A polêmica
envolvendo o escritor Monteiro Lobato, acusado de empregar trechos racistas em
seus livros, está longe de terminar.
Nesta terça-feira, após mais de três horas de discussão, o Ministério da
Educação (MEC) e o Instituto de Advocacia Racial (IARA) encerraram a primeira
audiência de conciliação sobre o livro Caçadas
de Pedrinho sem chegar a um acordo. Uma nova reunião foi marcada para o dia
25 de setembro.
O parecer do CNE que iniciou o caso foi suscitado sobretudo pela abordagem, no
livro, da personagem Tia Anastácia, devido a trechos como o que comparava a
cozinheira a uma "macaca de carvão". Embora o MEC tenha se
comprometido a acrescentar uma nota explicativa contextualizando historicamente
esse tipo de comparação, o IARA acha pouco.
No texto da ação que move contra o MEC diz: "Não há como se alegar
liberdade de expressão" quando "a obra faz referências ao 'negro' com
estereótipos fortemente carregados de elementos racistas".
Sobre esta delicada questão, pronunciou-se na Folha de S. Paulo de ontem a Professora Noemi Jaffe (USP),
sugerindo a importância da reflexão sobre os usos da linguagem e suas
vicissitudes.
OPINIÃO
Não se pode tratar alunos como meros espectadores ingênuos
NOEMI JAFFE
A palavra ficção vem de "fingere", que, no inglês, derivou também em
"finger", ou dedo, em português. Isso porque era com os dedos que os
artistas da antiguidade modelavam o barro para dar a ele formas inventadas.
Atualmente, como produto dessa história de modelagens e representações, ficção
é praticamente sinônimo de "mentira", "fingimento": são
formas criadas pela mente humana.
É de se estranhar, portanto, para dizer o mínimo, que alguns educadores, entre
cujos objetos de trabalho estão a invenção verbal, queiram censurar a obra de
Monteiro Lobato, de Dalton Trevisan, de Jorge Amado ou de quem quer que seja,
por conterem alusões racistas, pornográficas ou afins.
Antes de tudo, de qualquer argumentação histórica ou contextual, as obras
desses autores, sob ameaça de censura, são invenções ficcionais, todas perfeitamente
delimitadas por esse escopo.
Nem os alunos são ingênuos a ponto de achar que uma narrativa literária é a
verdade e nem os professores -espera-se- vão abordar essas histórias como se
elas o fossem.
Quando um professor se depara, em sala de aula, com qualquer tratamento
ficcional de teor divergente das Leis de Diretrizes e Bases, que, entre outras
coisas, proíbem o ensino de conteúdo racista, é só mostrar aos alunos que:
1) é ficção;
2) a
língua é um organismo vivo, passível de mudanças;
3) os hábitos
comportamentais e literários também se modificam;
4) um
autor e sua obra não podem ser julgados por afirmações ficcionais e
contextualizadas.
Na verdade, trata-se de uma ótima oportunidade de se discutirem os limites
entre a realidade e a ficção e o significado das construções politicamente
corretas, que muitas vezes mais disfarçam do que educam.
Isso, aliás, independe de faixa etária ou econômica. As crianças e adolescentes
brasileiros são suficientemente preparados pelo cinema, a televisão, a internet,
a vida e a própria literatura para fazerem a distinção entre o real e o não
real. Não se pode tratar os alunos como se fossem meros espectadores, ingênuos
e influenciáveis.
LEITURA ATIVA
A leitura ativa é aquela que possibilita ao aluno ler criticamente,
compreendendo o tema, a linguagem e as mudanças sociais e históricas.
Se fosse o caso de censurar liminarmente preconceitos ficcionais, hoje não
leríamos Madame Bovary e provavelmente parte da Bíblia poderia ser vetada.
A literatura e a arte são territórios onde cabem o erro, o preconceito, a
divergência e a loucura. Isso não deseduca, mas, ao contrário, prepara os
alunos para questionarem a si mesmos e ao mundo.
Fonte:
Por
NOEMI JAFFE, doutora em literatura brasileira pela USP, ex-professora de
literatura em colégios particulares em São Paulo e autora de "Quando Nada
Está Acontecendo" (Martins), entre outros.
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