30 de abr. de 2012

Um Código sem floresta

Dilma terá de vetar projeto aprovado com o voto de boa parte da base parlamentar - Ed Ferreira/AE


O Congresso brasileiro aprovou nessa semana um novo Código Florestal. As avaliações são unânimes em dizer que foi o maior retrocesso no arcabouço institucional das políticas socioambientais no Brasil desde a ditadura. Isso não é exagero ou retórica para um projeto que anistia os desmatamentos ilegais ocorridos até junho de 2008, com perdão das multas e desobrigação de recuperar o dano ambiental. Fez, está feito. Quem cumpriu a legislação, em vez de ser premiado, reconhecido, fica no prejuízo. Além disso, facilita a vida de quem quer continuar desmatando, abrindo brechas e exceções que permitem a redução das reservas legais e das áreas de preservação permanente e premiando o produtor que infringiu a legislação com acesso a crédito subsidiado do governo.



A principal justificativa é que precisamos aumentar a produção de alimentos para um mundo que já ultrapassou a marca de 7 bilhões de pessoas. Parece um objetivo nobre, mas a história não é bem assim. Basta lembrarmos que temos cerca de 200 milhões de bovinos no Brasil, que ocupam aproximadamente 200 milhões de hectares de terra. Uma produtividade de quase um boi por hectare, enquanto na vizinha Argentina esse índice chega a três bois por hectare. Estudos mostram que é possível dobrar a produtividade pecuária no Brasil a baixo custo, pois existe tecnologia acessível. Isso significa liberar 100 milhões de hectares, área bem maior que as ocupadas pela soja, cana, café, milho, arroz, feijão, batata, mandioca, etc, somadas.
Só esse exemplo mostra que é possível dobrar a produção sem derrubar um pé de árvore. É possível ainda expandi-la com a recuperação das áreas degradadas e abandonadas, que podem chegar a outros 100 milhões de hectares. Portanto, o que está em jogo não é a produção de alimentos, mas sim um modelo de desenvolvimento predatório, que maximiza o lucro no curto prazo e deixa para a sociedade um passivo ambiental gigantesco.
A escolha do Brasil se dá na encruzilhada da civilização. Não é possível ignorar os alertas da ciência para a realidade do aquecimento global e as drásticas mudanças no clima do planeta. Não podemos mais perder tempo com “bolhas” de prosperidade ilusória que custam os recursos de mil anos e se desfazem em menos de uma década. A encruzilhada da civilização é, sobretudo, de natureza ética.
A presidente Dilma terá que fazer a escolha: pactuar com esse modelo que gera degradação ambiental, privatiza o lucro e transfere os prejuízos para o restante da sociedade ou vetar o projeto e recolocar a discussão em outro patamar – o do desenvolvimento sustentável.
Vetar um projeto aprovado com o voto de boa parte da própria base parlamentar pode não ser uma situação confortável para a presidente, mas foi o próprio governo quem permitiu que ela chegasse a esse nível. Todos os relatores eram da base do governo e eram ruralistas confessos ou neorruralistas. O resultado não poderia ter sido diferente, tinha que dar num estrondoso retrocesso. Agora, entra em cena a “disputa” entre ruralistas e governo.
Já estão discutindo quais pontos podem ser vetados sem melindrar os interesses da bancada ruralista. Torcemos para que a presidente realmente cumpra sua promessa de campanha e não faça uma espécie de maquiagem legal apenas para não ficarmos tão ruim assim na foto da Rio+20. O que interessa é nosso futuro e essa foto será impossível de retocar caso o projeto seja sancionado.
O projeto anistia as áreas ilegalmente ocupadas até junho de 2008 nas matas ciliares, nas encostas de morros, em mangues, nas reservas legais de propriedades de até quatro módulos fiscais (que pode chegar a 440 hectares, dependendo da região do País) e muitas outras áreas sensíveis. A anistia está espalhada em inúmeros artigos e parágrafos ao longo de todo o projeto. Muitos deles não podem ser vetados sem, com isso, subtrair igualmente do texto importantes instrumentos de proteção ambiental. Isso porque em muitos casos a exceção está junto com a regra principal, que é boa. A presidente não pode vetar apenas parte de uma frase, somente toda ela.
Para cumprir sua promessa eleitoral, a presidente Dilma teria que vetar “propostas que reduzam áreas de reserva legal e preservação permanente”. Novamente nesse caso temos uma lista bem grande de vetos. Mas o que deveríamos estar discutindo não é nada disso. O Brasil é uma potência ambiental e poderíamos estar discutindo de que forma valorizar nossos ativos para construirmos um país justo, com geração de emprego de qualidade e renda sem degradação ambiental, investimento em tecnologia e inovação que permita ao Brasil liderar a transição para o desenvolvimento sustentável, para a economia de baixo carbono.
Esse novo Código Florestal não representa a competição pelo caminho de cima, do ganho de produtividade como fator impulsionador da economia. Por isso, não há outra escolha a fazer, senão vetar tudo. Por isso pedimos o veto total. Dilma, veta tudo.
Fonte:
Por:
MARINA SILVA, ex-ministra do meio ambiente. 
O Estado de S. Paulo






Que carro você tem?


A quarta parte do espaço público da cidade de São Paulo é ocupada por veículos particulares. Isso, sem dúvida, ocorre em detrimento da utilização desse mesmo espaço para finalidades mais socializadoras e menos individualistas. Contudo, a expectativa de que esse quadro possa mudar parece estar na dependência de fatores pouco discutidos. Não se trata apenas de criar regras que forcem a socialização dessa porção física da maior cidade do Brasil; trata-se de mudar uma mentalidade que reserva ao automóvel um espaço no imaginário talvez até bem maior do que esses 25%.
Carro simboliza liberdade, independência; ele confere, ao seu feliz proprietário, atributos altamente desejáveis. Não obstante tratar-se de um bem indispensável ao desempenho das atividades profissionais de boa parte da população, ser dono de um automóvel é um objetivo a ser alcançado na vida, uma conquista não menos almejada que a casa própria ou o diploma. Quanto mais sofisticado é o carro, maior o ganho social. Ter um automóvel atesta competência, inteligência, sagacidade, dá status e faz crer que seu possuidor é até mais atraente, mais bonito, mais desejável.
“Que carro você tem?” – é uma pergunta que muita gente faz aos outros, e até a si mesmo, simplesmente porque o automóvel exerce fascínio, atrai, conquista, encanta, é fetiche. Seu carro define quem você é. É, pois, objeto de desejo e, como tal, integra a própria personalidade do adquirente. Aquele que se torna dono de um carro adquire um diferencial social, cresce aos seus próprios olhos e aos olhos dos outros. Há tempos, o carro desfruta de personalidade. Tornou-se membro da família e reclama espaço, espaço este que vem conquistando cada vez mais, até chegar a esta quarta parte de São Paulo da qual estamos falando.
Pensar em fazer recuar essa conquista espacial do automóvel implica numa mudança de mentalidade. Até lá, os 25% permanecem ou mesmo avançam, visto que refletem tão-só um espaço imaginário, simbólico, que tem a ver com a própria imagem social incansavelmente procurada em uma sociedade voltada ao consumo, uma sociedade onde não ter carro nos expõe até mesmo à discriminação. Não ter casa própria ou diploma é compreensível, mas não ter nem mesmo um carrinho usado é imperdoável. Não dispor de uma Brasília amarela e, naturalmente, a mina para levar à praia, é ser muito, mas muito pobre, é algo que faz mal para a saúde social do sujeito: sua imagem e sua autoimagem sofrem com isso. Daí as coisas serem como são: a quarta parte do espaço urbano toda ela reservada para eles, os automóveis, e seus felizes proprietários.
Cigarros e mentalidades
Tentador especular sobre isso. Mentalidades mudam, oras. É complicado, mas mudam. Vejamos um caso. Com o cigarro aconteceu uma mudança bastante significativa, mudança que se refletiu na diminuição do espaço urbano reservado ao fumo. A lei ajudou, ao editar as proibições e ao atribuir pesadas multas aos infratores. Contudo, lei é reforço, não resolve nada sozinha, apenas pelo fato de vigorar. Caso contrário, não haveria mais crimes, para os quais ela reserva as penas mais graves. A lei ajuda, reforça, mas não transforma mentalidades.
O que mudou então em relação ao cigarro? A edição de leis, somente? Não. Mudou a mentalidade. Esta nova mentalidade trouxe consigo uma considerável diminuição no status social do fumante. Ele perdeu charme, perdeu encanto, deixou de ser desejável, quando os atributos de elegância e de refinamento associados ao hábito de fumar foram sendo, pouco a pouco, alterados. Não demorou tanto tempo assim para que isso viesse a se refletir justamente no espaço urbano reservado aos fumantes e aos seus cigarros, uma vez que, até então, não se concebia um sem o outro, assim como hoje não se concebe o proprietário sem o equivalente espaço para seu automóvel. Ambos são como se fossem um, definindo-se reciprocamente: o carro que você tem diz quem você é.
Assim como o automóvel desfruta hoje de um verdadeiro culto, o cigarro também teve os seus dias de glória. Havia cinzeiros em aviões, em restaurantes, havia refinadas cigarreiras, piteiras, designers sofisticados para embalagens e mesmo cigarros 120 mm, coloridos, envoltos em anéis dourados. Fumar era muito chique. Fumar fazia diferença: era coisa de adulto, de gente grande, decidida, independente, que se impunha socialmente. Fumar passava uma mensagem de firmeza, decisão e determinação. Até o inesquecível 007 fumava antigamente. Que fim levou tudo isso? Nem mesmo o saudosismo conseguiu restaurar o velho charme de fumantes tão encantadores quanto os mais famosos astros de cinema. Acabou. No máximo, a sociedade tolera os fumantes, esses infelizes, coitados.
A mentalidade mudou. Não fumantes continuaram assim depois de adultos, e adultos fumantes abandonaram o triste vício, tornando-se os heróis que conseguiram “vencer” o hábito. Como todos os heróis, passaram a ser imitados. A imitação se propagou, as campanhas publicitárias fizeram outra vez o seu papel, agora na contramão, e finalmente a lei veio como reforço, para dar um basta frente aos resistentes e aos recalcitrantes, os que ainda insistem em desfrutar desse pequeno prazer. E a indústria? Simples. Foi confrontada com o prejuízo que o cigarro causava. Parece que funcionou. Ela sobrevive ainda, é verdade, mas onerada com impostos, assediada com processos indenizatórios e ainda pagando bem caro para publicar aquelas fotos nada atraentes nas embalagens do produto que fabrica.
Carro: solução ou problema?
Ora, o cigarro, de solução que era, virou problema. Até então, socializava-se o seu ônus. Contudo, uma vez a população persuadida de que os inocentes não fumantes eram prejudicados pelos ora demonizados fumantes, tudo mudou. A mentalidade vigente aos tempos áureos do cigarro levava a pensar que um belo dia todos seriam fumantes, porque era elegante ser assim. Com isso, o custo social do cigarro era absorvido. Ninguém reclamava, e os espaços se abriam. O automóvel particular, no entanto, permanece como uma solução, e uma solução altamente desejável. Quem não tem carro, um belo dia, espera ter um, concentra nisso os seus esforços, porque é altamente desejável que seja assim. Ora, como todas as coisas que se tornam objeto de desejo, existe nesta escolha um ônus significativo, só que, no caso, um ônus que toda a sociedade se mostra pronta a assumir, tanto que assume, cedendo a quarta parte de seu espaço urbano ao automóvel.
Em se tratando de São Paulo, seria interessante que alguém mais afeito às matemáticas mostrasse, em reais, o valor de todos esses metros quadrados, fora o custo da poluição e seu reflexo na saúde. Não seria mesmo difícil demonstrar onde está o ônus implicado na adoção desse modelo de desenvolvimento. Nossa sociedade de consumo, porém, é toda voltada ao automóvel e à satisfação de seus felizes possuidores. Quanto mais um bairro é nobre, menos os moradores dependem do transporte público. O acesso aos melhores restaurantes, às melhores lojas, aos mais requintados locais onde existe apelo ao consumo, passa pelo automóvel, pois normalmente tudo isso funciona em lugares aonde só se vai de carro. Quem não tem carro simplesmente não vai. Há nisso uma seleção de públicos, e o exercício de uma sofisticada discriminação. Quem não tem carro conta menos, e faz parte do grupo que depende do transporte público. Essa condição, no entanto, é imaginada e vivida como provisória, na medida em que se estimula o sonho de todo mundo, um dia, ter um carro e, enfim, vir a ser feliz. Enquanto isso, o custo social desse modelo econômico toma ares democráticos e vai sendo tolerado.
Como esperar, dentro de tal mentalidade, que alguma coisa mude? Será possível algum dia pensar o transporte coletivo como desejável, e ver o carro como algo que, afinal, não faz tanta falta assim? Optou-se por um modelo econômico que gera essa mentalidade, alimentando o imaginário popular que, por sua vez, atua no sentido de perpetuar o modelo matriz. Diante dessa conjuntura, porém, seria muito difícil vencer as implicações econômicas que atuam em prol de sua manutenção. No caso do cigarro, não eram tantas; no caso da indústria automobilística, são implicações bem mais complexas. De um jeito ou de outro, sabe-se que a cidade não tem mais para onde se expandir. Um colapso é previsível e bastante provável, tudo indicando que alguma coisa terá de mudar nessa disputa por espaço vital. Em todo caso, enquanto isso tudo não muda, afinal, que carro você tem?
Fonte:
Por Maristela Bleggi Tomasini
Outras Palavras

28 de abr. de 2012

Desenvolvimento Inglês


O “milagre econômico inglês”, que deu origem ao capitalismo moderno, começou no século XVII, muito antes da chamada “revolução industrial”. De forma aproximada, pode-se dizer que seu início ocorreu entre a “República de Cromwell” (1649-1659) e o reinado de Guilherme III, o “rei holandês”, que governou a Inglaterra entre 1689 e 1702. Cromwell aumentou o poder naval da Inglaterra, fez guerra e venceu a Holanda (1652-1654) e a Espanha (1654-1660), as duas grandes potências marítimas do século XVII, e conquistou a ilha da Jamaica, em 1655, criando a primeira colônia do futuro Império Britânico. Além disto, Cromwell editou, em 1651, o 1º Ato da Navegação, que fechou os portos ingleses aos navios estrangeiros e se transformou no primeiro ato mercantilista agressivo da Inglaterra, fechando as fronteiras de sua economia nacional.
Três décadas depois, Guilherme III, enfrentou e venceu a França, na Guerra dos 9 Anos (1688-1697), iniciou a Guerra da Sucessão Espanhola (1702-1712), conquistou e submeteu a Irlanda e a Escócia. Ao mesmo tempo, no campo econômico, promoveu uma “fusão revolucionária” das instituições financeiras holandesas – que eram mais avançadas – com as finanças inglesas, criando o Banco da Inglaterra e um novo sistema de financiamento da dívida publica inglesa, atrelado à Bolsa de Valores e ao sistema de crédito da banca privada. Uma “revolução financeira” que deu à Inglaterra um poder de fogo econômico e militar – em qualquer lugar do mundo – muito superior ao das demais potências europeias.
Foi neste período que Wiliam Petty (1623-1687) – o pai da economia política clássica – escreveu dois ensaios que revolucionaram o pensamento econômico do século XVII: o Tratado sobre Impostos e Contribuições, publicado em 1662, e aAritmética Política, publicado depois da sua morte, em 1690. No momento em que Petty publicou sua obra, a Inglaterra ainda era uma potência de segunda ordem e se sentia cercada pela Holanda, Espanha e França. Esta era sua preocupação fundamental, quando formulou o conceito de “excedente econômico”, e estabeleceu uma relação direta entre o tamanho deste “excedente” e o poder internacional de cada país.
O que Petty não propôs nem previu foi que a Inglaterra virasse uma potência agressiva, e que seu expansionismo se transformasse num motor fundamental para o próprio crescimento do “excedente interno” da economia inglesa, consagrando uma estratégia desenvolvimentista pioneira na história do capitalismo. Basta dizer que a Inglaterra participou de 110 guerras entre 1650 e 1950, dentro e fora da Europa, e financiou este seu expansionismo bélico, depois da “revolução financeira” de 1690, através da sua “dívida publica”, que cresceu de 17 milhões de libras, em 1690, para 700 milhões em 1800, sem perder, em nenhum momento, a sua “credibilidade” nacional e internacional.
Resumindo e apressando a história, já é possível identificar alguns traços fundamentais e específicos deste “desenvolvimentismo inglês”:
  1. O desenvolvimento inglês foi ligado umbilicalmente à expansão do poder internacional da Inglaterra, e esta expansão foi muito importante para o aumento da “produtividade” e do “excedente” da economia inglesa.
  2. Neste contexto, pode se entender por que as guerras e a “preparação para a guerra” ocuparam um lugar tão importante no desenho estratégico do desenvolvimentismo do estado e dos capitais ingleses.
  3. O expansionismo inglês nunca foi liderado pela indústria ou pela burguesia industrial, e sim pelas suas elites ligadas à terra, às armas e às finanças.
    1. A estratégia de desenvolvimento da Inglaterra seguiu sendo basicamente a mesma, antes e depois da crítica ao mercantilismo, da economia política clássica, e também, antes e depois da “revolução industrial”.
    2. O próprio protecionismo de Cromwell manteve-se até o século XIX e só foi abandonado depois que a Inglaterra já era a maior potencia militar e econômica mundial.
    3. A finança, a dívida publica e a imposição progressiva da libra como moeda do “território econômico supranacional” da Inglaterra, foram os principais instrumentos de poder responsáveis pelo sucesso internacional do capitalismo inglês.
    4. Por fim, o desenvolvimentismo inglês não teria sido o mesmo sem a complementaridade dos EUA, que foi sempre sua principal fronteira de expansão financeira, e depois se transformou no herdeiro direto deste mesmo modelo inglês de desenvolvimento e expansionismo contínuo. Só como ponto de comparação, entre 1783 e 2012, os EUA já fizeram ou participaram de cerca de 85 guerras, ou seja, em média, também uma a cada três anos, como no caso da Inglaterra.
    Agora bem: este “desenvolvimentismo inglês” é o único caminho possível de sucesso? Não. Ele pode ser seguido por qualquer país? Também não. De qualquer forma, o importante é entender que este foi o caminho seguido pelas duas maiores potencias liberais da economia capitalista internacional.

    i Vide: P.J. Cain and A.G. Hopkins, “British Imperialism, 1688-2000”, Longman, London, 2001
     Fonte:
    Por José Luís Fiori
    Outras palavras

Por que o Brasil precisa das cotas


A importância histórica de certos fatos não é compreendida de imediato pelos que os testemunham. A decisão unânime do Supremo Tribunal Federal (STF), que derrotou, por onze votos a zero, a tentativa de anular as cotas para negros nas universidades é, provavelmente, um deles – por pelo menos dois motivos.
Primeiro, a rapidez com que foram superadas as visões mais preconceituosas sobre o tema. Há cerca de cinco anos, quando as políticas de reserva de vagas começaram a ser adotadas, um coro de condenações e desprezo erguia-se contra elas, na velha mídia – e não só lá. Nos jornais e TVs, “intelectuais” como Ali Kamel e Demétrio Magnoli tinham todo espaço para afirmar que as novas medidas iriam introduzir… racismo e discriminação no Brasil! A oposição espalhava-se pela classe média e a agressividade contra as cotas atingia (embora minoritária) as próprias universidades públicas. Em muito pouco tempo, porém, estas manifestações de superficialidade e histeria foram se dissipando. O conjunto de fatores que provocou a mudança inclui os expressivos resultados acadêmicos alcançados pelos cotistas, a emergência das periferias como sujeito social e político ativo e influente e o declínio dos antigos “formadores de opinião” – classe média e mídia conservadoras em primeiro lugar.
O segundo motivo é analisado em detalhes, no texto abaixo, por um mestre. Autor, entre outros, de O Trato dos Viventes e Introdução ao Brasil – um banquete nos trópicos, organizador do segundo volume da História da Vida Privada no BrasilLuiz Felipe Alencastro é um dos autores brilhantes da historiografia brasileira contemporânea. Um dos focos de seus estudos são, precisamente, as relações entre Brasil e África e como elas marcaram o país, desde a Colônia até o presente.
Em março de 2010, Alencastro foi convidado a depor, numa das audiências públicas que o STF promoveu sobre as cotas. Sintética, erudita e elegante, sua intervenção destaca dois aspectos cruciais: a) A discriminação dos afrodescendentes está na raiz de fenômenos que deformam nossa sociedade até hoje – entre eles, impunidade, violência policial e negação dos direitos e da cidadania; b) Os avanços materiais e culturais vividos no século XX não foram capazes de superar esta nódoa. Um século depois de abolida a escravidão, as estatísticas demonstram que o abismo de desigualdade entre brancos e negros não se fecha por si mesmo.
Uma terceira conclusão, natural, é negar o fatalismo. Os seres humanos não estão condenados a se submeter às heranças que infelicitam seu presente, nem a esperar que forças mágicas (o mercado?) as corrijam. É possível construir agora as políticas das transformação. As cotas são um caminho real. Os que as negam o fazem sob argumentos risíveis, que disfarçam muito mal a defesa de seus privilégios. A transcrição do depoimento de Alencastro vem a seguir. (A.M.)
No presente ano de 2010, os brasileiros afro-descendentes, os cidadãos que se auto-definem como pretos e pardos no recenseamento nacional, passam a formar a maioria da população do país. A partir de agora, na conceituação consolidada em décadas de pesquisas e de análises metodológicas do IBGE, mais da metade dos brasileiros são negros.
Esta mudança vai muito além da demografia. Ela traz ensinamentos sobre o nosso passado, sobre quem somos e de onde viemos, e traz também desafios para o nosso futuro.
Minha fala tentará juntar os dois aspectos do problema, partindo de um  resumo histórico para chegar à atualidade e ao julgamento que nos ocupa. Os  ensinamentos sobre nosso passado, referem-se à densa presença da população negra na formação do povo brasileiro. Todos nós sabemos que esta presença originou-se e desenvolveu-se na violência. Contudo, a extensão e o impacto do escravismo não tem sido suficientemente sublinhada.  A petição inicial de ADPF [Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, semelhante a Ação Direta de Inconstitucionalidade, ver Wikipedia] apresentada pelo DEM a esta Corte fala genericamente sobre “o racismo e a opção pela escravidão negra” (pp. 37-40), sem considerar a especificidade do escravismo em nosso país.
Na realidade, nenhum país americano praticou a escravidão em tão larga escala como o Brasil. Do total de cerca de 11 milhões de africanos deportados e chegados vivos nas Américas, 44% (perto de 5 milhões) vieram para o território brasileiro num período de três séculos (1550-1856). O outro grande país escravista do continente, os Estados Unidos, praticou o tráfico negreiro por pouco mais de um século (entre 1675 e 1808) e recebeu uma proporção muito menor – perto de 560 mil africanos – ou seja, 5,5% do total do tráfico transatlântico.[1] No final das contas, o Brasil se apresenta como o agregado político americano que captou o maior número de africanos e que manteve durante mais tempo a escravidão.
Durante estes três séculos, vieram para este lado do Atlântico milhões de africanos que, em meio à miséria e ao sofrimento, tiveram coragem e esperança para constituir as famílias e as culturas formadoras de uma parte essencial do povo brasileiro. Arrancados para sempre de suas famílias, de sua aldeia, de seu continente, eles foram deportados por negreiros luso-brasileiros e, em seguida, por traficantes genuinamente brasileiros que os trouxeram acorrentados em navios arvorando o auriverde pendão de nossa terra, como narram estrofes menos lembradas do poema de Castro Alves.
No século XIX, o Império do Brasil aparece ainda como a única nação independente que praticava o tráfico negreiro em larga escala. Alvo da pressão diplomática e naval britânica, o comércio oceânico de africanos passou a ser proscrito por uma rede de tratados internacionais que a Inglaterra teceu no Atlântico. [2]
O tratado anglo-português de 1818 vetava o tráfico no norte do equador. Na sequência do tratado anglo-brasileiro de 1826, a lei de 7 de novembro de 1831, proibiu a totalidade do comércio atlântico de africanos no Brasil.
Entretanto, 50 mil africanos oriundos do norte do Equador são ilegalmente desembarcados entre 1818 e 1831, e 710 mil indivíduos, vindos de todas as partes da África, são trazidos entre 1831 e 1856, num circuito de tráfico clandestino. Ora, da mesma forma que o tratado de 1818, a lei de 1831 assegurava plena liberdade aos africanos introduzidos no país após a proibição. Em consequência, os alegados proprietários desses indivíduos livres eram considerados sequestradores, incorrendo nas sanções do artigo 179 do “Código Criminal”, de 1830, que punia o ato de “reduzir à escravidão a pessoa livre que se achar em posse de sua liberdade”. A lei de 7 de novembro 1831 impunha aos infratores uma pena pecuniária e o reembolso das despesas com o reenvio do africano sequestrado para qualquer porto da África. Tais penalidades são reiteradas no artigo 4° da Lei de 4 de setembro de 1850, a lei Eusébio de Queirós que acabou definitivamente com o tráfico negreiro.
Porém, na década de 1850, o governo imperial anistiou, na prática, os senhores culpados do crime de sequestro, mas deixou livre curso ao crime correlato, a escravização de pessoas livres.[3] De golpe, os 760 mil africanos desembarcados até 1856, e a totalidade de seus descendentes, continuaram sendo mantidos ilegalmente na escravidão até 1888[4]. Para que não estourassem rebeliões de escravos e de gente ilegalmente escravizada, para que a ilegalidade da posse de cada senhor, de cada sequestrador, não se transformasse em insegurança coletiva dos proprietários, de seus sócios e credores, abalando todo o país, era preciso que vigorasse um conluio geral, um pacto implícito em favor da violação da lei. Um pacto fundado nos “interesses coletivos da sociedade”, como sentenciou, em 1854, o ministro da Justiça, Nabuco de Araújo, pai de Joaquim Nabuco.
O tema subjaz aos debates da época. O próprio Joaquim Nabuco, que está sendo homenageado neste ano do centenário de sua morte, escrevia com todas as letras em “O Abolicionismo” (1883): “Durante cinquenta anos a grande maioria da propriedade escrava foi possuída ilegalmente. Nada seria mais difícil aos senhores, tomados coletivamente, do que justificar perante um tribunal escrupuloso a legalidade daquela propriedade, tomada também em massa”[5].
Tal “tribunal escrupuloso” jamais instaurou-se nas cortes judiciárias, nem tampouco na historiografia do país. Tirante as ações impetradas por um certo número de advogados e magistrados abolicionistas, o assunto permaneceu encoberto na época e foi praticamente ignorado pelas gerações seguintes.
Resta que este crime coletivo guarda um significado dramático: ao arrepio da lei, a maioria dos africanos cativados no Brasil a partir de 1818 – e todos os seus descendentes – foram mantidos na escravidão até 1888. Ou seja, boa parte das duas últimas gerações de indivíduos escravizados no Brasil não era escrava. Moralmente ilegítima, a escravidão do Império era ainda, primeiro e sobretudo ilegal. Como escrevi, tenho para mim que este pacto dos sequestradores constitui o pecado original da sociedade e da ordem jurídica brasileira.[6]
Firmava-se duradouramente o princípio da impunidade e do casuísmo da lei que marca nossa história e permanece como um desafio constante aos tribunais e a esta Suprema Corte. Consequentemente, não são só os negros brasileiros que pagam o preço da herança escravista.
Outra deformidade gerada pelos “males que a escravidão criou”, para retomar uma expressão de Joaquim Nabuco, refere-se à violência policial.
Para expor o assunto, volto ao século XIX, abordando um ponto da história do direito penal que os ministros desta Corte conhecem bem e que peço a permissão para relembrar.
Depois da Independência, no Brasil, como no sul dos Estados Unidos, o escravismo passou a ser consubstancial ao state building, à organização das instituições nacionais. Houve, assim, uma modernização do escravismo para adequá-lo ao direito positivo e às novas normas ocidentais que regulavam a propriedade privada e as liberdades públicas. Entre as múltiplas contradições engendradas por esta situação, uma relevava do Código Penal: como punir o escravo delinquente sem encarcerá-lo, sem privar o senhor do usufruto do trabalho do cativo que cumpria pena prisão?
Para solucionar o problema, o quadro legal foi definido em dois tempos. Primeiro, a  Constituição de 1824 garantiu, em seu artigo 179, a extinção das punições físicas constantes nas aplicações penais portuguesas. “Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis”; a Constituição também prescrevia: “as cadeias serão seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos réus, conforme suas circunstâncias e natureza de seus crimes”.
Conforme os princípios do Iluminismo, ficavam assim preservadas as liberdades e a dignidade dos homens livres.
Num segundo tempo, o Código Criminal de 1830 tratou especificamente da prisão dos escravos, os quais representavam uma forte proporção de habitantes do Império. No seu artigo 60, o Código reatualiza a pena de tortura. “Se o réu for escravo e incorrer em pena que não seja a capital ou de galés, será condenado na de açoites, e depois de os sofrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a trazê-lo com um ferro pelo tempo e maneira que o juiz designar, o número de açoites será fixado na sentença e o escravo não poderá levar por dia mais de 50”. Com o açoite, com a tortura, podia-se punir sem encarcerar: estava resolvido o dilema.
Longe de restringir-se ao campo, a escravidão também se arraigava nas cidades. Em 1850, o Rio de Janeiro contava 110 mil escravos entre seus 266 mil habitantes, reunindo a maior concentração urbana de escravos da época moderna. Neste quadro social, a questão da segurança pública e da criminalidade assumia um viés específico.[7] De maneira mais eficaz que a prisão, o terror, a ameaça do açoite em público, servia para intimidar os escravos.
Oficializada até o final do Império, esta prática punitiva estendeu-se às camadas desfavorecidas, aos negros em particular e aos pobres em geral. Junto com a privatização da justiça efetuada no campo pelos fazendeiros, tais procedimentos travaram o advento de uma política de segurança pública fundada nos princípios da liberdade individual e dos direitos humanos.
Enfim, uma terceira deformidade gerada pelo escravismo afeta diretamente o estatuto da cidadania.
É sabido que nas eleições censitárias de dois graus ocorrendo no Império, até a Lei Saraiva, de 1881, os analfabetos, incluindo negros e mulatos alforriados, podiam ser votantes, isto é, eleitores de primeiro grau, que elegiam eleitores de 2° grau (cerca de 20 mil homens, em 1870), os quais podiam eleger e ser eleitos parlamentares. Depois de 1881, foram suprimidos os dois graus de eleitores e em 1882, o voto dos analfabetos foi vetado. Decidida no contexto pré-abolicionista, a proibição buscava criar um ferrolho que barrasse o acesso do corpo eleitoral à maioria dos libertos. Gerou-se um estatuto de infra-cidadania que perdurou até 1985, quando foi autorizado o voto do analfabeto. O conjunto dos analfabetos brasileiros, brancos e negros, foi atingido.[8] Mas a exclusão política foi mais impactante na população negra, onde o analfabetismo registrava, e continua registrando, taxas proporcionalmente bem mais altas do que entre os brancos.[9]
Pelos motivos apontados acima, os ensinamentos do passado ajudam a situar o atual julgamento sobre cotas universitárias na perspectiva da construção da nação e do sistema político de nosso país. Nascidas no século XIX, a partir da impunidade garantida aos proprietários de indivíduos ilegalmente escravizados, da violência e das torturas infligidas aos escravos e da infra-cidadania reservada ao libertos, as arbitrariedades engendradas pelo escravismo submergiram o país inteiro.
Por isso, agindo em sentido inverso, a redução das discriminações que ainda pesam sobre os afrobrasileiros – hoje majoritários no seio da população – consolidará nossa democracia.
Portanto, não se trata aqui de uma simples lógica indenizatória, destinada a quitar dívidas da história e a garantir direitos usurpados de uma comunidade específica, como foi o caso, em boa medida, nos memoráveis julgamentos desta Corte sobre a demarcação das terras indígenas. No presente julgamento, trata-se, sobretudo, de inscrever a discussão sobre a política afirmativa no aperfeiçoamento da democracia, no vir a ser da nação. Tais são os desafios que as cotas raciais universitárias colocam ao nosso presente e ao nosso futuro.
Atacando as cotas universitárias, a ADPF do DEM, traz no seu ponto 3 o seguinte título “o perigo da importação de modelos : os exemplos de Ruanda e dos Estados Unidos da América” (pps. 41-43). Trata-se de uma comparação absurda no primeiro caso e inepta no segundo.
Qual o paralelo entre o Brasil e Ruanda, que alcançou a independência apenas em 1962 e viu-se envolvido, desde 1990, numa conflagração generalizada que os especialistas denominam a “primeira guerra mundial africana”, implicando também o Burundi, Uganda, Angola, o Congo Kinsasha e o Zimbábue, e que culminou, em 1994, com o genocídio de quase 1 milhão de tutsis e milhares de hutus ruandenses ?
Na comparação com os Estados Unidos, a alegação é inepta por duas razões. Primeiro, os Estados Unidos são a mais antiga democracia do mundo e servem de exemplo a instituições que consolidaram o sistema político no Brasil. Nosso federalismo, nosso STF – vosso STF – são calcados no modelo americano. Não há nada de “perigoso” na importação de práticas americanas que possam reforçar nossa democracia. A segunda razão da inépcia reside no fato de que o movimento negro e a defesa dos direitos dos ex-escravos e afrodescendentes tem, como ficou dito acima, raízes profundas na história nacional. Desde o século XIX, magistrados e advogados brancos e negros têm tido um papel fundamental nesta reivindicações.
Assim, ao contrário do que se tem dito e escrito, a discussão relançada nos anos 1970-1980 sobre as desigualdades raciais é muito mais o resultado da atualização das estatísticas sociais brasileiras, num contexto de lutas democráticas contra a ditadura, do que uma propalada “americanização” do debate sobre a discriminação racial em nosso país. Aliás, foram estas mesmas circunstâncias que suscitaram, na mesma época, os questionamentos sobre a distribuição da renda no quadro do alegado “milagre econômico”. Havia, até a realização da primeira PNAD incluindo o critério cor, em 1976, um grande desconhecimento sobre a evolução demográfica e social dos afrodescendentes.
De fato, no Censo de 1950, as estatísticas sobre cor eram limitadas, no Censo de 1960, elas ficaram inutilizadas e no Censo de 1970 elas eram inexistentes. Este longo período de eclipse estatística facilitou a difusão da  ideologia da “democracia racial brasileira”, que apregoava de inexistência de discriminação racial no país. Todavia, as PNADs de 1976, 1984, 1987, 1995, 1999 e os Censos de 1980, 1991 e 2000, incluíram o critério cor. Constatou-se, então, que no decurso de três décadas, a desigualdade racial permanecia no quadro de uma sociedade mais urbanizada, mais educada e com muito maior renda do que em 1940 e 1950. Ou seja, ficava provado que a desigualdade racial tinha um caráter estrutural que não se reduzia com progresso econômico e social do país. Daí o adensamento das reivindicações da comunidade negra, apoiadas por vários partidos políticos e por boa parte dos movimentos sociais.
Nesta perspectiva, cabe lembrar que a democracia, a prática democrática, consiste num processo dinâmico, reformado e completado ao longo das décadas pelos legisladores brasileiros, em resposta às aspirações da sociedade e às iniciativas de países pioneiros. Foi somente em 1932 –  ainda assim, com as conhecidas restrições suprimidas em 1946 – que o voto feminino instaurou-se no Brasil. Na época, os setores tradicionalistas alegaram que a capacitação política das mulheres iria dividir as famílias e perturbar a tranquilidade de nação. Pouco a pouco, normas consensuais que impediam a plena cidadania e a realização profissional das mulheres foram sendo reduzidas, segundo o preceito, aplicável também na questão racial, de que se deve tratar de maneira desigual o problema gerado por uma situação desigual.
Para além do caso da política de cotas da UNB, o que está em pauta neste julgamento são, a meu ver, duas questões essenciais.
A primeira é a seguinte: malgrado a inexistência de um quadro legal discriminatório a população afrobrasileira é discriminada nos dias de hoje?
A resposta está retratada nas creches, nas ruas, nas escolas, nas universidades, nas cadeias, nos laudos dos IMLs de todo o Brasil. Não me cabe aqui entrar na análise de estatísticas raciais, sociais e econômicas que serão abordadas por diversos especialistas no âmbito desta Audiência Pública. Observo, entretanto, que a ADPF apresentada pelo DEM, na parte intitulada “A manipulação dos indicadores sociais envolvendo a raça” (pp. 54-59), alinha algumas cifras e cita como única fonte analítica, o livro do jornalista Ali Kamel, o qual, como é sabido, não é versado no estudo das estatísticas do IBGE, do IPEA, da ONU e das incontáveis pesquisas e teses brasileiras e estrangeiras que demonstram, maciçamente, a existência de discriminação racial no Brasil.
Dai decorre a segunda pergunta que pode ser formulada em dois tempos.  O sistema de promoção social posto em prática desde o final da escravidão poderá eliminar as desigualdades que cercam os afrobrasileiros? A expansão do sistema de bolsas e de cotas pelo critério social provocará uma redução destas desigualdades?
Os dados das PNAD organizados pelo IPEA mostram, ao contrário, que as disparidades se mantém ao longo da última década. Mais ainda, a entrada no ensino superior exacerba a desigualdade racial no Brasil.
Dessa forma, no ensino fundamental (de 7 a 14 anos), a diferença entre brancos e negros começou a diminuir a partir de 1999 e em 2008 a taxa de frequência entre os dois grupos é praticamente a mesma, em torno de 95% e 94% respectivamente. No ensino médio (de 15 a 17 anos) há uma diferença quase constante desde entre 1992 e 2008. Neste último ano, foram registrados 61,0% de alunos brancos e 42,0% de alunos negros desta mesma faixa etária. Porém, no ensino superior a diferença entre os dois grupos se escancara. Em 2008, nas faixas etárias de brancos maiores de 18 anos de idade, havia 20,5% de estudantes universitários e nas faixas etárias de negros maiores de 18 anos, só 7,7% de estudantes universitários.[10] Patenteia-se que o acesso ao ensino superior constitui um gargalo incontornável para a ascensão social dos negros brasileiros.
Por todas estas razões, reafirmo minha adesão ao sistema de cotas raciais aplicado pela Universidade de Brasília.
Penso que seria uma simplificação apresentar a discussão sobre as cotas raciais como um corte entre a esquerda e a direita, o governo e a oposição ou o PT e o PSDB. Como no caso do plebiscito de 1993, sobre o presidencialismo e o parlamentarismo, a clivagem atravessa as linhas partidárias e ideológicas. Aliás, as primeiras medidas de política afirmativa relativas à população negra foram tomadas, como é conhecido, pelo governo Fernando Henrique Cardoso.
Como deixei claro, utilizei vários estudos do IPEA para embasar meus argumentos. Ora, tanto o presidente do IPEA no segundo governo Fernando Henrique Cardoso, o professor Roberto Borges Martins, como o presidente do IPEA no segundo governo Lula, o professor Márcio Porchman, colegas por quem tenho respeito e admiração, coordenaram  vários estudos sobre a discriminação racial no Brasil nos dias de hoje e são ambos favoráveis às políticas afirmativas e às políticas de cotas raciais.
A existência de alianças transversais deve nos conduzir, mesmo num ano de eleições, a um debate menos ideologizado, onde os argumentos de uns e de outros possam ser analisados a fim de contribuir para a  superação da desigualdade racial que pesa sobre os negros e a democracia brasileira.
Fonte:
Luís Felipe Alencastro é Cientista Político e Historiador, Professor titular da cátedra de História do Brasil da Universidade de Paris IV Sorbonne.
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