5 de abr. de 2011

Toda revolução é uma revolução "sui generis"

Uma revolução se assemelha à morte de uma estrela agonizante, uma brilhante explosão em cores que dá origem não a uma galáxia nova, mas a uma nebulosa, uma nuvem disforme de energia instável. E, embora cada revolta seja diferente, nesta era incerta de levantes árabes e de intervenções do Ocidente, enquanto os mísseis americanos caem sobre a Líbia, enquanto o presidente do Iêmen vacila à beira da catástrofe e as tropas sírias disparam em manifestantes, a história da revolução ainda pode apresentar algumas indicações sobre o futuro.

O sociólogo alemão Max Weber apontou três razões para os cidadãos obedecerem a seus governantes: prestígio histórico, carisma do governante ou ordem e justiça. A primeira razão é particularmente importante porque no mundo árabe até as repúblicas tendem a ser dinásticas. Antes de ser deposto, o egípcio Hosni Mubarak preparava seu herdeiro. Antes de falecer, em 2000, Hafez Assad, ditador sírio, entregou o poder ao filho Bashar. O coronel Muamar Kadafi governou por muito tempo por meio de capangas herdeiros, cada qual desempenhando uma função diferente: um era o executor totalitário; outro, o liberalizante pró-Ocidente. Cada um competindo pela sucessão. Do mesmo modo, Ali Abdullah Saleh, do Iêmen, é protegido por forças especiais comandadas por filhos e netos.

Entretanto, "a vida de uma dinastia corresponde ao arco da vida de um indivíduo", escreveu Ibn Khaldun, historiador islâmico do século 14. Todas essas "monarquias" árabes tiveram como base o prestígio de uma religião, de uma personalidade ou de um vínculo hereditário. "O prestígio, no entanto, acaba inevitavelmente degenerando", escreveu Khaldun. As revoluções são desencadeadas por acontecimentos dramáticos:uma eleição fraudada no Irã, em 2009, ou uma autoimolação na Tunísia. Mas são também reflexo de depressões econômicas persistentes, sem mencionar as crescentes esperanças e a tentação de uma comparação: a internet mostrou que a juventude árabe compara os direitos mínimos que lhe são concedidos com os de seus contemporâneos ocidentais.

A diferença de culturas entre os encarquilhados faraós e os jovens obcecados pelo Twitter agravou a crise, que ainda poderá marcar o fim do antigo paradigma do governante árabe, o xeque sábio e poderoso. Está em perigo o ditador que é regularmente ridicularizado pelo jovens por seus cabelos tingidos de preto, em estilo gótico, com as maçãs do rosto inchadas por cirurgias plásticas e cuja entourage inclui tantas enfermeiras quantos generais.

Esses ditadores estão tão esclerosados que só percebem que há uma revolução quando ela desaba sobre suas cabeças. Em 1848, o príncipe Klemens von Metternich, chanceler da Áustria, estava tão velho que, literalmente, não ouvia as multidões do lado de fora de seu palácio. Quando as revoltas atuais eclodiram, imagino que Kadafi ou que o rei Hamad al-Khalifa, do Bahrein, tiveram uma conversa mais ou menos nos seguintes termos: "O que está havendo? Uma revolta?", questionou o rei francês Luís XVI, em 1789. "Não, majestade", respondeu seu braço direito. o duque de La Rochefoucauld-Liancourt. "É uma revolução."

Revoluções sem líderes, sem organização, se caracterizam por um impulso magicamente espontâneo que é mais difícil de esmagar. Lenin acabara de concluir que nunca haveria uma revolução enquanto ele vivesse quando, em fevereiro de 1917, as multidões famintas de São Petersburgo derrubaram o czar Nicolau II. O revolucionários estavam no exterior, exilados e ameaçados pela polícia secreta infiltrada entre eles.

Desta vez, a espontaneidade sem liderança teve a ajuda do Facebook, o que certamente acelera a mobilização das multidões e a transmissão da cultura ocidental, seja dos solilóquios de Charlie Sheen ou das alegrias da democracia americana. As maravilhas da tecnologia, no entanto, são exageradas: em 1848, a revolução que mais se parece com a atual, os levantes foram da Sicília a Paris, Berlim, Viena e Budapeste em poucas semanas, sem telefones e muito menos Twitter, graças ao vigor do impulso e ao rígido isolamento de governantes repressivos.

Voz das ruas. Uma vez que as massas ocupam as ruas, a capacidade de esmagar as revoluções depende da vontade e da capacidade do governante de derramar sangue. Quanto mais moderados são os regimes - como o do xá do Irã, em 1979, ou o de Mubarak no Egito -, mais facilmente serão derrubados.

Quanto mais brutal é a polícia, como a de Líbia, Iêmen ou Síria, mais difícil será derrubar o governo. O Irã reprimiu brutalmente sua oposição. Para Teerã, é fundamental não ser aliado dos EUA e banir a mídia internacional, porque é muito mais fácil massacrar o povo do país sem o controle do Departamento de Estado ou da CNN.

"Começos muito auspiciosos muitas vezes terminam de maneira vergonhosa, lamentável", afirmou Edmund Burke, observador da Revolução Francesa. Basta ver a Revolução dos Cedros, do Líbano contra a Síria, que terminou com a instalação de um governo dominado pelo Hezbollah e apoiado por Damasco.

O primeiro sucesso da revolução cria uma vertigem exuberante de liberdade democrática, como vimos no Cairo e em Benghazi. Na Europa, em 1848, e na Rússia, em 1917, houve primaveras igualmente arrebatadoras. Muitas vezes, surgem líderes temporários - como Alexander Kerenski, o empertigado primeiro-ministro russo que permaneceu no poder antes de os bolcheviques assumirem -, mas toda a revolução tem suas figuras que dão cobertura aos homens fortes. O aiatolá Khomeini nomeou Mehdi Bazargan, um democrata, para o cargo de primeiro-ministro, mas ele renunciou após a crise dos reféns.

A festa não dura muito. A desordem, a incerteza e as divergências de uma revolução fazem com que os cidadãos anseiem por uma autoridade estável, ou então adotem o radicalismo. Evidentemente, os extremistas aplaudem a deterioração. Lenin, o lacônico decano da faculdade de ciência da revolução, a condensou tudo em um slogan: "Quanto pior, melhor." A essa altura, as soluções extremas se tornam mais aceitáveis. "Como fazer uma revolução sem pelotões de fuzilamento?", questionou Lenin.

Nesse estágio, a liderança torna-se vital. Lenin conduziu pessoalmente o golpe bolchevique, em outubro de 1917. Khomeini foi decisivo na criação de uma teocracia xiita no Irã, em 1979, assim como Nelson Mandela garantiu uma transição pacífica na África do Sul. No entanto, não existem líderes opositores facilmente identificáveis na Líbia, no Iêmen ou na Síria - um cruel aparato de segurança dizimou os candidatos.

Em 1848, a primavera dos povos não sobreviveu à intervenção externa. O czar Nicolau I esmagou as revoluções no Império Austríaco, o que lhe granjeou o apelido de "Gendarme da Europa". A intervenção saudita contra os rebeldes xiitas no Bahrein sugere que os sauditas são os gendarmes do Golfo. No Iêmen, o presidente Saleh também pediu ajuda aos sauditas, que ainda não veio. Evidentemente, na Líbia ocorreu o inverso. O Ocidente apoia os rebeldes contra o massacre de Kadafi. Cada caso é diferente, cada revolução é um evento local. O que quer que aconteça daqui para frente no mundo árabe, não será um retrocesso.

Depois dos levantes de 1848, a incerteza deu origem a estranhos híbridos políticos, modernos e autoritários: Luís Napoleão Bonaparte, posteriormente imperador da França, e, mais tarde, nos anos 1860, Otto von Bismarck, chanceler da Prússia.

No complexo Egito, o resultado das revoluções árabes, provavelmente, será um híbrido semelhante, uma nova democracia, com os militares em um papel peculiar, no estilo da tutela turca. Na Líbia, pode ser simplesmente um retorno à rivalidade tribal. Atacada por aviões britânicos e americanos, a Líbia talvez domine as manchetes, mas é a Síria que decidirá o destino dos três mais importantes - Egito, Arábia Saudita e Irã. Afinal, como dizia Metternich, "quando Paris espirra, a Europa está com gripe". A Síria é o antigo coração árabe. O levante sírio poderá encorajar uma nova revolução no Irã, que enfrenta o desafio de explorar as revoltas que solapam os aliados americanos na região sem sucumbir à própria agitação interna.

Na Síria, a mudança também pode libertar o Líbano do Hezbollah. A queda do rei do Bahrein pode contagiar a monarquia saudita, assim como a derrubada do rei egípcio Farouk, por Gamal Nasser, em 1952, foi o fim da monarquia iraquiana anos mais tarde. Nunca devemos esquecer de que, por mais liberais que sejam essas revoluções do Facebook, as rivalidades entre xiitas e sunitas são muito mais fortes do que o Twitter e a democracia.

O que virá depois? É muito cedo para dizer. Devemos lembrar que, embora os entusiastas citem as revoluções de 1989 como estímulo para as revoluções de hoje, até que ponto as revoltas na Europa Oriental foram bem-sucedidas? A democracia floresceu no leste europeu, assim como na Georgia e nos países do Báltico, mas a maioria das ex-repúblicas soviéticas são ditaduras. Nenhuma doutrina pode ou deve se encaixar nesse novo caleidoscópio, no universo multifacetado que é o Oriente Médio. Devemos nos convencer de que será um jogo demorado, o grande torneio do século 21.

Devemos proteger vidas inocentes sempre que pudermos, com um poderio aéreo limitado, mas sem soldados pisando no solo.

Devemos analisar quais são os países que nos importam em termos estratégicos e, depois que a festa do Facebook acabar, descobrir quem está realmente controlando os eventos nos lugares que são importantes para nós.

Os julgamentos mais perfeitos são de estadistas que sabiam tanto reprimir quanto fazer revoluções. "A Velha Europa está no começo do fim", disse Metternich ao se ver cercado de revoltas, "A Nova Europa, porém, sequer começou a existir. Entre fim e começo, haverá o caos." Como bem resumiu Lenin, a questão fundamental de toda revolução é sempre é quem controla quem.

Por
Simon Sebag Montefiore, historiador britânico e autor de Stalin: a corte do czar vermelho (editora Companhia das Letras).

O Estado de S. Paulo, 31/03/11

* meus grifos.
____________________________________

Opinião:

As redes sociais, a internet são meios e não o fim para causar as "revoluções". Além dos meios, é necessário querer mudar, a reflexão sobre os direitos mínimos dos cidadãos.

Infelizmente, ainda impera o medo nestas nações dominadas pelas dinastias. A dinastia da repreensão, do cala boca, da ameaça constante, do temor. Não só os países árabes, mas também, países como a Coreia do Norte, China, Cuba, que fazem com que a cultura do medo rejam a vida do povo destes países.

Luciana

Um comentário:

  1. E a "dinastia" do mercado regendo a vida no mundo neoliberal? Mais "boazinha" que os regimes ditos "duros"? Esta é, pra mim, a pior de todas, até porque sabe como nenhuma preparar sua própria impunidade.

    ResponderExcluir