5 de mar. de 2015

O palhaço que não amava as mulheres

No ônibus de Vinhedo para a Unicamp, o palhaço entrou pela porta dos fundos e começou a discorrer sobre os benefícios e o princípio-ativo da alegria.
-O homem que sorri está sempre leve e disposto a aprender. O homem sério está brigando o tempo todo, até com os pais.
Simpático, com a calça esgarçada, a peruca mal colocada e a maquiagem já derretendo àquela hora do dia, ele intercalava gracinhas sobre as roupas dos passageiros com mensagens motivacionais.
-Ali à esquerda tem um asilo, e os velhinhos precisam da ajuda de vocês. Sabe do que eles gostam? De sabonete.
Até ali ok, pensei comigo. A abordagem era deselegante, mas um pouco de culpa numa manhã de quarta-feira não faria mal a ninguém. Em instantes, ele avisava que o assunto ali era sério. Que era voluntário dos hospitais da região e precisava de ajuda para o seu projeto. Ajudar ou não ia da consciência de cada um.
Como a conversa não parecia sensibilizar os bolsos dos passageiros, ele logo sacou a Bíblia e começou a falar em nome de Deus - justo Deus, que tinha tanto a fazer no mundo naquela manhã.
Nessas horas, manifestamos uma espécie de preconceito às avessas: o sujeito de fala simples, roupa desgrenhada e que relatava as dificuldades da vida circense estava convicto de que fazia a coisa certa e não poderia fazer nada a não ser nos amolar. O cara era gente boa. Que mal ele faria? Deselegante seria pedir silencio - justo pra ele, um soldado do riso e da esperança de crianças enfermas. Ele, então, seguiu. E o que seguiu adiante é o que acontece quando tentamos imaginar o julgamento dos deuses, e dos autores dos livros sagrados, sobre nossos hábitos contemporâneos: um arremedo entre a desinformação e o moralismo.
Entre outras coisas, o palhaço disse que as famílias estão sendo destruídas pela novela, que o marido perdeu a atenção em casa para a TV, que depois ninguém entende por que ele fica violento, que a Lei Maria da Penha o prejudica e o faz voltar pra casa ainda mais agressivo, que hoje em dia as meninas estão engravidando cada vez mais cedo e estão lotando os hospitais com câncer de mama porque estragam os peitos com silicone e os peitos foram feitos para amamentar, não para ficarem empinados.
Aquela tentativa desastrosa de levar a palavra do Senhor com alegria era a caricatura perfeita do senso comum. Por esse raciocínio, que tantas vezes ouvimos e calamos nos ambientes privados, as mulheres sofrem as dores do mundo desde Eva; a malícia de toda mulher é sempre o pecado original. Ela seduz e engravida por geração espontânea, e isso é sempre uma desonra para quem seduz, nunca para os (supostos) seduzidos.
Na fala do palhaço-cidadão, o câncer era uma questão moral alimentada pela vaidade (delas, claro) e a agressão, a surra, o revide e o assedio eram medidas corretivas compreensíveis - pois a culpa não é jamais do agressor, mas da TV e dos descasos produzidos por quem se deixa seduzir pela TV.
Não sei por qual igreja ele comungava, mas lembrei que os religiosos que falam sobre a desonra da gravidez indesejável são os mesmos que criam demônios - a TV, as drogas, as tentações do corpo - e boicotam os métodos contraceptivos, a educação sexual e o direito à decisão sobre o próprio corpo.
-É verdade ou estou mentindo?, perguntava o palhaço, entre a galhofa e a melancolia.
Alguns riam, muitos concordavam, outros só ficavam constrangidos em dizer não. Aquela viagem em um ônibus público acabava de se transformar num culto, e aquilo não tinha graça nem era inocente.
A certa altura ele disse que a Xuxa não gostava de criança, gostava de dinheiro, e que se gostasse de criança teria engravidado do Pelé ou do Senna. E que nós, brasileiros, tínhamos culpa pelo descalabro do país: tivemos a chance de colocar um homem na Presidência, mas preferimos manter uma mulher.
Quando estava bem claro que o problema do palhaço eram as mulheres, e não a Petrobras, a qualidade dos programas infantis ou do que quer que fosse, calculava comigo mesmo se valia a pena pedir a palavra ou não. Estava pronto para chegar ao trabalho e escrever algo a respeito - mas, como ele, eu também estaria pregando a convertidos. Além do mais, dizer o quê? Pra quê?
Desde os tempos do Centro Acadêmico ouço do meu amigo Maurício Savarese que preciso perder o medo do conflito - não o que a gente expõe em nossas redes e zonas de conforto, mas o que a gente provoca quando rebate, na lata, um absurdo. Eu estava diante de um grande absurdo, e tinha medo de chutar e espalhar a asneira por todo o ventilador. E tinha medo de fazer papelão em público.
Nessas horas, longe do cuidado ao escolher palavra por palavra daquilo que a gente escreve, o risco é me tornar a personagem da Clarice Lispector em Perto do Coração Selvagem: quando digo não só não consigo dizer o que penso como o que penso passa a ser o que eu digo. No cálculo, opto pelo silêncio - e no silêncio me recolho tentando reconstituir, pelo resto do dia, o episódio e tudo o que poderia ter dito e não disse.
Então eu disse.
-Tem alguma mulher no mundo que o senhor não despreza, amigo? A Xuxa, a Dilma, as meninas que engravidam, as que não engravidam. Quem mais?
Engasgando para não falar para dentro, disse que o sujeito ofendia a todos ali que têm ou tiveram casos de câncer ou violência nas famílias. E que o que ele dizia tinha nome: misoginia. E que em nome dessa misoginia ele falava um monte de bobagens que constrangem, desinformam e perpetuam um velho crime. E que se as pessoas ainda morrem vítimas de violência sexual ou violência doméstica não era por causa da TV ou de uma lei feita para protegê-las, mas porque os homens são violentos, e são violentos muitas vezes porque cansaram de ouvir aquele tipo de discurso: o que joga a culpa nos demônios que moram fora, e não dentro deles, sujeitos passivos e incapazes de conter os impulsos provocados pelas saias das mulheres nas ruas e nas novelas. Nada saiu como transcrevo nem como eu gostaria, mas se fosse recapitular o raciocínio não seria muito diferente disso.
Em silêncio o ônibus estava e em silêncio o ônibus seguiu, até que uma senhora se manifestou:
-Afinal, o senhor é palhaço ou é médico?
Só agora consigo ver graça naquela pergunta. Na hora apenas corei. O palhaço, sem graça, me fazia me sentir culpado. Lembrei de sua primeira frase ao entrar, sobre as alegrias. Eu era o sujeito sisudo, fechado e incapaz de sorrir. Que grande chato me tornei.
O olhar que ele me dirigiu era sério, e pouco pude dizer quando ele começou a descrever a dignidade de seu trabalho como palhaço, me mostrou fotos com algumas autoridades locais (todos homens, diga-se), e disse que eu deveria me solidarizar com as crianças, que elas estavam perdidas no mundo, que os doentes precisavam de alegria…
-Respeito o seu trabalho, mas isso não tira a gravidade do que o senhor está dizendo aqui em público para um ônibus lotado.
-Estou só falando a verdade para as pessoas.
-Não, o senhor está falando o que acha ser verdade. O que senhor está falando é bobagem. Câncer de mama não é uma questão moral e não tem a ver com falta de amamentação, e o senhor deveria saber disso.
-Eu só digo o que vejo. E sou livre para dizer o que penso.
-E eu sou livre para não ouvir, mas o senhor não me deu essa opção quando entrou aqui e começou a pregar.
Foi então que ele me desejou felicidades (na verdade ele me amaldiçoava) e desceu. A senhora que o questionara se aproximou e perguntou se eu estava bem, e eu não estava. Não estava porque tinha a sensação de ter chutado cachorro morto.
Em casa, ainda remoendo a necessidade daquilo tudo (e dessa crônica, por fim), ouvi a Camila dizer, com toda razão: falta muito para as pessoas começarem a defender em público o extermínio de mulheres, gays, negros, imigrantes. Falta quase nada. Rir ou caçoar de quem tem a ideia torta não elimina a ideia. Concluí então que o conforto do nosso desprezo, que antes nos paralisa, é o que encurta a distância entre o palhaço da história - o tal cachorro morto - e a tribuna do Congresso. Sim, isso é um convite: rebatam. Em casa, no ônibus, na escola, na vizinhança, na igreja. É isso o que nos fará compreender e conter, pelo constrangimento, sorrisos tão abertos como os de Alexandre Frota e seus asseclas quando manifestam, sem culpa, seus desprezos e suas violências contra quem não tem o menor motivo para sorrir.
Por:
ttps://br.noticias.yahoo.com/blogs/matheus-pichonelli/o-palhaco-que-nao-amava-as-mulheres-005156158.html#

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