19 de abr. de 2011

Quem tem medo da promiscuidade?

Os últimos dias foram pródigos em acontecimentos parecidos: agressões a gays, chacina de crianças em escola, ataques verbais a negros, uma surpreendente novela num dos maiores canais de televisão sobre os porões da ditadura... Deveríamos pensar esses fatos como um conjunto inteligível da sociedade brasileira atual? Deveríamos separá-los por planos - o plano político, o moral, o psíquico, o histórico, e assim por diante? Ou haverá um plano anterior em que todos esses fatos se apresentem ao mesmo tempo à nossa compreensão, como fato social total? Questão teórica, dirá o leitor, não precisamos de mais uma. O problema é que sem método de pensar acabamos embriagados de fatos, caímos numa espécie de ressaca midiática.
Um deputado, Jair Bolsonaro, está se defendendo das acusações de racismo e homofobia. Vamos lhe dar o benefício da dúvida: ele não entendeu a pergunta da entrevistadora (o que faria se um filho seu casasse com uma negra?), e desancou a promiscuidade.

No plano moral, não precisamos definir promiscuidade; provavelmente somos todos contra. No plano da sexualidade, seria a falta de moral que conduz a fazer sexo com qualquer um; e provavelmente nem todos somos contra.

Acontece que a promiscuidade aparece também em outro plano, o da história. É um fator de longa duração, que operou de Cabral até hoje, sem intermitência. Não fosse ela, seríamos outro país. A língua que falamos é um exemplo, resultou da promiscuidade do português com as línguas indígenas e africanas. O Estado, as academias, a escola, os manuais de redação lutaram todo o tempo para proteger o português das outras línguas. Perderam. Ficaram vestígios dessa luta inglória - o hábito de chamar as línguas africanas de dialetos, diminuindo-as; os nomes indígenas de locais paulistas, resistentes de cinco séculos às designações oficiais...

A família brasileira, desde o começo, foi promíscua. A grande fazenda, o curral, as minas, as bandeiras amontoavam brancos, índios, negros e mulatos na mesma casa, nas mesmas canoas e redes, de dia e de noite. A unidade de produção coincidia com a unidade familiar: onde se trabalhava era onde se comia e onde se amava (e/ou odiava). Essa coincidência ajuda a explicar nossa miscigenação. Somos patriarcais, etc., porque fomos promíscuos. Parece estar aí um significado da homofobia e negrofobia brasileiras: conter a promiscuidade. A Ordem sempre a combateu com sermões, conselhos e leis. Inventou, certa época, termos jurídicos: inversão, para homossexualidade; cromoinversão, para casamentos inter-raciais. Deus livrasse delas nossa família. Não livrou.

Detestar pretos e homossexuais é um livre-arbítrio; há quem os deteste até por motivo religioso. No plano político, o da luta pelo poder, ocorre de o negrófobo ser quase sempre homófobo. Negros e homossexuais são avatares da promiscuidade que nos ameaça.

A promiscuidade criou a patuleia. Se esta se mantivesse no seu lugar, nenhum problema. Não houve racismo durante a escravidão: não era necessário. O problema começa quando a mulataria luta para se tornar povo, não o povo retórico dos políticos, mas comunidade de sujeitos cidadãos. Nessa luta, a Ordem apresentou suas armas. A primeira foi classificar a promiscuidade como problema moral/sexual, recalcando o plano histórico em que, afinal, todo fato também ocorre.

A mais duradoura e eficaz dessas armas é a tortura. O senso comum vê o torturador como um desviante moral/sexual, mas essa não é sua característica principal. Politicamente, a tortura visa a impedir a transformação da mulataria em povo. Espancar a criança para não virar viado (transviado, invertido), por exemplo, é obrigação do pai. Se este falhar, que entre a lei e a polícia, com seu arsenal de palmatórias e choques.

Essa é essa pedagogia coerentemente defendida pelo deputado Bolsonaro. O negrófobo, o homófobo e o torturador têm um fundo comum. Não no plano moral/sexual, em que os valores se combinam subjetivamente. Mas no plano histórico-social, em que se combinam objetivamente.



Por

Joel Rufino dos Santos, Doutor em Comunicação e Cultura.
O Estado de S. Paulo, de 17/04/11

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