29 de mai. de 2012

TEMAS PARA O ENEM 2013


*AS VÁRIAS FACES DA INTOLERÂNCIA NO MUNDO CONTEMPORÂNEO

*ABORTO DE ANENCÉFALOS: CRIME OU NÃO?

*A INFLUÊNCIA DAS REDES SOCIAIS NO DIA A DIA DOS BRASILEIROS

*MARCHAS CONTRA A CORRUPÇÃO: UMA INICIATIVA VÁLIDA?

*COPA 2014: OS PRÓS E CONTRAS DA REALIZAÇÃO NO BRASIL DO MAIOR EVENTO ESPORTIVO MUNDIAL

*RIO +20: COMO O EVENTO PODE AJUDAR A POPULAÇÃO A TER HÁBITOS ECOLOGICAMENTE SUSTENTÁVEIS?

*O INDIVÍDUO E A ÉTICA NO TRABALHO

*REFLEXOS DA VIOLÊNCIA NO BRASIL: A NAÇÃO MAIS ARMADA DO MUNDO
*CRIMINALIDADE INFANTIL

*DIVERSIDADE SEXUAL NA ADOLESCÊNCIA: O PAPEL DA ESCOLA

*TENSÃO ENTRE EUA E IRÃ: O MUNDO À BEIRA DE UMA TERCEIRA GUERRA MUNDIAL?

* SITUAÇÃO ATUAL DE MULHER

* ''ESCRAVIDÃO MODERNA"

* ESPORTE COMO FATOR DE INCLUSÃO SOCIAL

* VIOLÊNCIA NO TRÂNSITO

* COMISSÃO DA VERDADE

Conheça todos os 12 vetos ao novo Código Florestal


Impedir a anistia a quem desmatou e proibir a produção agropecuária em áreas de proteção permanente (APPs) foram alguns dos principais objetivos da presidenta Dilma Rousseff ao vetar parte do novo Código Florestal na sexta-feira, 25 de maio. Os vetos de 12 artigos resgatam o teor do acordo firmado entre os líderes partidários e o governo durante a tramitação da proposta no Senado.
Artigo 1º, que foi modificado pelos deputados após aprovação da proposta no Senado, foi vetado. Na medida provisória (MP) publicada hoje (28) no Diário Oficial da União, o Palácio do Planalto devolve ao texto do Código Florestal os princípios que haviam sido incorporados no Senado e suprimidos, posteriormente, na segunda votação na Câmara. A MP foi o instrumento usado pelo governo para evitar lacunas no texto final.
Também foi vetado o Inciso 11 do Artigo 3º da lei, que trata das atividades eventuais ou de baixo impacto. O veto retirou do texto o chamado pousio: prática de interrupção temporária de atividade agrícolas, pecuárias ou silviculturais, para permitir a recuperação do solo.
Recebeu veto ainda o Parágrafo 3º do Artigo 4º que não considerava área de proteção permanente (APP) a várzea (terreno às margens de rios, inundadas em época de cheia) fora dos limites estabelecidos, exceto quanto houvesse ato do Poder Público. O dispositivo vetado ainda estendia essa regra aos salgados e apicuns – áreas destinadas à criação de mariscos e camarões.
Foram vetados também os parágrafos 7º e 8º. O primeiro estabelecia que, nas áreas urbanas, as faixas marginais de qualquer curso d’água natural que delimitem as áreas das faixas de passagem de inundação (áreas que alagam na ápoca de cheia) teriam sua largura determinada pelos respectivos planos diretores e pela Lei de Uso do Solo, ouvidos os conselhos estaduais e municipais do Meio Ambiente. Já o Parágrafo 8º previa que, no caso de áreas urbanas e regiões metropolitanas, seria observado o dispositivo nos respectivos planos diretores e leis municipais de uso do solo.
O Parágrafo 3º do Artigo 5º também foi vetado. O dispositivo previa que o Plano Ambiental de Conservação e Uso do Entorno de Reservatório Artificial poderia indicar áreas para implantação de parques aquícolas e polos turísticos e de lazer em torno do reservatório, de acordo com o que fosse definido nos termos do licenciamento ambiental, respeitadas as exigências previstas na lei.
Já no Artigo 26, que trata da supressão de vegetação nativa para uso alternativo do solo tanto de domínio público quanto privado, foram vetados o 1º e 2º parágrafos. Os dispositivos detalhavam os órgãos competentes para autorizar a supressão e incluía, entre eles, os municipais do Meio Ambiente.
A presidenta Dilma Rousseff também vetou integralmente o Artigo 43. Pelo dispositivo, as empresasconcessionárias de serviços de abastecimento de água e geração de energia elétrica, públicas ou privadas, deveriam investir na recuperação e na manutenção de vegetação nativa em áreas de proteção permanente existente na bacia hidrográfica em que ocorrer a exploração.
Um dos pontos que mais provocaram polêmica durante a tramitação do código no Congresso, o Artigo 61, foi vetado. O trecho autorizava, exclusivamente, a continuidade das atividades agrossilvipastoris, de ecoturismo e turismo rural em áreas rurais consolidadas até 22 de julho de 2008.
Também foram vetados integramente os artigos 76 e 77. O primeiro estabelecia prazo de três anos para que o Poder Executivo enviasse ao Congresso projeto de lei com a finalidade de estabelecer as especificidades da conservação, da proteção, da regeneração e da utilização dos biomas da Amazônia, do Cerrado, da Caatinga, do Pantanal e do Pampa. Já o Artigo 77 previa que na instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente seria exigida do empreendedor, público ou privado, a proposta de diretrizes de ocupação do imóvel.
A MP que complementa o projeto, publicada nesta segunda-feira (28), vale por 60 dias, podendo ser prorrogada por mais 60 dias – ela ainda será votada pelo Congresso.
Fonte:
* Publicado originalmente no site da EcoD.

28 de mai. de 2012

Caros generais, almirantes e brigadeiros


Eu ia dizer "caros milicos". Não sei se é um termo ofensivo. Estigmatizado é. Preciso enumerar as razões?
Parte da sociedade civil quer rever a Lei da Anistia. Sugeriram a Comissão da Verdade, no desastroso Programa Nacional de Direitos Humanos, que Lula assinou sem ler. Vocês ameaçaram abandonar o governo, caso fosse aprovado.
Na Argentina, Espanha, Portugal, Chile, a anistia a militares envolvidos em crimes contra a humanidade foi revista. Há interesse para uma democracia em purificar o passado.
Aqui, teimam em não abrir mão do perdão. E têm aliados fortes, como o presidente do Supremo, Gilmar Mendes, e o ministro da Defesa, Nelson Jobim, que apesar de civil apareceu num patético uniforme de combate na volta do Haiti. Parecia um clown.
Vocês pertencem a uma nova geração de generais, almirantes, tenentes-brigadeiros. Eram jovens durante a ditadura. Devem ter navegado na contracultura, dançado Raul Seixas, tropicalistas. Usaram cabelos compridos, jeans desbotados? Namoraram ouvindo bossa nova? Assistiram aos filmes do Cinema Novo?
Sabemos que quem mais sofreu repressão depois do Golpe de 64 foram justamente os militares. Muitos foram presos e cassados. Havia até uma organização guerrilheira, a VPR, composta só por militares contra o regime.
Por que abrigar torturadores? Por que não colocá-los num banco de réus, um Tribunal de Nuremberg? Por que não limpar a fama da corporação?
Não se comparem a eles. Não devem nada a eles, que sujaram o nome das Forças Armadas. Vocês devem seguir uma tradição que nos honra, garantiu a República, o fim da ditadura de Getúlio, depois de combater os nazistas, e que hoje lidera a campanha no Haiti.
Sei que nossa relação, que começou quando eu tinha 5 anos, foi contaminada por abusos e absurdos. Culpa da polarização ideológica da época.
Seus antecessores cassaram o meu pai, deputado federal de 34 anos, no Golpe de 64, logo no primeiro Ato Institucional. Pois ele era relator de uma CPI que investigava o dinheiro da CIA para a preparação do golpe, interrogou militares, mostrou cheques depositados em contas para financiar a campanha anticomunista. Sabiam que meu pai nem era comunista?
Ele tentou fugir de Brasília, quando cercaram a cidade. Entrou num teco-teco, decolou, mas ameaçaram derrubar o avião. Ele pousou, saltou do avião ainda em movimento e correu pelo cerrado, sob balas.
Pulou o muro da embaixada da Iugoslávia e lá ficou, meses, até receber o salvo-conduto e se exilar. Passei meu aniversário de 5 anos nessa embaixada. Festão. Achávamos que a ditadura não ia durar. Que ironia...
Da Europa, meu pai enviou uma emocionante carta aos filhos, explicando o que tinha acontecido. Chamava alguns de vocês de "gorilas". Ri muito quando a recebi.
Ainda era 1964, a família imaginava que fosse preciso partir para o exílio e se juntar na França, quando ele entrou clandestinamente no Brasil.
Num voo para o Uruguai, que fazia escala no Rio, pediu para comprar cigarros e cruzou portas, até cair na rua, pegar um táxi e aparecer de surpresa em casa. Naquela época, o controle de passageiros era amador.
Mas veio a luta armada, os primeiros sequestros, e atuavam justamente os filhos dos amigos e seus eleitores - ele foi eleito deputado em 1962 pelos estudantes.
A barra pesou com o AI-5, a repressão caiu matando, e muitos vinham pedir abrigo, grana para fugir. Ele conhecia rotas de fuga. Tinha um aviãozinho. Fernando Gasparian, o melhor amigo dele, sabia que ambos estavam sendo seguidos e fugiu para a Inglaterra. Alertou o meu pai, que continuou no País.
Em 20 de janeiro de 1971, feriado, deu praia. Alguns de vocês invadiram a nossa casa de manhã, apontaram metralhadoras. Depois, se acalmaram. Ficamos com eles 24 horas. Até jogamos baralho. Não pareciam assustadores. Não tive medo. Eram tensos, mas brasileiros normais.
Levaram o meu pai, minha mãe e minha irmã Eliana, de 14 anos. Ele foi torturado e morto na dependência de vocês. A minha mãe ficou presa por 13 dias, e minha irmã, um dia.
Sumiram com o corpo dele, inventaram uma farsa (a de que ele tinha fugido) e não se falou mais no assunto.
Quando, aos 17 anos, fui me alistar na sede do 2º Exército, vivi a humilhação de todos os moleques: nos obrigaram a ficar nus e a correr pelo campo. Era inverno.
Na ficha, eu deveria preencher se o pai era vivo ou morto. Na época, varão de família era dispensado. Não havia espaço para "desaparecido". Deixei em branco.
Levei uma dura do oficial. Não resisti: "Vocês devem saber melhor do que eu se está vivo." Silêncio na sala. Foram consultar um superior. Voltaram sem graça, carimbaram a minha ficha, "dispensado", e saí de lá com a alma lavada.
Então, só em 1996, depois de um decreto-lei do Fernando Henrique, amigo de pôquer do meu pai, o Governo Brasileiro assumiu a responsabilidade sobre os desaparecidos e nos entregou um atestado de óbito.
Até hoje não sabemos o que aconteceu, onde o enterraram e por quê? Meu pai era contra a luta armada. Sabemos que antes de começarem a sessão de tortura, o brigadeiro Burnier lhe disse: "Enfim, deputadozinho, vamos tirar nossas diferenças."
Isso tudo já faz quase 40 anos. A Lei da Anistia, aprovada ainda durante a ditadura, com um Congresso engessado pelo Pacote de Abril, senadores biônicos, não eleitos pelo povo, garante o perdão aos colegas de vocês que participaram da tortura.
Qual o sentido de ter torturadores entre seus pares? Livrem-se deles. Coragem. 
Fonte:
Marcelo Rubens Paiva

24 de mai. de 2012

Outra Alexandria


Não sei se a internet e seus instrumentos comunicantes tiveram mesmo tanta influência nessa revolução no Egito como dizem, mas se tiveram não deixa de ser curioso que o mais novo meio de compartilhar informação tenha sublevado a terra onde floresceu a ideia do conhecimento compartilhado. Três mil anos, mais ou menos, separam o facebook e o tuiter, para não falar do Google, da biblioteca de Alexandria, onde pela primeira vez se quis reunir e expor tudo que se sabe do mundo. O que também foi uma revolução.
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Foi Demetrius, um ex-aluno do Liceu de Atenas fundado por Aristóteles quem começou a biblioteca, sob ordens de Ptolomeu I, em cuja corte ele foi uma espécie de filósofo residente. Demetrius costumava se maquiar e pintar os cabelos de loiro, gostava tanto de mulheres quanto de rapazes e dava grandes banquetes que acabavam em orgias, mas ficou na História como construtor da primeira biblioteca universal de que se tem notícia, pois a vontade de Ptolomeu era ter em um só lugar toda a memória da antiguidade e todo o pensamento humano.
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A biblioteca de Alexandria surgiu numa época de transição, em que a escrita substituía a fala na transmissão da cultura e do conhecimento e toda uma tradição oral, como a memorização e repetição dos épicos homéricos, cedia ao texto manuscrito - que durante algum tempo foi considerado coisa de maus espíritos, entre os gregos. A mudança tecnológica é análoga à que se vê hoje, quando discutem se o livro eletrônico vai ou não matar o livro tradicional e levar nossa alma junto. Com sua biblioteca, Demetrius, discípulo de Aristóteles, fortaleceu a linha oposta à dos velhos gregos Platão, que preferia o debate verbal à escrita, e Sócrates, que nunca escreveu nada.
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Dizem que, no seu auge, a biblioteca de Alexandria chegou a ter meio milhão de livros, lembrando que alguns livros eram constituídos por vários rolos. Eram acessíveis ao grande público mas principalmente a escolásticos e à nobreza. (É atraente imaginar a Cleópatra percorrendo as suas estantes atrás de alguma coisa leve para ler no fim de semana.) Mas, acima de tudo, a biblioteca contribuiu para transformar Alexandria na capital intelectual do mundo helênico e da civilização do Mediterrâneo, uma inspiração para outros povos. Compare-se isso com o poder da internet de atravessar fronteiras e criar comunidades de informação e conhecimento com uma só língua.
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No fim, Alexandria acabou sendo vítima do seu próprio cosmopolitismo, do qual a biblioteca era o maior exemplo. Os diferentes grupos atraídos pelo mix cultural e religioso da cidade entraram em conflito. A presença de sucessivos poderes autoritários - ptolomaico, depois romano, bizantino e islâmico - evitou uma ruptura maior, mas não impediu a decadência da cidade. Há várias versões sobre o fim da biblioteca. Uma culpa Júlio César, que precisando fugir do seu palácio e chegar até seus navios no porto teria incendiado tudo no caminho, inclusive a biblioteca.
Segundo outra versão, os grupos raciais e religiosos em confronto simplesmente a ignoraram, e a biblioteca morreu aos poucos, de descaso.
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Se é verdade que a internet uniu os manifestantes que derrubaram o Mubarak, resta saber até quando durará essa comunidade. A da biblioteca de Alexandria não resistiu. 

Fonte:
Crônica de Luis Fernando Veríssimo

21 de mai. de 2012

Uma vela para Dario


Dalton Trevisan


(Uma história de curiosidade, indiferença e oportunismo)

Dario vinha apressado, guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-se à parede de uma casa. Por ela escorregando, sentou-se na calçada, ainda úmida de chuva, e descansou na pedra o cachimbo.

Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem. Dario abriu a boca, moveu os lábios, não se ouviu resposta. O senhor gordo, de branco, sugeriu que devia sofrer de ataque.

Ele reclinou-se mais um pouco, estendido agora na calçada, e o cachimbo tinha apagado. O rapaz de bigode pediu aos outros que se afastassem e o deixassem respirar. Abriu-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe retiraram os sapatos, Dario roncou feio e bolhas de espuma surgiram no canto da boca.

Cada pessoa que chegava erguia-se na ponta dos pés, embora não o pudesse ver. Os moradores da rua conversavam de uma porta à outra, as crianças foram despertadas e de pijama acudiram à janela. O senhor gordo repetia que Dario sentara-se na calçada, soprando ainda a fumaça do cachimbo e encostando o guarda-chuva na parede. Mas não se via guarda-chuva ou cachimbo ao seu lado.

A velhinha de cabeça grisalha gritou que ele estava morrendo. Um grupo o arrastou para o táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protestou o motorista: quem pagaria a corrida? Concordaram chamar a ambulância. Dario conduzido de volta e recostado á parede - não tinha os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.

Alguém informou da farmácia na outra rua. Não carregaram Dario além da esquina; a farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito pesado. Foi largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobriu o rosto, sem que fizesse um gesto para espantá-las.

Ocupado o café próximo pelas pessoas que vieram apreciar o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozavam as delicias da noite. Dario ficou torto como o deixaram, no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.

Um terceiro sugeriu que lhe examinassem os papéis, retirados - com vários objetos - de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficaram sabendo do nome, idade; sinal de nascença. O endereço na carteira era de outra cidade.

Registrou-se correria de mais de duzentos curiosos que, a essa hora, ocupavam toda a rua e as calçadas: era a polícia. O carro negro investiu a multidão. Várias pessoas tropeçaram no corpo de Dario, que foi pisoteado dezessete vezes.

O guarda aproximou-se do cadáver e não pôde identificá-lo — os bolsos vazios. Restava a aliança de ouro na mão esquerda, que ele próprio quando vivo - só podia destacar umedecida com sabonete. Ficou decidido que o caso era com o rabecão.

A última boca repetiu — Ele morreu, ele morreu. A gente começou a se dispersar. Dario levara duas horas para morrer, ninguém acreditou que estivesse no fim. Agora, aos que podiam vê-lo, tinha todo o ar de um defunto.

Um senhor piedoso despiu o paletó de Dario para lhe sustentar a cabeça. Cruzou as suas mãos no peito. Não pôde fechar os olhos nem a boca, onde a espuma tinha desaparecido. Apenas um homem morto e a multidão se espalhou, as mesas do café ficaram vazias. Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos.

Um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado do cadáver. Parecia morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.

Fecharam-se uma a uma as janelas e, três horas depois, lá estava Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó, e o dedo sem a aliança. A vela tinha queimado até a metade e apagou-se às primeiras gotas da chuva, que voltava a cair.

19 de mai. de 2012

A tecnologia é moralmente neutra - cura um câncer e explode a bomba -, mas é a via mais segura para resolver muitos dos problemas atuais


Filha de uma feminista e de um filósofo radicais, e já casada com um poeta revolucionário, Mary Shelley tinha apenas 19 anos quando mandou às favas a ambição dos pais e do marido de criar o "homem novo" e criou um "novo monstro": Frankenstein. Escrito sob o impacto da Revolução Industrial e publicado em 1818, seu livro mais famoso é interpretado como marco zero da demonização da tecnologia. Em Frankenstein, ou o Moderno Prometeu, a autora compara a tecnologia a uma força autônoma, que pode resultar em aberração e monstruosidade e acabar voltando-se contra seu criador. Passados dois séculos, só cresceu a estridência da denúncia contra a força maligna das invenções de laboratório. Hoje, a tecnologia é o saco de pancada predileto da geração mais tecnológica da história da humanidade. Acusa-se a tecnologia de poluir as cidades, devastar rios e florestas, aquecer o planeta, causar acidentes, destruir empregos, provocar dilemas morais, afastar as pessoas. Diante disso, é notável que o vento ande soprando na direção contrária - e a tecnologia, finalmente, comece a ser vista não mais como parte do problema, mas como a solução.
Al Gore, ex-vice-presidente dos Estados Unidos e célebre ecoapóstolo do fim do mundo, sustenta exatamente esse ponto de vista em Nossa Escolha, seu último livro sobre o aquecimento global. Em Avatar, o diretor James Cameron denuncia a devastação ecológica provocada pela tecnologia justamente no filme mais tecnológico de todos os tempos. Cameron concede que "a solução para salvar nosso planeta também passa pela tecnologia". Mesmo a dramática profecia de 1984, o romance em que George Orwell alerta para os perigos totalitários do avanço tecnológico, foi demolida pelos avanços tecnológicos. Em vez de enfraquecerem a democracia, as conquistas digitais são agora um pesadelo para as ditaduras.
A internet carrega em si um gene democrático. Em março, o Google, o maior site de buscas do mundo, abandonou o mercado da China, com 400 milhões de usuários, em repúdio à censura da ditadura chinesa na internet. "É um momento histórico", festejou o professor Xiao Qiang, da Universidade da Califórnia, que estuda os efeitos da internet na imprensa e na política da China. No ano passado, os jovens iranianos chamaram atenção para seus protestos contra a fraude eleitoral através do Twitter. Yoani Sánchez denuncia ao mundo a vida sob a ditadura cubana através do seu blog. Diz Nina Hachigian, da American Progress, que estudou a internet na China: "A internet, incluindo blogs e Twitter, é uma ameaça política no sentido de que mudou, em definitivo, a dinâmica dos eventos políticos. Os governos não podem esconder informações com a facilidade de antes, mas a internet não é uma ameaça incontornável".
Como força que armazena e difunde informação, a internet é arrebatadora. A Biblioteca de Alexandria, a mais vasta da Antiguidade, reunia 700 000 volumes, até ser criminosamente incendiada. Marco Antônio ofereceu os 200 000 volumes da biblioteca de Pérgamo como prova de amor por Cleópatra. Hoje, só a Amazon tem 500 000 títulos à venda on-line - cada um leva sessenta segundos para ser transmitido por ondas eletromagnéticas ao Kindle, o leitor eletrônico. É impossível censurar o conteúdo de nuvens (o termo técnico para a rede difusa de armazenamento de dados digitais acessados via internet), e as ondas não podem ser incineradas.
A internet criou o "paradoxo da modernidade". Ele se traduz pela absoluta necessidade que regimes de força têm das novas tecnologias para modernizar suas economias de modo a saciar a fome do povo. Mas, junto com o empuxo econômico, a tecnologia digital, baseada no conhecimento, traz a necessidade e a possibilidade do arejamento político. A "diplomacia digital" dos Estados Unidos aposta na força desse paradoxo para enfraquecer regimes ditatoriais. Procura revestir a liberdade de expressão na rede mundial de computadores dos mesmos atributos de bens universais, como o espaço aéreo ou as rotas de navegação. Em março, a Casa Branca anunciou o fim da restrição à exportação de serviços de internet para o Irã, Cuba e Sudão. A ideia é que essas nações hostis sejam contaminadas pelo "paradoxo da modernidade". Em artigo publicado no The Wall Street Journal, o professor Evgeny Morozov, da Universidade Georgetown, resumiu, provocativamente: "Google, Facebook e Twitter são agora meras extensões do Departamento de Estado". É improvável que a "diplomacia digital" obtenha sucesso em um prazo curto. Mas também não parece razoável que, por ser americana, dê ensejo a um "neoludismo", cujos seguidores saiam à noite cortando cabos de fibras ópticas para impedir a propagação da internet.
A tecnologia não é a invenção de um gênio solitário. Ela é o resultado do acúmulo de conhecimento. A tendência é que, quanto mais conhecimento houver, mais tecnologia venha a ser produzida. Essa é sua força. O caráter cumulativo da criação tecnológica explica a velocidade geométrica das novidades e está na base da "singularidade tecnológica". Essa é uma teoria segundo a qual o tempo e o esforço gastos para dar os primeiros passos em uma determinada tecnologia tendem a diminuir drasticamente no caminho evolutivo. Passaram-se séculos entre o primeiro livro impresso e o pioneiro Kindle. Entre o Kindle e algo tão espetacular quanto, digamos, um projetor holográfico tridimensional miniatura de páginas impressas podem se passar apenas alguns poucos anos. A singularidade assusta por prever que, em um futuro de décadas, as máquinas serão infinitamente mais poderosas do que o cérebro humano na sua capacidade de pensar. Isso porque, na capacidade de processar dados, o cérebro humano já perdeu a corrida no século passado.
Ei-nos de volta ao Frankenstein de Mary Shelley - ou seja, à tecnologia ganhando impulso autônomo e abrindo às máquinas a possibilidade de levantar-se contra a humanidade. A revolução robótica é tema recorrente no cinema desde que o diretor alemão Fritz Lang deu alma ao robô Maria no estupendo Metropolis, de 1927. O enredo já apareceu em enlatados, em obras-primas como Blade Runner, de 1982, e avançou para Matrix, de 1999, em que os humanos, já subjugados, é que se rebelam contra a opressão das máquinas. A ansiedade humana em relação à evolução tecnológica, tão clara na atmosfera claustrofóbica da ficção científica, tende a se ampliar à medida que o conhecimento tecnológico vai se sofisticando. É preciso ensinar tecnologia às massas, prega Alec Broers, ex-presidente da Academia Real de Engenharia da Inglaterra e pioneiro da nanotecnologia. Só assim se vencem os mitos e a ingenuidade. Geração de energia e transporte são as áreas em que a tecnologia é mais criticada porque acumula dióxido de carbono na atmosfera e destrói a camada de ozônio. Mas as duas áreas em que pode trazer as melhores soluções são, exatamente, energia e transporte. É isso que Al Gore percebeu ao reconhecer a tecnologia como a aposta para salvar o planeta - já que renunciar a ela é apenas um atalho para a barbárie.
Sendo moralmente neutra, a tecnologia pode servir ao bem ou ao mal. O rádio transmitiu a voz de Franklin Roosevelt para ajudar os americanos a atravessar o calvário da Depressão nos anos 30 e vencer a II Guerra. Do outro lado do Atlântico, o mesmo rádio amplificou os discursos de Adolf Hitler e hipnotizou os alemães num projeto diabólico. "A tecnologia pode tanto promover o autoritarismo como a liberdade, a escassez como a fartura, pode ampliar ou abolir o trabalho braçal", escreveu o filósofo Herbert Marcuse (1898-1979), em Tecnologia, Guerra e Fascismo. O DDT é um santo remédio contra tifo, malária e febre amarela, porque mata os insetos que transmitem essas doenças. Aplicado às toneladas na agricultura, virou veneno para a ecologia, reduzindo a população de pássaros e peixes. O agente laranja é um eficiente herbicida, foi muito utilizado no manejo de florestas no Canadá e na Malásia, mas virou arma na mão dos militares americanos no Vietnã. Na tecnologia, tudo depende do fim para o qual ela é empregada. Sua demonização é uma inutilidade.

A revolução da tecnologia da informação está causando um impacto imenso nas ciências: na sociologia, na psicologia, na biologia, na neurologia. Todas precisam saber, e pouco sabem, do impacto dessa tecnologia e seu imenso volume de informação no comportamento das sociedades e dos indivíduos. O mundo não é mais o mesmo - e faz pouco tempo que mudou. EmUlysses, que começou a ser publicado em 1918, James Joyce faz seu Leopold Bloom lamentar que a sabedoria popular não encontre vazão na produção literária, sempre tão distante do homem comum. O filósofo Walter Benjamin, morto em 1940, dizia que o homem simples e comum almejava "ser reproduzido", mas a indústria cinematográfica, por cobiça, negava-lhe a realização dessa ambição. Até esse sonho a tecnologia do século XXI materializou. O que é o YouTube senão o púlpito do homem comum com audiência planetária? Singelas mas sábias são as palavras de Alec Broers: "A tecnologia é nossa amiga".
Metade da humanidade jamais usou um aparelho de telefone. Há mais telefones em Montreal do que em Bangladesh. A tecnologia, ainda que desigualmente distribuída, é a melhor metáfora da trajetória humana na Terra. A própria civilização começou quando os humanos passaram a utilizar as primeiras tecnologias. "Graças à tecnologia, hoje vivemos o bastante para ver nossos filhos e netos crescer. Quem imagina que estaríamos melhor sem a tecnologia moderna precisa pensar nas durezas da vida da Idade Média", diz W. Brian Arthur, autor de The Nature of Technology, que tem, ele mesmo, uma relação de amor e ódio com a tecnologia. O pensamento religioso, traduzido na ideia de que somos criaturas divinamente concebidas, tende a turvar a percepção de que nossa condição natural é miserável. No tempo das cavernas, tudo era pior: o medo, a dor, a fome, a doença, o frio. A tecnologia nos retirou dessa miséria. Não a todos, mas o pedaço da humanidade que ainda vive na dor e na miséria sairá de lá com mais, e não menos, tecnologia.

Fonte:
Por
André Petry

16 de mai. de 2012

Assim se faz um escracho


Rôney Rodrigues narra: como são preparadas manifestações-relâmpago em que jovens denunciam ex-torturadores onde moram, para exigir verdade sobre ditadura
Por Rôney Rodrigues, colaborador de Outras Palavras
Quem hoje vê o senhor Maurício Lopes Lima, 76 anos, com seus cabelos brancos e pele enrugada – já distante da altivez da foto antiga, clicada há quase quarenta anos – possivelmente não desconfia que ele é acusado pela morte de, no mínimo, seis pessoas e a tortura de outras vinte, durante a ditadura militar.
Os moradores que caminham por seu bairro, na praia da Astúrias, no Guarujá, tampouco devem desconfiar que esse tenente-coronel reformado era do alto-escalão do Departamento de Operações de Informação dos Centros de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) e da Operação Bandeirante – um grupo especializado na caça de organizações que se opunham à ditadura –, chefiando equipes de busca e interrogatórios entre 1969 e 1971.
Também nem deve passar por suas cabeças que uma recente decisão do Tribunal Regional Federal (TRF), que o livrou de ser processado por acusações de tortura, poderia afetar seu humor pela manhã, deixando-o mais radiante e com um “bom dia” mais efusivo, crente que, agora, “está começando a se fazer justiça”.
Nem devem imaginar que, em janeiro de 1970, Maurício Lopes Lima comandou a prisão de Dilma Rousseff, torturada quando era apenas Estela, uma das lideres da organização VAR-Palmares.
É, olhando para um senhorzinho como o reformado tenente-coronel Lima, passeando pelas ruas de veraneio do Guarujá não dá para supor muita coisa.
Não é possível supor, mas a memória resiste e esse senhorzinho ainda é acusado de assassinatos e crimes que ferem os direitos humanos durante a ditadura militar – denuncias presentes, inclusive, no dossiê Brasil: Nunca Mais. Como no caso de Dilma. Cinco meses depois de sua prisão, ela deu um depoimento à Justiça Militar, em Juiz de Fora, revelando que Lima chefiou e presenciou suas sessões de tortura, que incluíam choques elétricos, pau-de-arara e palmatória.
Segundo o depoimento, a então guerrilheira perguntou se eles tinham autorização do Poder Judiciário. “Você vai ver o que é o juiz lá na Operação Bandeirante [um dos centros de tortura]”, responderam. Dilma teve um dente quebrado e, devido a hemorragias graves, foi levada ao Hospital Central do Exército e ao Hospital das Clínicas.
No sindicato, revela-se, enfim: o alvo do escracho será
Maurício Lopes Lima, acusado de torturar a presidente.
Até o momento da partida, o nome permanecia em sigilo

O frade dominicano Tito de Alencar Lima, conhecido como Frei Tito, foi torturado pelo delegado Sérgio Fleury (1933-1979) e, depois, também levado ao DOI-CODI do tenente-coronel Lima. “O capitão Maurício veio me buscar em companhia de dois policiais: ‘Você agora vai conhecer a sucursal do inferno’, ele me disse”, relembrou, em depoimento, Frei Tito que, atormentado pelas lembranças da tortura se enforcou em 1974, na França.
Virgilio Gomes da Silva, um dos fundadores (ao lado de Carlos Marighella) da Ação Libertadora Nacional (ALN), também teria sido preso e morto sob ordens de Lima. Como forma de pressioná-lo a fornecer informações, sua esposa e filhos também foram torturados e, segundo consta, até um bebê de quatro meses recebeu choques elétricos.
O tenente-coronel não tem pudores em afirmar que tortura era “comum em todas as delegacias do Brasil” e que “todo terrorista passou a ser torturado, sem exceção”, muito menos em admitir participações em operações, como na ação que levou à morte dos guerrilheiros Antônio dos Três Reis de Oliveira e Alceri Maria Gomes da Silva, metralhados em maio de 1970 na zona leste de SP. Essa foi a primeira vez que um militar assumiu participação no episódio.
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Na sede do Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente (Sintaema), de São Paulo, é relevado que o tenente-coronel Maurício Lopes Lima será o alvo do escracho. Até o momento, poucas sabiam o local e a quem se dirigiria a manifestação, promovida pelo Levante Popular da Juventude. O contato com os participantes – e até com outros estados que também organizam escrachos nesse dia 14 – eram feitos com o máximo de discrição, evitando muitas informações.
Membros do Levante passam recomendações: nada de pichar muros, a manifestação é pacífica e se destina a alertar que no local vive um torturador. Caso ele desça para brigar ou bater-boca – como acontece no Belo Horizonte, quando João Bosco Nacif da Silva, médico-legista da Policia Civil durante a ditadura militar, agrediu estudantes – o lance é “manter a calma, o sangue-frio, se não fica pior para nós”.
O deslocamento da capital paulistana até o Guarujá – cerca de 95 quilômetros – foi feito por carros emprestados de amigos e manifestantes, pois a entrada de ônibus é proibida no bairro da Astúrias, onde Lima vive hoje.
Na porta do Sintaema, a estudante Lira Alli, ligada ao movimento, está organizando a saída, em pequenos blocos. “A sociedade deve se manifestar, para sabermos sobre o nosso passado e nossa história”, me diz ela. “Devemos tornar público quem são aqueles que torturaram e assassinaram, a opinião pública e seus vizinhos precisam saber quem são esses criminosos”.
Na Argentina e Chile, manifestações eram conduzidas por quem
perdeu familiares. Aqui, é gente disposta a mostrar
que assuntos do passado estão relacionados com o presente

Os escrachos contra colaboradores da ditadura, famosos na Argentina, no Chile e no Uruguai vão ganhando força no Brasil e aproximando a população mais jovem do tema. Se na Argentina e Chile, por exemplo, as manifestações eram conduzidas por pessoas que perderam seus familiares, por aqui é gente disposta a mostrar que os assuntos do passado estão relacionados com o presente.
O Levante Popular já organizou no dia 26 de março, em São Paulo, um “escracho”, denunciando Davi dos Santos Araújo que, segundo o movimento, foi torturador e responsável por abusos sexuais, delitos que constam de ação civil pública do Ministério Público Federal. Até o início deste mês, já foram organizadas seis ações de denúncia.
Na Argentina, os escrachos cumpriram seu papel e se esgotaram após alguns anos. Isso porque, a partir de 2003, a possibilidade de punição penal dos agentes do Estado a serviço do regime autoritário ganhou força com a revogação de dispositivos de anistia, levando à condenação de 237 pessoas e a quase 800 processos. Além disso, todos os ex-presidentes da Junta Militar foram sentenciados.
Já no Brasil, esse caminho tem sido lento: após dois anos e meio de polêmicas e negociações, a presidenta Dilma Rousseff nomeou, na semana passada, os integrantes da Comissão Nacional da Verdade, que pretende esclarecer violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988.
Muitos ativistas que defendem a investigação dos crimes cometidos durante a ditadura apontam que, sem o poder de punir, a comissão não adiantará de muita coisa. Além disso, o longo período contemplado pela comissão impedirá uma análise aprofundada da época em que houve mais violações, de 1964 a 1985. Outros também avaliam que a comissão disporá de prazo muito curto, apenas dois anos, e terá poucos integrantes para concluir seu trabalho de forma satisfatória.
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Em frente ao prédio de Lopes, uma senhorinha octogenária, com guarda-chuva sob o braço, espera um táxi que a levará para uma consulta de rotina no hospital. Enquanto, sob uma rala chuva, a manifestação toma a rua, ela acena. Em frente, há uma escola primária. As crianças se amontoam nas janelas, empolgadas com a algazarra. A senhora ainda espera. Quando me aproximo, ela já exclama, com um sotaque português:
“Pelo amor de Deus, não quero aparecer, nem dar nome, mas eu sabia, eu sabia, moro aqui há 30 anos…”.
“Sabia, então, que o senhor Maurício Lopes Lima foi um torturador na ditadura militar?”
“Sabia, claro que sabia, que ele era um torturador…”, diz, já se avermelhando e levando uma das mãos aos olhos umedecidos. “Eu tenho medo que ele possa fazer mal para a gente”, justifica.
Outro morador que estava por ali diz:
“Eu conheço, mas nem imaginava que ele era um torturador. Mas não vou falar nada, to sabendo só agora disso…”.
A manifestação segue. São cerca de 80 pessoas, empunhando cartazes e faixas. Há uma miniencenação de castigos infligidos aos presos políticos da época: espancamento, interrogatórios, pau-de-arara, cadeira de dragão, afogamento. Cantam músicas. Dançam. “Chão, chão, quem é contra a repressão!”. Vociferam contra o prédio. Escrevem na calçada: “Aqui mora um torturador”.
“É histórico”, diz com entusiasmo Edmilson Costa, professor universitário e filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). “A juventude assumiu para si uma luta que estava sendo levada por familiares e torturados, o que significa que ela vai ter continuidade e que é necessário que venha à tona a verdade do que aconteceu no país”.
“E por que o senhor acredita que os jovens abraçaram essa causa?”, pergunto.
“Porque a juventude é muito sensível à questão da liberdade, um tema que está sempre em pauta. E aqui no Brasil temos essa ferida que ainda não foi sarada, precisamos reconstruir nossa história, denunciando os torturadores, indo nas casas mostrando para os vizinhos que esses senhores, aparentemente ‘bons velhinhos’, eram monstros no passado”, diz Costa.
Também está na manifestação Amelinha Telles, que foi presa em 1972 com os filhos pequenos, o marido e a irmã pela Oban e torturada pelo coronel de reserva Carlos Alberto Brilhante Ustra e pelo “capitão Lisboa”, codinome usado pelo delegado aposentado David Araújo.
“A tortura tem sido uma prática constante e esses jovens estão nas ruas mostrando que ela não está longe de nós, aliás, está perto. Essas manifestações também reiteram que é necessário mudar o caráter violento do Estado, que tortura nas delegacias e mata jovens na periferia”, diz.
E continua: “As torturas, os assassinatos e o ocultamento de cadáveres na ditadura militar foram denunciados, tanto dentro quanto fora do Brasil, e nenhuma providência foi tomada. É a própria história que agora cobra o fim da impunidade”.
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A manifestação chega ao fim em pouco mais de uma hora. Cantando, os manifestantes se dirigem a uma praçinha próxima, ponto de partida para São Paulo. Duas viaturas da Polícia Militar estacionam próximas à aglomeração.
“Não posso dizer que é torturador se não foi julgado”, argumenta o PM.
“Mas é justamente o que estamos pedindo: que ele seja julgado!”.
“E os senhores não pediram para a polícia fazer a segurança do evento?”

“Com licença, eu gostaria de falar com o líder de vocês”, pede solene um policial.
“Nós não temos lideres”, afiança um dos manifestantes.
“Como?”, pergunta o policial, acreditando se tratar de uma gozação.
“Nós viemos aqui protestar contra um torturador, um criminoso que deveria ser preso e levado a julgamento”, explica o manifestante.
“E quem é ele?”
“Ela se chama Mauricio Lopes Lima”, diz, entregando um panfleto com a foto e as denúncias de tortura. “Torturou a Dilma, nossa presidenta. O senhor o conhece?”.
O policial olha o panfleto, lê e relê.
“Então vocês estão fazendo uma manifestação…”, tenta definir o policial.
“… contra ele. Pela Comissão da Verdade e Justiça. E contra a impunidade dos torturadores”, ajuda o manifestante.
“Vocês têm ofício?”
“Não, como a ditadura não mandava ofício, a gente, nos protestos, também não manda; porque aí ele vai ser avisado e vai embora. É um protesto pacífico, ordeiro, para chamar a atenção da opinião pública”.
“Nós não somos contra nenhuma manifestação, até porque é algo assegurado pela Constituição. Mas eu digo o seguinte: se tivesse feito um oficio…”.
“Mas aí ele iria embora”.
“… pedindo policiamento e tudo…”.
“A manifestação é rápida, não atrapalha o trânsito, aliás, aqui nem trânsito tem, né?”.
“Não tem, mas a via precisa estar livre porque o cidadão tem o direito de ir e vir”.
“É lógico”.
“Esse…”, o policial, novamente, tenta encontrar o melhor termo.
“Torturador?”, sugere outro manifestante.
“Eu não posso falar que ele é um torturador se ele não foi julgado…”.
“A própria presidenta confirmou”, diz outro.
“Foi julgado?”, pergunta, impaciente.
“Mas é justamente o que estamos pedindo, que ele seja julgado!”.
“E os senhores não pediram para a Polícia Militar fazer a segurança do evento?”.
“Não, até porque não é ‘evento’, é uma manifestação. Mas teremos o apoio da Policia Militar?”.
“A gente está aqui é para que se evite outro crime”.
O manifestante sorri, como se, enfim, chegasse a um ponto de acordo com o policial.
“Nós também”.
Fonte:
Outras Palavras

15 de mai. de 2012

Descobri quem torturou e matou meu pai durante a ditadura. O que faço?



Marcelo Rubens Paiva
(filho de Rubens Paiva, militante torturado e morto pela Ditadura Brasileira)

Sensação estranha essa.
O que você faria se soubesse do endereço do militar responsável pela tortura e morte do seu pai?
E que ele circula pelo bairro livremente?
Soube hoje pelo vídeo postado no Youtube que um dos responsáveis pela morte do meu mora na Rua Marques de Abrantes, Botafogo, zona sul carioca, em que passo direto, sem nunca ter me dado conta de que no 218 mora a figura que mudou a vida da minha família e trouxe tanto sofrimento para nós e muitas outras famílias.
O que vou fazer a respeito?
Nada.
Vou esperar que a Comissão da Verdade faça.
Nem desviarei do meu caminho. Nunca desviei.
O vídeo foi postado pelo movimento Levante Popular da Juventude:
Que promove o esculacho a torturadores e agentes da repressão suspeitos em todo o país; os esculachos [ou escrachos] são ações similares às promovidas na Argentina e no Chile, em que jovens fazem atos de denúncias e revelações de torturadores da ditadura militar que não foram presos ou julgados.
No início de abril, um protesto semelhante foi realizado em São Paulo contra Harry Shibata, médico que teria atestado o suicídio do jornalista Vladimir Herzog, em 1975.
No manifesto do grupo:
Os manifestantes apoiam a instalação da Comissão da Verdade, cobram a localização e identificação dos restos mortais de desaparecidos políticos e exigem que os torturadores sejam julgados e punidos.
Os jovens condenam a movimentação dos setores conservadores dentro e fora das Forças Armadas, que não aceitam a democracia e não admitem a memória, a verdade e a justiça, desrespeitando a autoridade da presidenta Dilma Rousseff e ministros de Estado, como no manifesto “Alerta à nação”.
Por isso, os jovens saem às ruas para denunciar a impunidade de torturadores e criminosos da ditadura com o objetivo de sensibilizar a sociedade e garantir que a Comissão tenha liberdade para fazer o seu trabalho e alcance seus objetivos.”
No dia 26 de março, o movimento fez protestos em São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Fortaleza, Rio de Janeiro, Belém e Curitiba contra agentes da ditadura suspeitos de torturaram, mataram, perseguiram militantes.
E segundo matéria no ESTADÃO de hoje, de João Coscelli:
Manifestantes fazem uma nova rodada de “esculachos” contra torturadores e agentes ligados à ditadura segunda-feira, 14, em cidades de 12 Estados do País. Os protestos ocorrem poucos dias depois de a presidente Dilma Rousseff nomear os membros da Comissão da Verdade, destinada a esclarecer casos de violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988.
No Guarujá, litoral de São Paulo, cerca de cem pessoas protestaram em frente ao prédio onde mora tenente-coronel reformado Maurício Lopes Lima, denunciado pelo Ministério Público Federal (MPF) como torturador. Membros do grupo Levante Popular da Juventude, que organiza os atos, afirmaram ter recebido informações de que o ex-militar, chamado de “torturador pra presidente Dilma”, estaria em casa, mas ele não se manifestou. O protesto teve início às 10h e durou uma hora.
Em Belo Horizonte, o alvo do esculacho foi João Bosco Nacif da Silva, médico-legista da Polícia Civil da ditadura, que teria atestado uma laudo médico de suicídio para um prisioneiro torturado em uma delegacia da capital mineira em 1969. Cerca de 50 pessoas compareceram em frente ao prédio do médico com cartazes denunciando sua participação na repressão. De acordo com um dos manifestantes, Nacif da Silva se exaltou e tentou agredi-los, o que motivou o encerramento precoce do ato. A Polícia Militar apenas acompanhou a ação.
O grupo também promoveu manifestação em frente à residência do general da reserva José Antônio Nogueira Belham, denunciado como torturador do militante Rubens Paiva. Belham, que atualmente mora na zona sul da capital fluminense, foi o chefe do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna) do Rio durante a ditadura.
Na capital baiana, quem recebeu o esculacho foi Dalmar Caribé, cabo do Exército acusado de ser o responsável pelos assassinatos dos militantes Carlos Lamarca e Zequinha Barreto. Em Recife, o desembargador aposentado Aquino de Farias Reis, ex-delegado do Dops também foi alvo de manifestação.
Houve protestos também em Teófilo Otoni (interior de Minas), João Pessoa (Paraíba), Belém (Pará), Aracaju (Sergipe), Fortaleza (Ceará) e em Natal (Rio Grande do Norte).
Bacana. Criativo. Justo.
Obrigado, garotada.
A família agradece.


Fonte: