8 de ago. de 2014

Preconceito e Reconhecimento

“O futebol é um espelho da realidade”. Essa é uma sentença curta e crítica que poderia ser enunciada por um renomado filósofo ou sociólogo europeu, mas cuja autoria é de Arouca, volante do Santos Futebol Clube, pouco conhecido no mundo acadêmico. Esse precioso mote de reflexão teve como inspiração um lamentável caso de racismo da torcida do time Mogi Mirim contra o jogador durante o Campeonato Paulista deste ano. Na lista de vítimas de racismo televisionados deste ano podemos citar também Francisco Assis, lateral-esquerdo do Uberlândia, e Márcio Chagas da Silva, juiz do Campeonato Gaúcho. Quando incluímos o crescimento da violência simbólica contra determinadas classes sociais na mídia, a exemplo dos médicos cubanos, dos comentários desumanos feitos pela jornalista Rachel Sheherazade e do aumento significativo das manifestações preconceituosas contra populações de baixa renda nas redes sociais,concluímos que estamos em uma crescente de violência social contra determinadas raças e classes econômicas. Fatos que não podem ser ignorados e que merecem reflexão.
Os eventos citados causaram um mal-estar generalizado na mídia brasileira, pois colocaram em xeque a ideologia do “brasileiro cordial”e da “democracia racial”. Já me posicionei sobre os mitos raciais de Darcy Ribeiro quando tratei da “dignidade da pessoa humana” em uma coluna anterior. Enquanto os jornais buscam uma causa para o “surgimento” desse fenômeno e promovem eventos para “acabar” com o problema, os acadêmicos se questionam sobre quais seriam os motivos para o secular preconceito brasileiro “sair do armário”e se tornar manifesto.
Como eu tomo partido dos acadêmicos, acredito na existência de um preconceito histórico-cultural de cor e de classe na sociedade brasileira que por muitos anos lutou para se tornar natural e imperceptível. Utilizo do conceito de ideologia de John Thompson para defender minha tese de que toda manifestação jornalística e artística (novela, música, fotografia etc.) que sustenta uma perspectiva de sociedade miscigenada e harmoniosa, sem conflitos raciais ou de classe, tenta produzir um sentido que serve para estabelecer e sustentar relações de poder que beneficiam as classes econômicas dominantes – que por razões históricas possui o traço étnico caucasiano europeu.
Minha hipótese para a transição do preconceito situado no recalque da esfera na violência simbólica para as manifestas na esfera pública reside no fenômeno social de diminuição da desigualdade social operada pelos programas de transferência de renda e a instituição dos programas de cotas para negros, indígenas e alunos de baixa renda que estudam em escolas públicas. A desigualdade social vigente nos 500 anos de nossa história garantiu uma separação espacial entre dominantes e dominados, negros e brancos, pobres e ricos que se tornou natural em nossa cultura. Havia um lugar social já determinado na educação e no mercado de trabalho para os filhos dos pedreiros e  domésticas, para os emergentes da classe média e para os herdeiros da elite – existindo pequenos espaços nos esportes, na religião e no mercado informal que legitimavam uma mudança de classe social. Uma pequena loteria que criava esperanças de reconhecimento e mudança de vida para as pessoas fragilizadas que obedeciam a injusta estrutura social.
As mudanças operadas pelos programas sociais do governo federal nos últimos dez anos romperam com muitas separações espaciais e simbólicas que dividiam os pobres, a classe média e os dominantes. A expansão da classe trabalhadora e o aumento do poder aquisitivo geraram restruturações dos espaços que não foram aceitas e reconhecidas pela classe média e pela elite. “Os aeroportos viraram rodoviária. Empregada agora usa avião para ver a família no Norte”, dizem osreacionários inconformados com a perda do lugar e da distinção social que o serviço aéreo proporcionava. “Orkutização do Facebook”, “os vagabundos do bolsa família”, “os bandidos do funk”, “esses nordestinos sem educação”, “essas empregadas que querem virar madames”, “na ditadura militar, o Brasil não era essa desordem” são frases carregadas de preconceito que já são comuns em sociedades fascistas como a paulista. Aposto que o leitor já se deparou com um e-mail ou frase em rede social com esse tipo de conteúdo.
Os conflitos étnicos e de classe tornaram-se mascarados por muito tempo, operando na sutileza da aceitação e na negação do reconhecimento. Não há problema em aceitar que os negros, pardos, índios e pobres existam e que transitem entre nós, afinal somos uma sociedade colonizada, subdesenvolvida e multirracial. Muitos deles fazem trabalhos pesados, são limpinhos, sorridentes e entretêm. Também os consideram mal-educados e poucos confiáveis, mas acreditam que o uso da força física e verbal os faz andar na linha. Entretanto, não os reconhecem como iguais. Não aceitam uma justiça social que corrija os problemas históricos que a classe dominante causou a essa parcela da população. Não aceitam disputar, em pé de igualdade, espaços em sites, bairros, elevadores, concessionárias, aviões e universidadesO discurso dominante no Brasil é o de aceitar as diferenças, mas nunca o de reconhecer o diferente como um igual.
Por Arthur Meucci.
Mestre em Filosofia pela USP, doutorando em Educação, Arte e História da Cultura pelo Mackenzie e membro da Associação Filosófica Scientiae Studia. Professor  conferencista da ECA/USP e do curso de Ética e Meio Ambiente do PEC/FGV-SP e consultor do Espaço Ética.
Artigo publicado na Revista  Filosofia:  ciência & vida, maio 2014.

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