30 de jun. de 2015

Humano, demasiado inseto

Antes do aniquilamento, a metamorfose. A aflição de Gregor Samsa, personagem de Franz Kafka em A Metamorfose, não é só a aflição do fim inevitável, mas da perda gradativa de sua humanidade - e tudo o que a palavra humanidade carrega: compaixão, dor, arrependimento, conflito, alteridade, sonho, história, memória. Subjetividade, enfim.
Clássico das aflições contemporâneas, a obra permanece incrivelmente atual por não se restringir a falar de um local, regime ou período da História. É clássico porque fala de um drama humano, e é isso o que permite suas tantas releituras ao longo do tempo. Uma dessas releituras acaba de ser publicada em quadrinhos pela editora Nemo. Uma Metamorfose Iraniana é a história de Mana Neyestani, cartunista de um semanário infantil de Teerã que, em meados de 2006, desenhou o diálogo entre um de seus personagens e uma barata. Parecia uma tirinha inocente, não fosse um detalhe: o uso, pelo inseto, de uma expressão de origem “turca”, como é chamada, no Irã, a minoria azeri. Ofendidos com a associação com uma barata, e diante do contexto político do país, militantes azeri promovem uma campanha contra a revista, contra o cartunista, contra a maioria farsi e contra o governo Ahmadinejad. O país inteiro entra em convulsão.
Na leitura, é tentadora a ideia de isolar o contexto de um Estado obscuro e repressor como o iraniano de um contexto mais, digamos, “ocidental”. Mas é ainda mais tentadora a busca por paralelos bem aqui na nossa esquina.
Diante da pressão popular, Neyestani é levado à prisão sob a acusação de promover distúrbios contra a ordem pública. Diferentemente de Josef K, outro personagem de Kafka, ele sabe do que é acusado, mas nem mesmo os acusadores do Estado Islâmico acreditam nesta acusação. Não importa. Ao se tornar pivô dos distúrbios, Neyestani já não é alguém capaz de se justificar perante a sociedade e a Justiça. É um preso político, e um preso político tem sempre uma função dupla (para não dizer múltipla). 
Há, em seu encarceramento, um peso simbólico: por meio dele o Estado se comunica com o restante da sociedade, sobretudo os que temem ser presos. A prisão serve como munição a uma narrativa segundo a qual os valores da revolução iraniana correm riscos de desintegração por causa de dissidentes e patrocinadores de dissidentes, caso dos EUA. Por isso, e para o bem de todos, devem ser retirados de circulação. Mas o preso político serve também como moeda de troca. A tortura física e psicológica da prisão cria um campo de tensões e coerções valiosas por meio da qual é possível negociar informações e delações em troca de amenidades.
É um ciclo de impotências. Ao Estado, quanto mais manifestações violentas de uma minoria ofendida, mais oportunidade se cria para eliminar, como baratas, uma parte da população cansada de ser tratada como barata. Os tiros contra os vândalos da ocasião apenas aceleram o processo de dedetização.
No meio do conflito, Neyestani não se reconhece nem com o oprimido nem com o opressor, mas vê-se tolhido de qualquer ação ou resposta ao ser injetado para o centro de uma máquina de transformar gente em bicho – não qualquer bicho, apenas os que estraçalhamos, sem culpa, com nossos chinelos. Na prisão, a desarticulação das redes de justiça, diálogo e solidariedade não permite que o acusado peça desculpas, se explique, recorra ao seu histórico ou se arrependa. Isso é para humanos. Quando deixamos de reconhecer qualquer ser vivo como “humano”, tudo contra ele passa a ser permitido. Inclusive o aniquilamento.
Ao recontar a sua história em quadrinhos, é possível que o cartunista tenha se esforçado para obter, pelo olhar do leitor, o reconhecimento de um sofrimento que ateste a sua humanidade. Esse reconhecimento é a compaixão. Pobres iranianos, podemos concluir ao fim da leitura, talvez inconscientes das chineladas distribuídas diariamente contra quem, além do selo, não conferimos qualquer humanidade.
Há algumas semanas, uma atriz transexual chocou o país ao se crucificar, a exemplo de Cristo, em uma passeata gay. O choque diante da “ofensa” não fez eco quando, na vida fora daquela performance, outros travestis morreram violentamente desde então. A atriz - assim como as vitimas de aniquilamentos urbanos diários, algumas inclusive com transmissão ao vivo - causou choque e incomodo por lembrar que não é uma barata. E se não somos capazes de franzir a sobrancelha quando são mortos ou agredidos, é porque uma grande metamorfose está em curso. Ela termina na bala, mas começa no púlpito, no plenário e nas mensagens de alerta e salvação.
Por
Matheus Pichonelli

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