo riscado das peladas do pátio, quase destruído. Qual era o valor daquilo pra mim? O valor do tapauer era afetivo. Eu estava me lixando pra quantidade de trabalho médio incorporada nele. Nem exprimia pra mim algum dinheiro que eu pudesse obter vendendo ou trocando a coisa. O tapauer não representava uma medida quantitativa. Era pra jogar bola ora! Uma atividade social e lúdica. Reunia os cupinchas no preciosíssimo tempo livre, entre as aulas sonolentas; um entreato de liberdade do tempo confinado e disciplinado pela escola. No tapauer, existia um valor subjetivo, relacional, nem por isso menos real, um valor todavia não reconhecido pelo poder constituído. A diretora não podia aceitar o valor afetivo do tapauer. Esta me educava a dar-lhe um outro tipo de valor. Que não era só valor de troca (comprometido com a deterioração), mas também valor de uso (guardar o alimento, sua função socialmente determinada). Mas os meninos recusávamos os valores de troca e de uso que nos eram cobrados a reconhecer. Nesse processo insurgente, desafiávamos não só a disciplina da escola, mas também a estrutura social íntima de nosso mundo. Contestávamos na práxis a lógica do valor. E éramos mais ricos por isso.
Fetiches e afetos
Quem sabe, o raciocínio valha pra todas as coisas. Todas com uma dimensão afetiva. As relações que crio com os outros pegam nas coisas. Sabe disso quem manuseia roupas de entes queridos falecidos, tão impregnadas de subjetividade. Tudo isso que nos faz sentir de tantos modos diferentes. Vale inclusive para as relações que crio comigo mesmo (o que não deixa de ser um outro). O valor medido por dinheiro não apreende a singularidade do que está em jogo. Aquela tapauer embutia um mundo inacessível para a métrica padrão. O valor afetivo se compõe de uma miríade de afetos que compartilhamos ao longo da vida. Com isso, na verdade, as coisas se abrem. Tornam-se peças de um quebra-cabeças maior, sem objetividade intrínseca. Os objetos se interconectam aos sujeitos na experiência. Assim, só pode haver objetos essencialmente parciais, que anseiam ontologicamente pelo preenchimento afetivo; bem como sujeitos parciais, que afetam porque não se bastam dentro de si.
No Capital, Marx fala do fetiche da mercadoria. No século 19, a antropologia inventou o conceito de fetiche para comprovar, agora com vezo científico, a inferioridade dos outros povos. Eram primitivos porque não conseguiam separar os objetos dos sujeitos. Viam entidades, potências míticas e qualidades sensíveis entranhadas em todo lugar. Eram incapazes de enxergar a coisa como coisa, o seu valor interno enquanto objeto separado do restante. Estavam presos a um mundo fetichizado. Marx vai dizer que os brancos ocidentais também vivem o seu fetiche. Conferem às coisas uma qualidade incorpórea que jamais esteve lá “objetivamente”, e a partir do que se relacionam e organizam a sociedade. Precisamente, o valor. Tal credo se arraigou tanto nessa tribo que a maioria o toma por inquestionável. Como se, de fato, as coisas tivessem um valor objetivo, e a economia não passasse da movimentação mais ou menos espontânea, mais ou menos organizada, dos inumeráveis valores sociais. Como se o dinheiro pudesse representar o lugar, o tempo e o direito de cada qual, segundo a ordem cósmica da economia capitalista. Como se o mercado fosse dotado do atributo demiúrgico de atribuir a medida a todas as coisas. O ápice da naturalização do valor se dá com a propriedade. Isto fica claro quando a propriedade é de alguma forma problematizada, ao que se seguem o terror, o pânico, a ira dos proprietários, como se a própria harmonia universal tivesse sido ameaçada.
O leite que bebo no café da manhã passou por um longo percurso, da fazenda à fábrica de processamento, à embalagem e controle de qualidade, ao sistema de distribuição e varejo. Não posso ver o circuito produtivo por trás do leite que chega prontinho na prateleira. Quando passeio pelo shopping, tampouco posso saber de onde vêm as roupas na vitrine. Se foram confeccionadas por bolivianas em regime de trabalho semi escravo na Zona Norte de São Paulo, por adolescentes púberes em sweatshops na Mauritânia, ou made in China. Não fui educado pra me preocupar com isso. O que deve importar é a etiqueta, com que posso avaliar se o produto vale o preço. Mil e uma operações de trabalho foram abstraídas, e junto dessa abstração uma montanha de relações entre patrão e empregado, exploratórias, racistas, sexistas, insalubres, violentas, toda a organização do trabalho. O problema do valor não está só em quantificar o essencialmente inquantificável, mas também apagar uma relação social desigual. Apagá-la convenientemente.
A proposta socialista
Nesse contexto, uma proposta que se vê por aí consiste em racionalizar a lógica do valor. É medir criteriosamente o quanto vale cada coisa, seu justo preço. Esse valor pode ser calculado pelo tempo de trabalho incorporado na coisa, o tempo socialmente necessário para a sua produção. Segundo essa lógica, o valor do trabalho também pode ser medido segundo critérios racionais. É preciso desenvolver essa ciência, que calcule cuidadosamente a equivalência entre as coisas e o trabalho. Cada ofício numa escala de valorização, um coeficiente xisque você multiplica pelo tempo ípsilon efetivamente trabalhado, tendo como resultado o seu salário. O preço do leite passa a embutir os custos envolvidos no conjunto de operações produtivas, da vaca até a mesa. As roupas igualmente são dotadas de um valor que faça jus ao trabalho dos envolvidos, sem margem para o sobrepreço. Remuneram-se, com justiça, os trabalhadores envolvidos, pagam-se as cotas devidas e cientificamente justificadas, sem gerar lucro para ninguém. A lógica do valor passa a ser aplicada por uma razão superior, com critérios científicos, regulando o mercado de modo que não sucedam desequilíbrios e injustiças. Essa é, grosso modo, a proposta socialista. Instaurar uma razão planificadora da produção, um estado-plano, que decida o que produzir, como, onde, quanto e para quê. Foi tentado algo parecido, em alguns momentos, no socialismo real do Leste Europeu e URSS. Atribuíam-se metas, cotas, tabelas, padrões, fórmulas, toda uma matematização para que a economia funcionasse ordenadamente, com base nos valores de uso. Sem assim concentrar lucro, renda, propriedade, os males capitalistas, mediante uma cadeia de equivalências estritamente racional e metódica.
Fico pensando, nessa sociedade, se poderíamos jogar bola com o tapauer na escola. É bem provável que eu teria sido repreendido da mesma maneira. Talvez a diretora alterasse a primeira pergunta. Em vez do “É seu?”, diria, em tom moral, “Você sabe que foi o Povo quem fez isso?”. Ou, mais sinistra: “Você sabe que isso é do Estado?”. A segunda pergunta permaneceria igual, sugerindo que não dei o mesmo valor que o Povo ou o Estado dão. Tenho a suspeita que o socialismo real fracassou não pela falta de concorrência ou motivação produtiva, essas bobajadas que contam pra gente, como se no mundo capitalista os peixes grandes não colaborassem promiscuamente entre si, forjando o ideal de competividade apenas para a base, para que as pessoas passassem a digladiar-se tolamente umas contras as outras, na arena de trabalho, em vez de se aliarem todas contra os patrões e o sistema injusto. É possível ponderar que o socialismo real tenha fracassado por continuar considerando o valor como objetivo, no que não difere muito do velho capitalismo. Ainda que esse valor objetivo seja chamado “valor de uso”. Busca-se erigir uma sociedade unitária, disciplinada, harmônica, comportada. Porém, fechada a novos usos, aos atributos sensíveis, às dinâmicas afetivas e às potências míticas, a tudo isso que a vida é mais, além das tabelas e fórmulas matemáticas, além da lógica do valor. Esses socialistas seguiram Marx ao pé da letra. Mas ao combater o fetiche negativo da mercadoria, mataram o fetiche positivo. Alienaram-se da magia da vida. Perderam de vista o excesso de desejo e imaginação que faz  as pessoas plenamente livres. Numa palavra, o imensurável. O que não tem nem pode ter medida.
O capitalismo afetivo
O próprio capitalismo se adaptou para captar o valor afetivo. Os capitalistas não fizeram isso porque sejam bonzinhos, mas porque é mais eficiente e lucrativo fazê-lo. Não consigo afastar a ideia que foi assim que o capitalismo real superou o socialismo real. A sociedade socialista proibia múltiplos usos e liberdades. Retificava todos conforme a reta razão da ciência e do estado. Aplicava uma moral de bom cidadão socialista, uma moral pouco permeável em qualquer lugar que se olhasse. Já a sociedade capitalista, mais maleável e transigente, integrava os excedentes e desvios em sua própria dinâmica. Se uma se preocupava em negar o desejo e proibir o excesso, a outra preferia governá-los.
Querem ouvir rock´n roll e dançar moonwalk? ótimo, venderemos todo o tipo de música. Querem agitar a vida sexual? ótimo, eis uma cultura pornô, sex shops, michês e prostitutas de luxo. Querem conhecer a natureza selvagem, entrar em contato com o cosmos, defender o verde da floresta contra as forças malignas do progresso? Ecoturismo, esoterismo, ecologismo! Querem a revolução? venderemos camisetas de Che Guevara… Pouco importa o quê, it´s business stupid.
Lá pelos anos 1960 e 1970, o capitalismo sofreu uma grande transformação. O novo espírito do capitalismo funciona a partir do valor afetivo. Sua métrica muda completamente.  Opera a partir do imensurável. Os cabeças do novo capitalismo reconhecem não existir razão intrínseca nas coisas ou no trabalho, do que se poderia atribuir um valor objetivo. O valor não tem mais como ser medido, por exemplo, pelo tempo de trabalho incorporado nele, por qualquer outra aritmética meramente quantificadora. O valor afetivo rigorosamente não tem preço, não pode ser submetido à velha lógica dos valores de troca e de uso. Nesse cenário, não seria irracional uma propaganda televisiva mostrar meninos saudáveis e alegres jogando futebol com tapauers no pátio da escola. Claro, nessa hipótese, seriam tapauers diferenciados, recipientes adaptados ao multiuso, com um design especial para famílias descoladas. E é esse componente afetivo que predominará na definição do preço, e não admiraria se esses tapauers modernos custarem bem mais caro. A atribuição de valor a um tênis pouco tem a ver com o circuito produtivo de confecção e distribuição. Tem muito mais a ver com a marca, a eficácia da publicidade, as imagens e os afetos que os publicitários consigam coalhar como parte integrante do produto. Minha escola estava mesmo desatualizada. O próprio capitalismo já aprendeu a dar valor afetivo às coisas.
Isto não significa que o valor desapareça como fetiche hoje. Mas perde qualquer ambição de representar objetivamente as coisas e o trabalho. A medida perde a fixidez, se torna um limiar. A economia política clássica e a neoclássica entram em crise. É o canto do cisne das pretensões liberais clássicas, a aparição do neoliberalismo. O neoliberalismo exprime o tipo de governo de quando o capitalismo desiste da lógica quantitativa do valor. Esse novo modo de governar se regula pelas finanças. Não que as finanças sejam algo novo no capitalismo. Na realidade, a relação de débito e crédito vem desde o neolítico precedendo a própria existência da moeda, e o sistema bancário existe pelo menos desde os cavaleiros templários, no século 12.  No entanto, agora, o sistema financeiro se reveste de absoluta primazia. É ele quem passa a mediar o valor. Menos como uma cúpula superpoderosa nalgum lugar específico, do que como uma mediação interna a todas as operações econômicas. O crédito, o investimento e os juros compõem inextricavelmente o funcionamento econômico. A vida é financeirizada.
Comunismo da desmedida
As finanças são o único modo de conviver com a ruptura da medida. As bolsas de valores flutuam junto com as incertezas, as nebulosas, as ondas de choque e as vertigens da nova economia. Bilhões se criam aparentemente do nada, outros bilhões evaporam, fábulas mudam de mãos a altíssimas velocidades. O valor se dissolve como fluxo. E flui sem parar sobre as fronteiras nacionais e regionais. Nesse modo de governar, não se pretende mais gerenciar a equivalência para manter o equilíbrio do todo econômico. Agora, o desafio é governar a não-equivalência, assumindo a turbulência inerente do mundo da produção. Porque não tem mais receita. Não tem outro jeito de continuar sustentando a desigualdade e a injustiça. Então é caso de governar a instabilidade mesma, garantir o valor em condições de vazamentos alucinados de produtividade. E assim desconjurar a turbulência e controlar o seu assanhamento político: o tumulto. A governabilidade depende da capacidade de administrar uma crise tornada permanente. O neoliberalismo vem junto do hard power contra a disseminação global do tumulto. Por outro lado, as pretensões racionais e racionalizantes do socialismo e das esquerdas se mostram nostálgicas, obsoletas. Hoje, as forças produtivas se acham muito mais sofisticadas, e não existe marcha ré na história. Em vez do plano homogêneo que o dinheiro pode medir e o mercado organizar, como nos sonhos fordistas do pós-guerra; sucedem inúmeros planos entrecruzados, heterogêneos, incompossíveis. Muitas esquerdas sonham com um futuro passado.
No rodamoinho financeiro e suas bolhas, se torna indispensável uma outra matemática. Outra natureza da medida, outras premissas e outras variáveis, que levem em conta a imensurabilidade, a irreversibilidade, a heterogênese, a homeorrese. A história da matemática marcha ombro a ombro com o desenvolvimento financeiro.  A econometria se esforça para compreender mercados multidimensionais, lógicas não-lineares, fractais, movimentos brownianos, processos de Wiener, teoria do caos, cadeias de Markov, cálculo estocástico. Não é por acaso. E também não foi por acaso que meu professor (curiosamente, ele se chamava Milioni) disse que eu poderia ficar rico com a econometria. Eu costumava estudar matemática pra entender coisas como o conjunto de Mandelbrot ou o paradoxo das paralelas, não me ocorrera que poderia servir para trabalhar para o sistema financeiro. Deja vu. Era novamente o menino fazendo um uso inútil, desperdiçando as coisas com seus amiguinhos não-enquadrados. Comecei a pensar, então, se não era possível resistir do mesmo modo clandestino e subversivo quando éramos crianças. Organizar com os cupinchas, na alegria e desobediência, uma práxis. Quer dizer, jogar futebol matematicamente, além da imposição do valor pelo sistema financeiro e o neoliberalismo. Nem tanto renegar o poder de abstração e o efeito de liquefação das finanças, mas roubar-lhe o fogo, numa ação coletiva dentro e contra o próprio sistema.
Hoje vejo como essa pergunta não se orienta por algo a fazer. A revolução e o comunismo não são algo ainda a ser feito. Projetá-los num futuro bloqueado é tão impotente quanto identificá-los num passado frustrado. É que essa desmedida já está sendo realizada coletivamente por muitos grupos, dispersos, imanentes, com maior ou menor grau de ânimo rebelde. Organizam-se produtivamente a partir do valor afetivo: maximizam afetos ativos e bons encontros, minimizam os passivos e ruins. Resistem quando necessário. Reexistem sempre. Do menos fazem o mais: na favela, no devir índio, na internet bárbara. Recusam a imposição do valor, noutras palavras, o puro mando da forma de governo contemporânea. Pautam-se mais pelo compartilhamento que pelas trocas, pela cooperação do que concorrência, pela paridade e camaradagem em vez da verticalização. Reafirmam-se no singular. Conceitualmente, podem ser a multidão de que fala Negri, as máquinas nômades de Deleuze e Guattari, o povo antropófago por vir, a classe selvagem sem nome. Essas experiências reafirmam o propósito de viver além do valor. Anseiam por um viver bem. Propugnam por uma espécie de comunismo pós-moderno e heterodoxo. Vivem na pele, com o que se relacionam ao infinito, uma insuficiência intensiva e qualitativa.
Mas aqui não cabe, esquematicamente, opor o quantitativo ao qualitativo, o produto ao processo, o extensivo ao intensivo, a normalidade vazia à superabundância de uma vida vivida com coragem e generosidade. Queremos o pátio para nós e não aceitaremos mais as injunções da diretora. Queremos a matemática avançada, o cálculo estocástico, o sistema financeiro como um todo, todos seus recursos e artimanhas. É reapropriar tanto a riqueza social, quanto o poder líquido de mobilizá-la em suas infinitas escalas e níveis. Queremos autonomia para produzir sem valor. Queremos tudo, porque é tudo nosso. Quero a bola de volta.
—-
* Devo doses cavalares deste ensaio ao livro O casaco de Marx (Peter Stallybrass, trad. Tomaz Tadeu, Autêntica), além dos 3 livros do Capital e dos Grundrisse, de Marx, e toda a crítica à teoria do valor elaborada por Antonio Negri e os autonomistas operaístas, como Christian Marazzi, Carlo Vercellone, Andrea Fumagalli, Giuseppe Cocco e Gigi Roggero.
** Agradeço ainda à diretora da escola e ao professor de econometria.

Fonte:
Por
Bruno Cava, no Quadrado dos Loucos
Outras Palavras

2 de out. de 2012

"Como mudar o mundo"


Morre Eric Hobsbawm, uns dos maiores intelectuais do século XXI
Última obra  de Eric Hobsbawm debateu Marx — que via na arte, mais que no trabalho, essência da atividade humana
Resenha de Hobsbawm, EricComo mudar o mundo: Marx e o marxismo 1840-2011(How to change the world: Marx and Marxism 1840-2011), 2011: Little  Brown, 470 pp.

Em 1976, muita gente no ocidente pensava que o marxismo era ideia a favor da qual se podia facilmente argumentar. Em 1986, a maioria das mesmas pessoas já não pensavam como antes. O que aconteceu nesse entretempo? Estarão todos aqueles marxistas enterrados sob uma pilha de filhos engatinhantes? Todo o marxismo terá sido desmascarado, com seus vícios expostos por novas pesquisas revolucionárias fortes? Terá alguém tropeçado em manuscrito perdido, no qual Marx confessou que era tudo mentira, piadinha?
Estamos falando, atenção, sobre 1986, poucos anos antes do colapso do bloco soviético. Como Eric Hobsbawm lembra nessa coleção de ensaios, não foi o colapso do bloco soviético que levou tantos crentes tão fiéis a mandar para a lixeira os cartazes de Guevara. O marxismo já estava em pandarecos desde alguns anos antes de o muro de Berlim vir abaixo. Uma das razões da debacle foi que o tradicional agente das revoluções marxistas, a classe trabalhadora, havia sido varrida do mundo por mudanças do sistema capitalista – ou, pelo menos, já não era maioria significativa. É verdade que o proletariado industrial encolheu muito, mas Marx jamais disse que a classe trabalhadora fosse composta só de proletários da indústria.
Em Das Kapital, os trabalhadores do comércio aparecem no mesmo nível que os trabalhadores da indústria. Marx também sabia muito bem que o maior, e muito maior, grupo de trabalhadores assalariados de seu tempo não eram os trabalhadores da indústria, mas os empregados domésticos, a maioria dos quais eram mulheres. Marx e seus discípulos jamais supuseram que alguma classe trabalhadora pudesse avançar sozinha, sem construir alianças com outros grupos oprimidos. E, embora o proletariado industrial devesse ter papel de liderança, nada permite supor que Marx supusesse que tivesse de ser maioria, para desempenhar seu papel.
Mas, sim, algo aconteceu, sim, entre 1976 e 1986. Acossada por uma crise de lucros, a produção de massa à moda antiga deu lugar a produção em menor escala, mais versátil, descentralizada e pós-industrial, a uma cultura ‘pós-industrial’ de consumo, de tecnologia da informação e da indústria de serviços. A terceirização e a globalização viraram a nova ordem do dia. Mas isso não implicou mudança essencial no sistema; só levou a geração de 1968 a trocar Gramsci e Marcuse por Said e Spivak. Ao contrário, o sistema estava então mais poderoso que nunca, com a riqueza ainda mais concentrada em poucas mãos e as desigualdades de classe crescendo rápidas. Foi isso, ironicamente, que fez disparar as esquerdas em busca da saída mais próxima.
As ideias radicais degradadas, oferecidas como mudança radical, pareciam cada vez mais implausíveis. A única figura pública que denunciou o capitalismo nos últimos 25 anos, diz Hobsbawm, foi o Papa João Paulo II. Duas ou três décadas depois, os covardes e fracos de coração assistiram à glória de um sistema tão exultante e impregnável, que só precisava cuidar de manter abertas as caixas de autoatendimento dos bancos em todas as ruas e esquinas.
Eric Hobsbawm, que nasceu no ano da Revolução Bolchevique, permanece amplamente comprometido com o campo marxista – fato que se deve destacar, porque é fácil ler seu livro sem se aperceber desse compromisso. Isso, pela consistência do saber do autor, não porque salte de galho em galho. O autor conviveu com tantas das turbulências históricas sobre as quais discorre, que é fácil fantasiar que a própria história falaria nessas páginas – efeito da sabedoria enxuta, que tudo vê, desapaixonada. Difícil pensar em outro crítico do marxismo, assim tão competente para refletir sobre as próprias crenças com tanta honestidade e equilíbrio.
Hobsbawm, é claro, não tem a onisciência do Espírito Absoluto hegeliano, apesar do saber cosmopolita e enciclopédico. Como muitos historiadores, não é muito afiado no campo das ideias e erra ao sugerir que os discípulos de Louis Althusser trataram O Capital de Marx como se fosse, basicamente, trabalho de epistemologia. Nem o Espírito de Hegel trataria o feminismo, sequer o feminismo marxista, com tão gélida indiferença, ou dedicaria só rápidas notas laterais a uma das mais férteis correntes do marxismo moderno – o trotskismo. Hobsbawm também pensa que Gramsci seja o mais original pensador que o ocidente produziu desde 1917. Talvez queira dizer o mais original pensador marxista, mas nem isso está absolutamente claro. Walter Benjamin, com certeza, seria candidato mais bem qualificado para esse trono.
Mas fato é que até os mais eruditos estudiosos de marxismo têm muito a aprender nesses ensaios. É parte, por exemplo, do fundo de comércio do materialismo histórico que Marx esgrimiu com decisão contra os vários socialistas utópicos que o cercavam. (Um deles acreditava que, no mundo ideal, o mar viraria limonada. Marx, sem dúvida, preferiria Riesling.) Hobsbawm, ao contrário, insiste em que Marx teria dívida substancial com esses pensadores, que iam “dos penetrantemente visionários, até os psiquicamente perturbados”. Fala claramente do caráter fragmentário dos escritos políticos de Marx, e insiste, acertadamente, em que a palavra “ditadura”, na expressão “ditadura do proletariado”, que Marx usou para descrever a Comuna de Paris, tem significado absolutamente diferente do que hoje se conhece. A revolução deveria ser vista não simplesmente como repentina transferência do poder, mas como prelúdio de longo, complexo, imprevisível período de transição. Dos últimos anos da década dos 1850 em diante, Marx já não considerava nem iminente nem provável qualquer repentina tomada do poder. Por mais que tenha elogiado entusiasticamente a Comuna de Paris, Marx pouco esperava dela. Nem a ideia de revolução seria simploriamente oposta à ideia de reforma, da qual Marx foi defensor persistente.
Como Hobsbawm poderia ter acrescentado, houve revoluções praticamente sem derramamento de sangue, e alguns espetacularmente sanguinolentos processos de reforma social.
No absorvente ensaio sobre A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra de Engels, o livro é apresentado como o primeiro estudo de todos os tempos sobre como lidar com toda a classe trabalhadora, não só com específicos setores das indústrias. Na opinião de Hobsbawm, a análise que ali se fez do impacto social do capitalismo ainda não foi superada, em vários aspectos. O livro não pinta seu objeto com cores suaves: a ideia de que todos os trabalhadores fossem famintos ou vivessem em miséria absoluta, ou que jamais ultrapassariam a linha da sobrevivência, não tem qualquer fundamento. Tampouco tem fundamento a burguesia que lá se vê, apresentada como bando de vilões de coração de pedra. Como tantas vezes acontece, cada um só vê o que já conhece: Engels, ele próprio, era filho de uma rico industrial alemão proprietário de uma fábrica de tecidos em Salford, e usava seus mal-havidos lucros para ajudar a alimentar, vestir e dar teto à família Marx — essa, sim, sempre à beira da miséria. Engels gostava de caçar raposas; herói de dois mundos, do proletariado e dos colonizadores irlandeses, sabia unir teoria e prática e amou apaixonadamente sua amante irlandesa da classe operária.
Marx antevia como inevitável a vitória do socialismo? Sim, como se lê no Manifesto Comunista, que Hobsbawm não concorda que seja documento determinista. Isso, em parte, porque Hobsbawm não discute o tipo de inevitabilidade que estaria em questão. Marx escreve às vezes como se as tendências históricas fossem forças da natureza e operassem como as leis naturais; mas, ainda assim, nada explica por que, depois do capitalismo, viria o socialismo, como resultado lógico.
Se o socialismo é historicamente predeterminado, por que tanto empenho na luta política? A explicação está em que Marx esperava que o capitalismo se tornasse cada vez mais explorador; e que a classe trabalhadora cresceria muito, em poder, em números e em experiência acumulada. Nesse quadro, os homens e mulheres trabalhadores, satisfatoriamente racionais, rapidamente encontrariam todos os motivos necessários para levantar-se contra seus opressores. Mais ou menos como, para os cristãos, o livre arbítrio que rege as ações humanas é parte de um plano preordenado por Deus, assim também, para Marx, o acirramento das contradições do capitalismo forçaria os homens e mulheres a, livremente, decidirem dar cabo dele. A ação humana consciente traria a revolução. O paradoxo está em que a ação livre consciente é, em certo sentido, predeterminada como em escrituras.
A verdade é que não se pode falar sobre o que homens e mulheres livres seriam obrigados a fazer em dadas circunstâncias, porque, se são obrigados a fazer, seja o que for, não são livres. É possível que o capitalismo esteja nas últimas, à beira da ruína, mas nada assegura que, depois dele, venha algum socialismo. Pode vir algum fascismo, ou a barbárie.
Hobsbawm nos lembra uma frase curta mas muito significativa do Manifesto Comunistapela qual, universalmente, todos os especialistas sempre passam apressados: o capitalismo, escreve Marx sinistramente, pode terminar “na ruína comum das classes concorrentes”. Não se deve descartar a possibilidade de que o único socialismo que talvez venhamos a conhecer seja o que nos for imposto por circunstâncias materiais, depois de uma catástrofe nuclear ou ecológica.
Como outros crentes do progresso infinito no século 19, Marx não considera a possibilidade de o engenho humano avançar tanto no campo da tecnologia, que acabe por se autodetonar. Aí está uma das várias vias pelas quais se pode demonstrar que o socialismo não é historicamente inevitável, como, de fato, nada é. Marx não viveu o suficiente para ver como a democracia social consegue subornar qualquer paixão revolucionária.
Poucos trabalhos mereceram tantos elogios das classes médias, com tanto embaraçoso fervor, quanto O Manifesto Comunista. Do ponto de vista de Marx, as classes médias foram, de longe, a força mais revolucionária na história humana, e sem seu empenho na luta pelos próprios objetivos e a riqueza espiritual que acumularam, o socialismo fracassaria. Esse, desnecessário dizer, foi dos mais agudos e certeiros prognósticos de Marx.
O socialismo no século 20 tornou-se mais necessário precisamente onde era menos possível: em regiões atrasadas do mundo, socialmente devastadas, politicamente obscurantistas, economicamente estagnadas, onde nenhum pensador marxista apareceu antes que Stalin sequer sonhasse em ali deitar raízes. Ou, pelo menos, tentar deitar raízes com o socorro massivo de nações azeitadas. Nessas condições terríveis, o projeto socialista está destinado a converter-se em monstruosa paródia dele mesmo.
Assim também, a ideia de que o marxismo leva inevitavelmente a essas monstruosidades, como Hobsbawm observa, “é tão racional e justificável quanto a tese de que o cristianismo levará necessariamente ao absolutismo papal; ou que todo o darwinismo levará à glorificação do livre mercado”. (Hobsbawm não considera a possibilidade de o darwinismo levar ao absolutismo papal – que bem se aplica, como descrição racional, a Richard Dawkins.)
Hobsbawm, contudo, lembra também que Marx foi, de fato, generoso demais com a burguesia, vício do qual não é muito frequentemente acusado. No momento em que surgiu o Manifesto Comunista, os sucessos econômicos eram muito mais modestos do que Marx imaginava. Numa curiosa arquitetura de tempos, o Manifesto descreveu, não o mundo que o capitalismo havia criado em 1848, mas o mundo que haveria depois de transformado, como era seu destino, pelo capitalismo. O que Marx tinha a dizer não era exatamente verdade, mas viria a ser verdade, digamos, à altura do ano 2000, resultado da transformação operada pelo capitalismo.
Até os comentários sobre a abolição da família foram proféticos: mais da metade das crianças nos países ocidentais avançados nascem hoje, ou são criadas, por mães solteiras; e metade de todas as moradias nas grandes cidades são ocupadas por um só morador.
O ensaio de Hobsbawm sobre o Manifesto comenta “a eloquência obscura, lacônica” e nota que, como retórica política “tem força quase bíblica”. “O novo leitor”, escreve ele, “dificilmente deixará de ser fascinado pela convicção apaixonada, pela brevidade concentrada, pela força intelectual e estilística desse extraordinário panfleto.” OManifesto inaugurou um novo gênero, um tipo de declaração política do qual se serviram artistas como os Futuristas e os Surrealistas, cuja redação e vocabulário audaciosos e as hipérboles de escândalo fizeram, dos próprios manifestos, obras de arte.
O gênero literário “manifesto” é uma mistura de teoria e retórica, de fato e ficção, programático e performativo, que ainda não foi tomado seriamente como objeto de estudo.
Marx, ele próprio, também foi artista. Pouco se fala sobre o quanto era extraordinariamente estudado e culto e o quanto investiu, de aplicado trabalho, no estilo literário de seus escritos. Ansiava por livrar-se do “lixo econômico” de Das Kapital, para poder dedicar-se integralmente ao seu grande livro sobre Balzac.
O marxismo trata de lazer, não de trabalho. É projeto que deve ser apoiado por todos que detestam ter de trabalhar. O marxismo afirma que as mais preciosas atividades são feitas “porque sim e deixe-me em paz”[1], e que a arte é, nesse sentido, o paradigma da autêntica atividade humana. O marxismo diz também que os recursos materiais que tornariam possível a sociedade onde seria possível essa vida humana já existem em princípio, mas são geridos de tal modo que a maioria é obrigada a trabalhar tão duro quanto trabalhavam nossos ancestrais no Neolítico. Fizemos, pois, extraordinários progressos e, ao mesmo tempo, progresso nenhum.
Nos anos 1840, argumenta Hobsbawm, não era de modo algum improvável concluir que a sociedade estivesse às portas da revolução. Improvável, isso sim, seria a ideia de que, em meia dúzia de décadas a política da Europa capitalista estaria transformada pela ascensão de partidos e movimentos das classes trabalhadoras. Pois foi o que aconteceu.
E foi nesse momento que a discussão sobre Marx, pelo menos na Grã-Bretanha, passou, de admiração cheia de cautelas, a, praticamente, histeria.
Em 1885, Balfour – e ninguém menos revolucionário que Balfour – comentou os escritos de Marx, elogiando a força intelectual e o brilho do raciocínio econômico. Muitos comentaristas liberais e conservadores levaram realmente muito a sério aquelas ideias econômicas. Quando as mesmas ideias assumiram a forma de força política, porém, começaram a aparecer os primeiros trabalhos ferozmente antimarxistas. A apoteose foi a espantosíssima revelação, por Hugh Trevor-Roper, de que Marx não trazia qualquer contribuição original à história das ideias.
A maioria desses críticos, aposto, teriam rejeitado a ideia marxista de que o pensamento humano é muitas vezes modelado, curvado, pela pressão de interesses políticos,  fenômeno que atende quase sempre pelo nome de “ideologia”.
Só recentemente o marxismo voltou à agenda planetária, ali metido, ironicamente, por um capitalismo agonizante. “Capitalismo em Convulsão” – em manchete do Financial Times em Londres, em 2008. Quando os capitalistas começam a falar sobre o capitalismo, aposte: o sistema está em estado crítico. Nos EUA, nenhum jornal (e nenhum capitalista), até agora, se atreveu tanto.
Há muito mais a admirar em How to Change the World. Numa passagem sugestiva sobre William Morris, o livro mostra que era lógico que brotasse em Londres uma crítica baseada nas artes e nos artesanatos, do capitalismo; em Londres, onde o capitalismo industrial avançado impunha ameaça mortal a todas as artes e artesanatos. Um capítulo sobre os anos 1930 traz fascinante relato das relações entre o marxismo e a ciência – e foi o único período, Hobsbawm anota, em que os cientistas naturais deixaram-se atrair em números significativos, pelo marxismo. Aparecia no horizonte a ameaça de um fascismo irracionalista; e os traços “iluministas” do credo marxista – a fé na razão, na ciência, no progresso humano e no planejamento social – atraíram homens como Joseph Needham e J.D. Bernal. Durante o renascimento histórico seguinte do marxismo, nos anos 1960 e 1970, essa versão do materialismo histórico seria deslocada pelos parâmetros mais culturais e filosóficos do chamado Marxismo Ocidental. De fato, a ciência, a razão, o progresso e o planejamento já eram então mais inimigos que aliados, em guerra contra novos cultos libertários, do desejo e da espontaneidade. Hobsbawm mostra, no máximo, uma simpatia ilustrada pelo pessoal de 1968, o que não surpreende, em membro eterno do Partido Comunista. A idealização, naqueles anos, da Revolução Cultural na China, ele sugere, com bastante razão, teria tanto a ver com a China quanto o culto do “bon sauvage”, no século 18, teria a ver com o Tahiti.
“Se algum pensador deixou marca que ainda se vê no século 20”, diz Hobsbawm, “foi Marx”. Setenta anos depois da morte de Marx, para o bem ou para o mal, um terço da humanidade vivia sob regimes políticos inspirados por seu pensamento. Bem mais de 20% continuam a viver. O socialismo foi descrito como o maior movimento de reforma da história da humanidade. Poucos intelectuais mudaram o mundo, de modo tão objetivo e prático. É coisa que se diz, mais, de estadistas, cientistas e generais, não de filósofos ou teóricos da política. Freud pode ter mudado a vida de muita gente, mas não se sabe que tenha mudado governos.
“Os únicos pensadores individualmente identificáveis que alcançaram status comparável” – escreve Hobsbawm – “são os fundadores das grandes religiões do passado; e, com a única possível exceção de Maomé, nenhum deles triunfou nem tão rapidamente, nem em escala comparável”. Mas poucos, como Hobsbawm destaca, previram que seriam tão célebres também pela miséria extrema ou pelo exílio de judeu atormentado por furúnculos, homem que observou um dia, falando de si próprio, que ninguém jamais escrevera tanto sobre dinheiro, nem vivera com menos dinheiro, que ele.
Vários dos ensaios reunidos nesse livro já foram publicado, mas dois terços deles eram inéditos em inglês. Os que não leiam italiano podem, agora, ler vários importantes ensaios de Hobsbawm editados primeiro naquela língua, entre os quais três importantes revisões da história do marxismo, de 1880 a 1983. Bastariam esses ensaios, para tornar valiosíssimo o novo volume, mas há mais, sobre o socialismo pré-Marx, Marx sobre as formações pré-capitalistas, Gramsci, Marx e o trabalhismo, que ampliam consideravelmente o âmbito da nova seleção.
How to Change the World é o trabalho de um homem que chegou a idade em que a maioria de nós dar-se-á por feliz se conseguir sair sozinho do fundo da poltrona, sem precisar de duas enfermeiras e um guindaste, mestre também da pesquisa histórica. Não será, com absoluta certeza, o último trabalho desse espírito indomável.

[1] Orig. “the most precious activities are those done simply for the hell of it”. Tradução impossível, sem perder o que o autor escreveu. Mais uma tradução tentativa precária. Há outras. (NTs)
Fonte:
Por
Por Terry Eagleton, do London Review of Books | Tradução: Coletivo VilaVudu
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