29 de jul. de 2012

Sem munição


Ouvi dizer que, se dermos uma volta por Waikiki, em poucos minutos alguém nos entregará um folheto com mulheres seminuas segurando armas de fogo, escrito em inglês, talvez também em japonês, com propaganda de um dos muitos estandes de tiro. O maior da cidade, o Royal Hawaiian Shooting Club, anuncia que seus instrutores falam fluentemente japonês, que é também o idioma padrão de seu site. Há anos esse setor da economia do Havaí visa explicitamente a turistas japoneses, procurando tirá-los das praias e dos resorts e atraí-los para os shoppings, para fazer o que é proibido no seu país.
Os estandes de tiro de Waikiki, em geral cheio de japoneses, são iguais aos de todas as principais cidades turísticas. Entretanto, eles se encontram na interseção de duas sociedades com enfoques diametralmente opostos em relação a armas e seu papel na sociedade. O horrendo massacre no cinema de Aurora, Colorado, contribuiu para ressaltar que as leis sobre o controle de armas dos Estados Unidos são as mais brandas do mundo desenvolvido, e sua taxa de homicídios, a mais elevada. Dos 23 países "ricos" do mundo, a taxa de mortes por arma de fogo dos EUA é cerca de 20 vezes superior à dos outros 22. Com quase uma arma de fogo por pessoa, os EUA têm a taxa mais elevada de cidadãos armados do mundo; o Iêmen, país dilacerado por conflitos tribais, é o segundo, com cerca da metade da taxa americana.
Mas, e o país que se encontra na extremidade oposta do espectro? Qual é o papel das armas de fogo no Japão, a nação do mundo desenvolvido onde há menos delas em circulação e onde impera o controle mais rigoroso? Em 2008, os EUA registraram mais de 12 mil homicídios por armas de fogo. O Japão todo registrou apenas 11, menos do que os mortos no massacre de Aurora. E aquele foi um ano extraordinário: em 2006 houve apenas impressionantes 2, e quando o número saltou para 22 em 2007, foi um escândalo nacional. Em comparação, sempre em 2008, 587 americanos foram mortos por armas de fogo disparadas acidentalmente.
Quase ninguém no Japão é dono de uma arma. A maioria delas é ilegal e no país vigoram onerosas restrições à compra e à manutenção das poucas que são permitidas. Até a famigerada organização Yakuza, uma espécie de máfia, tende a renunciar às armas de fogo. As poucas exceções costumam se tornar casos de destaque nacional.
Os turistas japoneses que atiram no Royal Hawaiian Shooting Club infringiriam três leis em seu país: uma, que proíbe a posse de arma de fogo; outra, que proíbe a posse de munição sem licença; e outra que proíbe disparar a arma. Só a primeira já prevê condenações que variam de 1 a 10 anos de cadeia. Pistolas são totalmente proibidas. Desde 1971, é ilegal comprar, vender ou transferir espingardas de pequeno calibre. Quem tinha um rifle antes disso pode conservá-lo, mas seus herdeiros terão que entregá-lo à polícia quando o dono morrer.
As únicas armas de tiro que os japoneses podem adquirir e usar legalmente são espingardas de caça e armas de ar comprimido. Mesmo assim, não é fácil. O processo é descrito num estudo de David Kopel que se tornou referência sobre o controle de armas no Japão, publicado na Asia Pacific Law Review de 1993. Kopel, que não é nenhum maluco de esquerda, é membro da National Rifle Association (NRA) americana e já escreveu na National Review que leis mais brandas sobre o controle de armas de fogo poderiam ter detido Adolf Hitler.
Para ter arma de fogo ou tiro no Japão, em primeiro lugar o cidadão precisa assistir a uma aula de um dia inteiro e ser aprovado numa prova escrita. Além disso, tem que assistir a aulas num estande de tiro e ser aprovado. Em seguida, terá de ir a um hospital fazer testes de capacidade mental e testes para verificar se usa drogas (no Japão, os possíveis proprietários de armas de fogo precisam provar que são mentalmente sãos), testes que serão entregues à polícia. Por fim, terá de passar por uma rigorosa verificação a fim de garantir que não possui antecedente criminal e não pertence a grupos criminosos ou radicais. Somente então poderá vir a ser o orgulhoso dono de uma espingarda de caça ou ar comprimido. Além disso, tem de entregar à polícia documentação sobre o lugar específico no qual a arma será guardada em sua casa, bem como a munição, que deverão estar trancadas a chave em lugares separados. A polícia inspecionará a arma uma vez por ano, e a cada três anos o proprietário terá de voltar a frequentar as aulas e fazer novos exames.
Até o contexto básico do enfoque do Japão em relação à propriedade de armas de fogo é quase o oposto ao existente nos EUA. A legislação americana sobre armas começa com a afirmação, na Segunda Emenda, do "direito das pessoas de ter e carregar armas", e a partir daí estabelece os detalhes. A legislação japonesa começa com a lei de 1958 que determina que "ninguém possuirá arma ou armas de fogo e espada ou espadas", e depois relaciona algumas exceções. Em outras palavras, a lei americana visa a consagrar o acesso às armas, enquanto a japonesa começa com a premissa de sua proibição. A história disso é complicada, mas vale a pena notar que a legislação americana tem suas raízes na resistência às restrições impostas pelos britânicos ao porte de armas, enquanto alguma literatura acadêmica relaciona a legislação japonesa à campanha nacional para desarmar os samurais, o que talvez explique em parte o motivo pelo qual a de 1958 menciona as armas de fogo e espadas, lado a lado.
Evidentemente, Japão e EUA estão separados por inúmeras diferenças culturais e históricas. Kopel explica que, seja qual for o motivo, os japoneses tendem a ser mais tolerantes com o poder de busca e apreensão da polícia necessário para que a proibição funcione. "Os japoneses, tanto os criminosos quanto os cidadãos comuns, estão muito mais dispostos que os americanos a consentir em buscas e apreensões e a responder às perguntas da polícia", ele escreve. Mas até mesmo a polícia japonesa só começou a andar armada em 1946, quando obrigada pela autoridade de ocupação americana. Agora, a polícia japonesa recebe mais horas de treinamento do que a americana, os policiais estão proibidos de carregar armas quando não estão em serviço e dedicam horas ao estudo de artes marciais, em parte porque "devem usar armas de fogo muito raramente", segundo Kopel.
As maneiras de pensar dos japoneses e dos americanos a respeito da criminalidade, da privacidade e dos poderes da polícia são tão diferentes que é impossível isolar completamente e comparar os dois regimentos relativos ao controle de armas. Não é muito mais fácil avaliar os custos e benefícios do enfoque do Japão, que contribui para a sua taxa de crimes ser a segunda mais baixa do mundo, embora ao custo de restrições impostas por um "Estado policial", como Kopel o define. Afinal, a segunda emenda da Constituição americana visa preservar "a segurança de um Estado livre", garantindo que o governo não detenha o monopólio da força. Entretanto, vale a pena considerar outro Estado policial: a Tunísia, que tinha a menor taxa de propriedade de armas do mundo (1 por 1.000 cidadãos, em comparação com 890 para americanos) quando seu povo derrubou uma brutal ditadura que durava 24 anos, dando origem à Primavera Árabe. 
Fonte:


Por:

Max Fisher, The Atlantic


TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

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