19 de jul. de 2011

Alergia ao bronze

A crítica e o veto aos bustos, que a seu modo ornam alguns recantos da cidade de São Paulo, traz de volta uma história triste de conflitos da metrópole com seus monumentos. Não só na pilhagem de placas de identificação nos depenados pedestais do Largo do Arouche, mas também no roubo de bustos de eminentes figuras, como o da pianista Antonietta Rudge, na Praça Portugal, obra do escultor Luiz Morrone. Ou o de Goethe, na Praça Dom José Gaspar, obra de Tao Sigulda. O vandalismo deixou sua marca na destruição do anjo de alumínio e cerâmica esmaltada e policromada que o artista plástico Fúlvio Pennacchi esculpira para o túmulo de sua família, no Cemitério da Consolação. Nem tem faltado a intolerância político-ideológica no trato das obras de arte nos espaços públicos. O Monumento aos Heróis da Travessia do Atlântico, bela obra de Ottone Zorlini, homenagem aos pilotos italianos Del Prete e Pinedo por sua temerária viagem de avião, em 1927, foi removido da beira da Guarapiranga para a Av. Brasil e escondido no meio de arbustos, para finalmente retornar ao bairro de origem, sob acusação de ser um monumento ao fascismo, quando é, na verdade, obra de arte. Motivação oposta, mas do mesmo gênero, alcançou a escultura de Flávio de Carvalho em homenagem ao poeta García Lorca, parcialmente destruída por uma bomba em 1969, "acusada" de comunismo, e posteriormente restaurada.
Paulo Liebert/AE
Paulo Liebert/AE
Diante da São Francisco, busto de Álvares de Azevedo ‘sequestrado’ por estudantes
Nem o amor escapou da reacionária aversão à mensagem dos monumentos. A escultura de homenagem a Olavo Bilac, O Beijo Eterno, obra de William Zadig encomendada pelos estudantes da Faculdade de Direito, teve que ser removida da esquina da Av. Paulista com a Rua Minas Gerais. Os vizinhos incomodaram-se com a suposta indecência do beijo de um europeu nu numa índia nua. Alternou descansos no depósito da Prefeitura com permanências de obra de arte mal-amada em diferentes lugares da cidade até ser sequestrada pelos estudantes do XI de Agosto e colocada a salvo no território livre, diante da faculdade. Ali, sequestrado e salvo pelos mesmos estudantes, um busto de Fagundes Varela passa por ser de Álvares de Azevedo, ambos poetas e ex-alunos da academia.
Nestes dias, ao recusar um busto de bronze para uma das praças da cidade de São Paulo, a Comissão de Gestão de Obras e Monumentos Artísticos em Espaços Públicos questionou o gosto dos que, por esse meio, expressam menos o que é belo e mais o que julgam justo. Não deixa de ser controvertida a sentença de que "pontuar praças e canteiros centrais da cidade com bustos e cabeças (...) nada mais representa que poluir a paisagem". Além do que, "não se pode ficar preso a uma ideia do século 19", como esclareceu a presidente da comissão. Na proclamação desse veto, fixaram norma, mas omitiram-se seus autores em relação a outros marcos "poluentes" que vêm sendo incorporados ao cenário da cidade sem que fique claro o que têm a ver com ela e menos ainda sem que seus patronos levem em conta a concepção do espaço que preside a sua ocupação.
O notório mau gosto dos símbolos das entidades de serviços, geralmente colocados nos locais de entrada das cidades, não foi, neste caso, tema de objeção. Do mesmo modo, a colocação de Bíblias de alvenaria em locais públicos, edificadas para exibir um versículo e difundir os valores de uma religião determinada, não entra no elenco do questionamento agora adotado. Prosaicos monumentos que não fazem jus à beleza poética do livro sagrado, até porque a Palavra se propaga no púlpito, no refinamento da retórica, e não no cimento da idolatria. Por outro lado, imagens de santos e ermidas têm sido erguidas em espaços públicos em nome de outra religião, em conflito com o fato essencial de que no catolicismo a imagem não se divorcia do espaço sagrado do culto. É anômala manifestação de fé relegá-las ao profano de lugares de trânsito e até de uso antirreligioso, desprovidas do respeito que lhes corresponde. No fundo, uma guerra religiosa entre alguns, que é também de alguns contra todos. Maneira pobre de pensar e praticar a riqueza das religiões.
A insistência em usar o espaço público para a implantação ilegal de marcos e monumentos de proselitismo religioso conflita abertamente com nossa tradição republicana, do Estado não confessional, conquista fundamental em nome da pluralidade e da liberdade das crenças, que devem ser praticadas nos recintos próprios, como afirmação de um direito pessoal e privado. Os que abusam e os que permitem o abuso, por demagogia eleitoreira ou ignorância, não se dão conta do caráter antidemocrático dessas profanações, que corroem, justamente, os fundamentos da liberdade religiosa de que gozam seus autores.
Mesmo no pedido para colocar uma escultura numa praça, em nome de um ideário particular, seja ele político, literário ou religioso, há ampla margem de dúvida quanto ao que com o gesto se pretende: se afirmar a particularidade e nela a recusa do reconhecimento da universalidade que há no pluralismo das ideias e das artes ou se afirmar o cosmopolitismo que deveria ser característico da democracia urbana. É problemático constatar que, em cidades como São Paulo, os particularismos estejam cada vez mais empenhados numa guerra de conquista territorial e simbólica para proclamar os próprios valores e não para proclamar a precedência da diferença como direito e virtude civilizadores. Ao invocar a inferioridade estética dos bustos e sua obsolescência histórica como meio de exaltação da memória, a Comissão de Gestão na verdade joga no mesmo terreno dessa crescente intolerância.
Há algum tempo, ouvi sábia referência à questão do belo na cidade, justamente num debate sobre a ocupação de espaços públicos por obras de arte. Tratava-se de um debate no Centro Cultural Banco do Brasil sobre grafite e grafitagem. Grafiteiros defendiam-se das acusações quanto à suposta inferioridade estética de sua arte chamando a atenção para a pobreza das obras de arte de convenção que podem ser vistas em praças e locais públicos da cidade.
Nesse sentido, ao se manifestar sobre o caráter ultrapassado do busto como meio de expressão visual dos sentimentos dos que por meio deles querem perpetuar a memória de alguém, a comissão, sem a devida ênfase na questão subjacente e mais fundamental, chamou a atenção para o imobilismo estético da arte do busto, aliás, não obstante, a seu modo bela e não raro comovente, ainda que o tempo a tenha tornado ingênua.
Indiferença branca. Desse mal não padecem os grafiteiros, quase compulsoriamente criativos e inovadores porque devotados a uma arte que, infelizmente, padece das limitações de tudo que é sazonal e temporário. Não faz muito, frustrei-me ao visitar determinado recanto da cidade, onde vira belo e expressivo grafite que contracenava com uma touceira de capim, nascida oportunisticamente numa rachadura da calçada onde o pó acumulado e a umidade deram a uma semente trazida pelo vento o privilégio de germinar. O grafiteiro anônimo compreendeu o milagre daquela anômala invasão do pavimento e no muro ao lado, em preto, pintou uma solitária mangueira de água que, generosa, irrigava imaginariamente a touceira, manipulada por um jardineiro invisível, livrando-a da solidão e enchendo de poesia um canto irrelevante da cidade. Frustrei-me porque já não encontrei a grafitagem: alguém caiara a parede para restituir-lhe a indiferença branca da falsa limpeza de um muro sem imaginação. A touceira ali ao lado definhava, perturbando com seu verdor decadente o cinzento sujo do cimentado e seu invisível e autoritário poderio.
Em nossas grandes cidades, sobretudo São Paulo, o diálogo e a composição harmônica dessas obras com o cenário envolvente é pobre e, não raro, uma gritante desafinação. Aqui, prospera o que o antropólogo americano Oscar Lewis, em seus estudos sobre o México, definiu como cultura da pobreza. Uma cultura de colagem de restos de materiais para compor a habitação residual dos que a vida privou de tudo, até dos meios de fazer da morada uma expressão da alma e do imaginário. Essa cultura tem se estendido aos espaços públicos, na localização dos monumentos.
Nossas grandes cidades não têm uma política cultural de fomento à inovação na obra de arte destinada aos espaços públicos, como se viu justamente neste caso da recusa: uma entidade particular mandou fazer a escultura sem entender-se previamente com o setor da Prefeitura que cuida do assunto. Tampouco têm uma política de harmonização do espaço público com o sentido e a proposta das obras de arte nele depositadas. Monumentos e obras de arte nesses espaços têm a função de desconstruir criticamente a banalidade do cotidiano e reeducar libertadoramente seus usuários. São os cenários das virtualidades criativas e educativas do monumento na afirmação e moldagem do espírito da sociedade, como espelho de identidade na pluralidade estética, social e histórica. Sua falta priva a cidade do decoro próprio da pauta de civilidade que é o grande legado do urbano e da cidade.

*JOSÉ DE SOUZA MARTINS É PROFESSOR EMÉRITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO E, AUTOR, ENTRE OUTROS, DE UMA ARQUEOLOGIA DA MEMÓRIA SOCIAL (ATELIÊ EDITORIAL, 2011).

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