13 de out. de 2014

Em que mundo você vive?

Mais do que o resultado da eleição, chama a atenção, nestes dias seguintes à abertura das urnas, o raciocínio rabiscado por parte dos eleitores para justificar a decisão do voto.
São muitos os que se dizem insatisfeitos com o rumo do mundo. E que atribuem aos políticos de diferentes matizes, sobretudo vermelhos, a culpa pelo estado das coisas: da ignorância da nação, pela qual constroem suas edificações maléficas, ao entrave aos nossos sucessos particulares. “Eu não tenho casa na praia ou carro do ano, mas só porque, em algum gabinete de Brasília, alguém decidiu pegar o que era meu por direito e investir naquele povinho que nunca estudou, nunca quis trabalhar e não tem outra ambição na vida a não ser botar filho no mundo e pendurar a conta nas costas do Estado.”
Pode parecer incrível, mas é mais ou menos isso o que se ouve nas rodas de conversa em tempos de eleição acirrada como tem sido esta. Uns indignados até têm carro do ano e casa na praia. Outros acabam de voltar do exterior. Ainda assim, quando perguntados sobre o que, exatamente, é tão degradante no País que o maltrata, as respostas beiram o realismo fantástico.
Uma amiga, professora de escola de ponta, contava, tempos atrás, como os alunos já assimilavam precocemente o discurso de "classe alta sofre" em sala de aula. Eles pareciam reproduzir o que os pais liam, e repetiam, em revistas semanais de gosto duvidoso: eles trabalhavam e levavam este país nas costas, pagavam impostos suecos e recebiam serviços africanos (a conotação da frase vale um comentário à parte), a roubalheira imperava, todo político é igual etc. etc. Curiosa, ela perguntou a um deles o que ele achava que poderia ser melhor no País. A resposta: as filas. Segundo o jovem, em Paris não havia tanta fila para compras, sobretudo no freeshop do aeroporto. Já aqui, não andava, e isso era motivo suficiente para considerar o País onde vivia um grande e abjeto lixo, num raciocínio muito parecido com os comentaristas de portal que se voltam contra Pedro Álvares Cabral toda vez que viajam até Miami para poder comprar produto eletrônico – e, se possível, ser reconhecido pelos pares que os leem.
Em rodas de conversa, é possível ouvir quem se queixe também dos muitos carros nas mãos de qualquer um nas ruas. A queixa não se deve ao impacto ambiental da frota, mas ao fato de não ter mais vaga ou valet para estacionar os automóveis nos restaurantes cativos. Há também os que se esperneiam contra as benesses distribuídas a torto pelo Estado, sobretudo a essa gentinha que só estuda pelo sistema de cotas ou financiamento camarada, e se esquecem de que só cursaram faculdades graças ao Bolsa Pai ou à pensão vitalícia do avô. Ou que só têm emprego garantido graças à complacência do proprietário: o sogro, o amigo, o amante...
Em via de regra, os rebeldes de ocasião estão insatisfeitos com o resultado das urnas. Revoltam-se com a decisão da maioria inútil que não se esforçou para atingir o seu grau de iluminismo. Porque quando o povo vota com ele é soberano; quando o desautoriza, é estúpido. A grita vale tanto para os que veem no Nordeste a bola de neve da ignorância e do voto de cabresto quanto aos "elitistas" incapazes de reconhecer os milagres dos governos populares. Tanto num caso quanto no outro, o desfecho do raciocínio às vezes é semelhante: "As urnas estão fraudadas porque não conheço ninguém que tenha votado naquele(a) um(a)".
A paranoia e a agressão contra as populações de outros estados são manifestações típicas de um país que se desconhece. A começar pelo uso da expressão "nordestinos". É como se, acima de Brasília, houvesse apenas uma categoria monocromática populacional, sem especificidades, recortes regionais, econômicos e culturais. (O cearense Antonio Carlos Belchior gritava contra essa ideia na músicaConheço o Meu Lugar: "Nordeste é uma ficção. Nordeste nunca houve"). Da mesma forma, só quem não conversa com o porteiro, o motorista ou o jardineiro é que imagina que o governador truculento garantiu mais quatro anos de poder graças a um suposto elitismo atávico dos paulistas.
As sentenças sobre esse “outro” imaginário são as manifestações mais claras de que vivemos em bolhas, de onde perdemos cada vez mais os pés e os contatos com a realidade. Talvez estejamos passando tempo demais em nossos carros, em nossos condomínios, em nossas escolas ou universidades gradeadas, em nossos centros de compra com ar condicionado. Desses mundinhos protegidos, emendamos petardos contra tudo aquilo que nos desmente por contraste. De lá, preocupados em nascer e morrer em paz, decretamos que o mundo é um inferno, mas não temos nada a ver com isso. O inferno são os outros.
Por
Matheus Pichonelli
Carta Capital
10/10/2014

Entenda como funciona o BOLSA FAMÍLIA

Conheça mais sobre o Bolsa Família e veja quais as respostas às perguntas mais frequentes sobre ele:

O que é o Bolsa Família?

O Programa Bolsa Família é um programa de transferência direta de renda que beneficia famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza do País. O Bolsa Família integra o Plano Brasil Sem Miséria, que tem como foco de atuação brasileiros com renda familiar per capita inferior a 70 reais mensais.

Quantas pessoas são atingidas pelo Bolsa Família?

De acordo com o governo, no mês de abril de 2014 o Bolsa Família foi pago a 14.145.274 famílias, atingido cerca de 50 milhões de pessoas.

Qual o valor que cada família recebe e como ele é calculado?

O programa oferece às famílias quatro tipos de benefícios: o Básico, o Variável, o Variável para Jovem e o para Superação da Extrema Pobreza.
O Básico, concedido às famílias em situação de extrema pobreza, é de 70 reais mensais, independentemente da composição familiar. Já o Variável, no valor de 32 reais, é concedido às famílias pobres e extremamente pobres que tenham crianças e adolescentes entre 0 e 15 anos, gestantes ou nutrizes, e pode chegar ao teto de cinco benefícios por família, ou seja 160 reais. As famílias em situação de extrema pobreza podem acumular o benefício Básico e o Variável, até o máximo de 230 reais por mês.
O benefício Variável para Jovem, de 38 reais, é concedido às famílias pobres e extremamente pobres que tenham adolescentes entre 16 e 17 anos, matriculados na escola. A família pode acumular até dois benefícios, ou seja, 76 reais.
Já o para Superação da Extrema Pobreza é concedido às famílias em situação de pobreza extrema. Cada família pode ter direito a um benefício. O valor varia em razão do cálculo realizado a partir da renda per capita da família e do benefício já recebido no programa.
As famílias em situação de extrema pobreza podem acumular o benefício Básico, o Variável e o Variável para Jovem, até o máximo de 306 reais por mês, como também podem acumular um benefício para Superação da Extrema Pobreza.

Qual o máximo que uma família já recebeu?

O benefício do Bolsa Família é variável, uma vez que é pago o valor suficiente para que uma família possua uma renda per capita mensal mínima de 70 reais (77 reais, a partir de junho de 2014).
No entanto, um dos valores mais altos pagos a uma família, de 19 membros, foi de 1.332 reais. A quantia repassada pelo Bolsa Família, no ano de 2012, teve valores combinados através do Brasil Carinhoso.

Como o governo sabe quem tem que receber o Bolsa Família?

A seleção das famílias para o Bolsa Família é feita com base nas informações registradas pelo município no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal, instrumento de coleta e gestão de dados que tem como objetivo identificar as famílias de baixa renda existentes no Brasil. Com base nesses dados, o Ministério do Desenvolvimento Social seleciona as famílias que receberão o benefício.

Quais são as regras para poder receber o benefício?

Podem receber o benefício as famílias em situação de extrema pobreza, com renda per capita de até 70 reais por mês; aquelas que são consideradas pobres, renda per capita entre 70,01 reais e 140 reais por mês; e as que são pobres ou extremamente pobres e tenham em sua composição gestantes, nutrizes, crianças ou adolescentes entre 0 e 17 anos (sendo nesses últimos casos um valor maior do que o fornecido às famílias sem crianças, adolescentes ou gestantes).
Para ser beneficiário, será preciso apresentar um documento de identificação, como o CPF, por exemplo, entrar no Cadastro Único. O cadastramento, no entanto, não significa que o recebimento será imediato. Quem seleciona as famílias que receberão o Bolsa Família é o Ministério do Desenvolvimento Social, com base na renda per capita.
As prefeituras municipais são responsáveis por cadastrar, digitar, transmitir, manter e atualizar a base de dados, acompanhar as condições do benefício e articular e promover as ações complementares destinadas ao desenvolvimento autônomo das famílias pobres do município.

Quais as contrapartidas que a família precisa dar?

Na área de saúde, as famílias devem acompanhar o cartão de vacinação e o crescimento e desenvolvimento das crianças menores de 7 anos. As mulheres na faixa de 14 a 44 anos também devem fazer o acompanhamento médico. Quando gestantes ou lactantes devem realizar o pré-natal e o acompanhamento de sua saúde e do bebê.
No que diz respeito a educação, todas as crianças e adolescentes entre 6 e 15 anos devem estar matriculados e ter frequência escolar mensal mínima de 85% da carga horária. Já os estudantes entre 16 e 17 anos devem ter frequência de, no mínimo, 75%.
Na área de assistência social, crianças e adolescentes com até 15 anos em risco ou retiradas do trabalho infantil devem participar dos Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos e obter frequência mínima de 85% da carga horária mensal.

De que maneira as contrapartidas são checadas?

Cabe ao poder público fazer o acompanhamento gerencial para identificar os motivos do não cumprimento das condicionalidades. A partir daí, são implementadas ações de acompanhamento das famílias em descumprimento, consideradas em situação de maior vulnerabilidade social.
A família que encontra dificuldades em cumprir as contrapartidas deve procurar o Centro de Referência de Assistência Social (Cras), o Centro de Referência Especializada de Assistência Social (Creas) ou a equipe de assistência social do município.
Caso não tome nenhuma dessas atitudes, corre o risco de ter o benefício bloqueado, suspenso ou até mesmo cancelado.

Dos brasileiros que recebem o Bolsa Família, qual a porcentagem de mulheres e de homens?

Entre os titulares responsáveis pelas famílias que recebem, 93% são mulheres. Do total de pessoas que são beneficiadas pelo programa, 56% são mulheres e 44% são homens.

Qual o número de brasileiros que deixaram de precisar do programa e abriram mão do benefício?

Desde o início do programa, em 2003, 1,7 milhão de famílias deixaram o programa por informarem renda per capita mensal superior aos limites estabelecidos.

Há outras iniciativas neste sentido?

O Brasil Sem Miséria lançou a Ação Brasil Carinhoso Para atender as crianças de zero a seis anos – fase crucial do desenvolvimento físico e intelectual. A Ação Brasil Carinhoso foi concebida numa perspectiva de atenção integral que também articula reforço de políticas ligadas à saúde e à educação. Por isso, envolve o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e o Ministério da Saúde e o Ministério da Educação (MEC).
Em um primeiro momento, foi criado um complemento do benefício do Bolsa Família, que garante que todos os beneficiários tenham uma renda mensal de pelo menos 70 reais, saindo da situação da extrema pobreza. Atualmente, entretanto, esse complemento foi estendido para as famílias com crianças e jovens de até 15 anos e a todas as famílias em situação de extrema pobreza.
Segundo o governo, entretanto, hoje não é mais possível considerar que o complemento do Bolsa Família para famílias em extrema pobreza seja parte do Brasil Carinhoso. Ele é nominado como complemento do Brasil Sem Miséria.

Recentemente, a presidenta Dilma Rousseff anunciou um reajuste de 10% no Bolsa Família. Como ele será feito?

De acordo com o Decreto nº 8.232, de 30 de abril de 2014, esse aumento terá efeitos a partir de 1º junho de 2014. Assim, o programa passará a atender famílias que tenham renda mensal por pessoa de até 77 reais (extrema pobreza) e famílias com renda per capita entre 77,01 reais e 154 reais (pobreza), desde que, nesse caso, haja crianças, adolescentes, gestantes ou nutrizes.
Assim, os valores mensais pagos às famílias também terão aumento. Enquanto o benefício Básico passa a ser de 77 reais, o Variável aumentará para 35 reais e o Variável Jovem passa a ser 42 reais. Já o para Superação da Extrema Pobreza terá aumento caso a caso, pois deverá ser concedido para famílias que, mesmo após receber os demais benefícios do Bolsa Família permaneçam com renda por pessoa de até 77 reais.

O que garante o Bolsa Família? Uma lei?

O Bolsa Família foi criado por meio da Lei nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004. Sua regulamentação se deu por meio do Decreto nº 5.209, de 17/09/2004.

Como o programa poderia vir a se tornar um direito constitucional?

Criado para atender aos direitos sociais expressos no artigo 6º da Constituição (a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados), o Bolsa Família não é um direito constitucional. No entanto, projeto de lei do pré-candidato à Presidência pelo PSDB, Aécio Neves, prevê que o programa seja incorporado à Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) com objetivo de assegurar o benefício como política pública. Já o presidenciável pelo PSB, Eduardo Campos, prometeu incluir mais famílias no benefício do governo federal.
Há estudiosos do programa que defendem que se o benefício se tornar um direito constitucionalizado deixará de ser uma política pública de governo – ou atrelada a um partido – para se tornar de Estado.

Fontes: 
MDS e Caixa Econômica Federal

A nova família

O álbum de família moderno requer legendas cada vez mais encorpadas para explicar quem é quem. O retrato atual não reflete mais o modelo clássico, composto de pai, mãe e filhos de um mesmo casamento. Aquele que parece ser o pai é o padrasto; a moça com uma criança no colo não é a mãe, mas uma meia-irmã; os três jovens que dividem o mesmo teto são um casal e uma amiga; e aquela que parecia ser a mãe pode ser na verdade a namorada dela.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) acaba de divulgar uma nova análise dos dados do último censo. Ela confirma a mudança, na prática, do conceito de família: atualmente, 47% dos domicílios organizam-se de formas nas quais no mínimo um dos pais está ausente. Há gente morando sozinha, avós ou tios criando netos, casais sem filhos, ''produções independentes'' e outras tantas alternativas. Algumas são tipicamente modernas, como os grupos de amigos que decidem morar juntos para dividir um apartamento grande, no estilo do seriado americano Friends - e não se trata, no caso, de estudantes de orçamento apertado, mas de adultos com trabalho fixo e contracheque. Outras situações, de temporárias, acabam virando definitivas - como o homem que se separa da mulher e volta a morar com os pais, ''apenas por alguns dias''. ''Embora o modelo nuclear ainda seja maioria, cresce a incidência de novos arranjos'', atesta Ana Lúcia Sabóia, chefe da Divisão de Indicadores Sociais do IBGE.
Na última década, o número de famílias - de qualquer espécie - cresceu duas vezes mais que a população como um todo, embora o número de divórcios tenha triplicado e o de casamentos de papel passado diminuído 12%. Essa aparente contradição sugere que há cada vez mais gente formando famílias a partir de novas bases.Há um desmembramento do que antes era uma única unidade familiar e também mais gente optando por formatos menos tradicionais. Especialistas no assunto explicam que, longe de andar em baixa, a instituição familiar está se adaptando aos novos tempos, assumindo um perfil mais centrado na qualidade das relações entre as pessoas e no desejo de cada indivíduo.
A hierarquia, a obediência e o formalismo que caracterizavam a família no passado deram lugar a uma relativa igualdade e respeito entre todos os integrantes. Mulher e filhos conquistaram espaço e direito a voz, que antes eram exclusivos dos homens. Estes, por sua vez, sentem-se menos obrigados a exercer o pesado papel do provedor. Tanto que, no Novo Código Civil, a expressão pátrio poder foi substituída por poder familiar, que pode ser exercido por ambos os sexos. 

Mais do que pelos laços de sangue ou pela obrigação, as uniões agora são definidas pelo afeto. ''Até a metade do século passado, a relação consanguínea era extremamente forte na constituição da família. Hoje as relações amorosas passaram a ser o valor mais importante'', explica a antropóloga Lia Zanotta Machado, do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher da Universidade de Brasília (UnB). As famílias antes se organizavam muito em torno do trabalho e do patrimônio: os mais pobres, por exemplo, se casavam e tinham filhos que ajudavam na lavoura, enquanto os mais abastados arranjavam uniões que somassem riqueza. Esse novo formato, somado às contingências econômicas de hoje, transformou a família em um refúgio mais atraente do que nunca, a ponto de os filhos permanecerem muito mais tempo na casa dos pais e, em alguns casos, até voltarem para lá depois de uma separação ou um revés financeiro. ''Atualmente, um quarto dos lares brasileiros reúne três gerações, geralmente sustentadas pelos parentes mais velhos'', afirma Ana Amélia Camarano, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Entram nessa conta desde grupos de baixa renda dependentes da aposentadoria de um idoso até núcleos de classe média alta nos quais os pais bancam filhos que não alcançaram a independência. Aparentemente insignificante, esse dado tem força para mexer nas estruturas: o ciclo familiar se expande, empurrando adiante a fronteira da terceira idade, já que os pais ficam ativos afetiva e financeiramente por mais anos.



O PERFIL DA FAMÍLIA
Evolução da constituição familiar na última década - em %
1992
Outros tipos
UnipessoalCasal sem filhosMulheres sem cônjuge com filhosCasal com filhos
5,2
7,312,915,159,4
1999
Outros tipos
UnipessoalCasal sem filhosMulheres sem cônjuge com filhosCasal com filhos
5,8
8,613,617,155,0
2001
Outros tipos
UnipessoalCasal sem filhosMulheres sem cônjuge com filhosCasal com filhos
5,9
9,213,817,853,3
Fonte: IBGE
#Q: A nova família - Continuação:#
A urbanização e as novas relações de trabalho - entre elas a entrada da mulher no mercado - vieram preparar o terreno para um desenho diferente. Segundo Lia, da UnB, os vínculos afetivos passaram a prevalecer sobre o compromisso de manter o núcleo doméstico unido a qualquer preço. É a vitória do desejo sobre a obrigação. O casal Cliff e Patrícia Li, ambos de 40 anos, é um exemplo disso. Resolveu dizer não à função mais tradicional da família, a procriação, para poder curtir melhor a vida. ''Por muito tempo, vivi em função do meu trabalho e os planos de um dia ser mãe foram esquecidos'', conta a banqueteira Patrícia. Li é ainda mais individualista. ''Decidimos que seria melhor investir todo o nosso tempo livre e dinheiro em nós mesmos'', explica o empresário. A única concessão que fizeram foi criar um gato e uma cadela.
Dois fatores recentes precipitaram toda essa transformação. O primeiro foi a adoção do divórcio, que no Brasil virou lei em 1977. Ele legitimou a possibilidade de as pessoas reconstruírem a vida segundo o próprio desejo quantas vezes quiserem, e não mais uma única, até que a morte as separe. O casamento perdeu o caráter sagrado e irrevogável. ''Casar novamente se tornou algo comum e abriu espaço para outras combinações familiares'', afirma Maria Rita D'Ângelo Seixas, coordenadora do curso de terapia familiar da Universidade Federal de São Paulo.''Antes a família era indissolúvel. Hoje, se os sentimentos individuais não são satisfeitos, as pessoas rompem o estatuto da família e vão viver de outras maneiras'', analisa a antropóloga Lia. Segundo ela, o cenário atual valoriza também a preservação da intimidade. ''As pessoas só convivem com quem querem.'' A própria noção de parentesco está sendo revista. Uma pesquisa do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), feita com adolescentes de famílias de ''recasados'', detectou que após quatro anos eles passavam a considerar como família as pessoas com quem viviam sob o mesmo teto - seus meios-irmãos, padrastos e madrastas. ''Isso demanda maior habilidade de convivência, capacidade de negociar e de ceder espaço, o que não era tão necessário na organização familiarclássica'', diz Adriana Wagner, pesquisadora da PUC-RS.
A segunda alavanca para a mudança foi o surgimento da pílula anticoncepcional, que garantiu às mulheres a alternativa de uma vida sexual desvinculada da maternidade. Bem mais recentemente, a batalha dos homossexuais pelo direito de se unir formalmente consolidou a noção de que a família pode se constituir em torno de um projeto de vida comum. Impossibilitados, em princípio, de ter filhos, os gays justificam a vontade de casar pelo simples fato de se amar ou desejar estar juntos.
Mesmo as restrições à paternidade dos homossexuais começam a ser revistas. Eles estão trazendo para a cena moderna mais um modelo de família, a homoparental, graças à adoção e à fertilização in vitro. Esta última também tem sido a opção de mulheres maduras que, não tendo encontrado um companheiro, decidem concretizar a maternidade no balcão de uma clínica de reprodução, estabelecendo lares em que a figura do pai se resume a uma proveta com sêmen.
''Não é só a cara da família que está mudando, mas os papéis representados dentro dela'', observa a psicóloga Cláudia Marra, do Instituto Kaplan, de Estudos da Sexualidade Humana, em São Paulo. As tarefas há muito deixaram de ser exclusivas de um ou do outro sexo, principalmente depois que se tornou mais comum a guarda compartilhada dos filhos após o divórcio. Hoje, homens vão à reunião de mães na escola e dão os primeiros esclarecimentos sobre sexo às filhas, por exemplo. Para os especialistas, ainda é cedo para medir as conseqüências dessa reviravolta nos arquétipos de pai e mãe. Por enquanto, a experiência mostra que, na ausência de uma das figuras, os filhos buscam referência em outros ambientes, como a escola ou a família expandida. 


A FAMÍLIA E A LEI
O Novo Código Civil assimilou uma série
de mudanças da sociedade
 Família 
Definição abrange as unidades formadas por casamento, união estável ou comunidade de qualquer genitor e descendente. No Código de 1916, ''família legítima'' era definida apenas pelo casamento oficial
 Casamento
Passou a ser a ''comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges''. É apenas uma das formas para constituir família. O novo texto reconhece ainda a união estável
 Filhos
Filhos adotados e concebidos fora do casamento têm direitos idênticos aos dos nascidos dentro do matrimônio. Eliminou-se a pejorativa distinção entre ''legítimos'' e ''ilegítimos'' para designar os descendentes
 Igualdade dos sexos
A palavra ''pessoa'' substitui ''homem''. O ''pátrio poder'', que o pai exercia sobre os filhos, passa a ser ''poder familiar'' e é atribuído também à mãe. A família é dirigida pelo casal, e não mais apenas pelo homem
 Guarda dos filhos
A Lei do Divórcio, de 1977, atribuía a guarda dos filhos ao cônjuge que não tivesse provocado a separação ou, não havendo acordo, à mãe. Hoje, é concedida a ''quem revelar melhores condições para exercê-la''
#Q: A nova família - Continuação:#
Se faltam paradigmas em alguns casos, em outros eles são abundantes. Figuras como a da madrasta e a do padrasto estão sendo reabilitadas e não raro concorrem com a do pai e da mãe biológicos. ''Quando eu era adolescente, a mulher do meu pai era uma péssima madrasta porque não tinha recursos para lidar comigo. Hoje a situação se tornou tão comum que as pessoas têm melhores condições de encarar esse papel'', relata a professora Roberta Palermo, de 34 anos. Na passagem para a vida adulta, Roberta viu-se do outro lado do balcão: casou com um homem divorciado e pai de dois filhos. A experiência rendeu-lhe a publicação do livro Madrasta - Quando o Homem da Sua Vida já Tem Filhos e a criação da Associação das Madrastas e Enteadas (AME). Ela abriu um fórum de discussão on-line, o www.madrasta. hpg.ig.com.br, em que cerca de 400 madrastas compartilham o drama do ciúme incontrolável dos enteados - considerado o maior desafio -, da dificuldade de estabelecer espaços no relacionamento com o marido e da tentação de competir com a ex dele. ''A sociedade aceita melhor essas novas situações, mas, para quem está dentro delas, os conflitos são tão difíceis quanto eram antigamente'', reforça Roberta.

O momento atual ainda é de transição e os indivíduos estão experimentando situações para as quais não existem referências de como agir, o que dizer ou o que esperar. A pesquisadora Adriana exemplifica o desconforto relatando o episódio de dois irmãos de convivência, um rapaz e uma moça, que se apaixonaram e deixaram os pais sem saber o que fazer. ''Parecia incesto, porque moravam na mesma casa e eram tratados como irmãos, mas, na realidade, não havia impedimento nenhum para que se amassem.''
As pessoas ainda não estão 100% à vontade em seus novos papéis. ''Tendem a reproduzir o modelo clássico de família como se nada houvesse mudado, por isso há tantos conflitos'', afirma Adriana Wagner, da PUC-RS. Em seu livro Família em Cena, Adriana apresenta uma pesquisa realizada em 1996 com 400 adolescentes de classe média de Porto Alegre. Do total, 53% viviam em famílias ''recasadas''. Em 1999, eram 71%. Ou seja: não dá para fechar os olhos e viver como antes. Um dos equívocos recorrentes é transferir para a família reconstruída o mito do amor materno e incondicional, próprio do modelo tradicional. ''As pessoas se vinculam afetivamente a seus novos parceiros, não aos enteados. É preciso que todos se respeitem, mas ninguém é obrigado a amar como se tivesse laços de sangue.''

Em algumas esferas, ao menos, a sociedade já está sendo obrigada a reorganizar regras básicas para amparar a nova ordem familiar. Depois de anos de debate, em janeiro de 2003 começou a vigorar o Novo Código Civil, que incorporou uma série de novidades. Disposições conservadoras sobre casamento, concubinato e filiação, datadas de 1916, foram revistas para adequar a lei à realidade atual. ''O novo texto reconhece a reviravolta nos usos e costumes vividos até então por nós, nossos pais e avós'', explica o advogado Luiz Kigner, especialista em Direito da Família. Afinal, há muito tempo não se fazem mais tantas famílias como antigamente.
As estruturas sociais também continuam praticamente as mesmas de 100 anos atrás. Boa parte da atual geração de crianças já vivencia novos modelos familiares - no mínimo, são filhas de pais separados -, mas as escolas ainda funcionam como se a tradição imperasse. O que sente, então, uma criança filha de mãe solteira ou de um casal homossexual no que antes era uma simples festinha de Dia das Mães ou dos Pais? Alguns colégios mais atentos, como a Escola da Vila ou o Carlitos, em São Paulo, adotaram uma solução radical: aboliram as comemorações. ''As escolas impõem com essas festividades um modelo único, mas as famílias não são todas iguais'', afirma Manuela de Castro Anabuki, diretora-geral do Carlitos. Iniciativas de refletir sobre o assunto, porém, ainda são isoladas.
#Q:As duas casas da família Brum:#


1- Pedro Henrique, 21 anos Filho do primeiro casamento de Roberto Brum e irmão de Juliana. Amigo de infância de Rafael
 2 - Lucineide Brum, 47 Mãe de Ana Claudia, de 22, Rafael, de 20, e Maria Victoria, de 7. ''Adotou'' Juliana e Pedro Henrique
 3- Rafael, 20 Filho do primeiro casamento de Lucineide. Estudou durante anos com Pedro Henrique
 4 - Ana Claudia, 22 Filha de Lucineide, irmã de Rafael e Maria Victoria. Colega de Juliana. Seus pais as buscavam nas mesmas festas
 5 - Roberto Brum, 60 É pai de Juliana, de 23, e Pedro Henrique, de 21. E padrasto de Ana Claudia, Rafael e Maria Victoria
 6- Juliana, 23 Filha de Roberto e irmã de Pedro Henrique. Freqüentou o mesmo curso de teatro de Ana Claudia, antes de se tornarem irmãs. Estranhou a mudança, mas se adaptou
 7- Maria Victoria Tem 7 anos. É filha do primeiro casamento de Lucineide
Um segundo casamento não estava nos planos do engenheiro Roberto Brum, de 60 anos, e da comerciante Lucineide Brum, de 47. Viúvo e pai de Juliana, de 23, e Pedro Henrique, de 21, Brum só queria ter tempo para ajudá-los a superar a perda da mãe. Lucineide e os filhos, Ana Claudia, de 22, Rafael, de 20, e Maria Victoria, de 7, por sua vez, recuperavam-se de um divórcio acompanhado de falência financeira. ''Achava muito difícil encontrar alguém que assumisse meus três filhos'', lembra ela. O destino acabou colocando uma família no caminho da outra e o casal decidiu juntar as escovas de dentes - suas e as dos cinco filhos.
Eles sempre viveram no mesmo bairro, Alphaville, condomínio de luxo nos arredores de São Paulo. Pedro Henrique e Rafael eram amigos de infância e estudaram juntos. Juliana e Ana Claudia foram colegas no curso de teatro. Os pais as levavam e buscavam das mesmas festas e, num desses vaivéns, entabularam namoro. Trocaram alianças sete meses depois, mas, por temer o estranhamento da prole, fecharam um acordo moderno: cada qual continuaria em sua casa. ''Não queríamos mudar bruscamente a rotina de nossos filhos'', explica Lucineide. Durante um ano, a vida do casal era dormir cada dia num endereço, almoçar numa casa, jantar na outra. Até que Pedro Henrique tomou a iniciativa de procurar um teto comum, com seis quartos, para não dar briga. No início, Juliana estranhou a perda do controle da casa para a madrasta. Aos poucos, essa e outras dificuldades foram negociadas e hoje a família vive bem. ''Sinto como se todos os filhos tivessem saído de mim'', diz Lucineide.
#Q: Os dois desafios do empresário Kim:#
DOIS DESAFIOS
Além do filho criado em parceria com a ex, empresário
descobre filha concebida na adolescência

Desde os 11 meses de idade, Kim Caetano Camelo, hoje com 11 anos, tem dois endereços. Seus pais são separados e resolveram amigavelmente que ele ficaria metade do tempo na casa de um, metade na de outro. O resultado são quatro dias da semana no apartamento da mãe, em Higienópolis, Zona Oeste de São Paulo, e três dias na casa do pai, em Indianópolis, Zona Sul. ''Tenho amigos dos dois lados da cidade'', brinca o garoto.
Seu pai, o empresário Ronaldo Camelo, considera a opção pela guarda compartilhada ideal, porque lhe dá a oportunidade de conviver mais com o filho. ''Aqui ele tem quarto, computador, roupas, tudo. Até uma bateria, que ele não pode tocar no apartamento da mãe. E passa comigo todas as férias escolares'', diz Camelo. Embora Kim tenha tudo em dobro, sempre sente falta de alguma coisa que esqueceu na outra casa. ''Quando ele era pequeno, as freiras da escola me chamaram para conversar, pois achavam a situação estranha. Hoje, meu filho é um dos garotos mais populares do colégio'', diz o pai.
Ronaldo agora tem outro desafio pela frente. Recentemente recebeu uma intimação judicial para reconhecer a paternidade de Ranira, uma moça de 18 anos que ele nem sabia que existia - e que é apenas dois anos mais jovem que sua atual namorada. A mãe de Ranira é uma ex de Camelo que nunca lhe contou que havia engravidado.
Para Ronaldo, o desafio é se aproximar cada vez mais da nova filha adulta que acabou de ganhar. ''Infelizmente, não tenho com ela a mesma intimidade que tenho com Kim, até porque moramos em casas separadas e não acompanhei seu crescimento. Mas, com o tempo, estou certo de que ficaremos mais próximos.''
#Q: A família de amigos:#
ESTILO FRIENDS
Sem sexo livre ou drogas, mas com rock'n'roll,
amigos dividem casa

Não há sexo livre ou drogas e mesmo o rock'n roll é moderado. Mas o apartamento de Mariana Gauche Motta, de 26 anos, em Santos, no litoral paulista, tem um quê de comunidade hippie dos anos 70. Ela divide o teto com o namorado, Rodrigo Rubido Alonso, de 28, e uma amiga do casal, Natasha Mendes Gabriel, de 28. Os três optaram por morar juntos pela afinidade e por causa dos projetos em comum - todos são arquitetos.
Eles se conheceram na faculdade de arquitetura e logo descobriram que tinham tudo a ver. Com os colegas Edgard Gouveia Júnior, de 38, e José Alexandre Esteves, de 32, começaram a trabalhar em projetos sociais comunitários e criaram uma ONG. A sintonia do grupo era tamanha que Mariana, Rodrigo e Natasha decidiram dividir um apartamento. Um dos cômodos virou a sede da ONG e base do escritório dos cinco amigos. Os dois ''agregados'', aliás, tornaram-se hóspedes freqüentes do quarto de empregada, depois que Rodrigo foi promovido de lá para o quarto de Mariana.
''Morar e trabalhar com amigos é uma oportunidade de testar sua flexibilidade, de ver até que ponto você é capaz de ceder. É um ótimo exercício para equilibrar o individual e o coletivo'', avalia Natasha. ''Vivemos como uma família que escolheu morar junto e dividir o mesmo espaço'', completa Mariana, que passou infância e adolescência alternadamente na casa do pai e da mãe separados. ''O apartamento está apertado e pretendemos mudar'', diz ela. Em boa hora, pois a tendência da família é aumentar: no ano que vem, o namorado de Natasha, que hoje vive no Paraguai, deve se juntar ao trio, de mala e cuia.
#Q: A volta para a casa dos pais:#
DE VOLTA PARA CASA
O colo dos pais foi o consolo depois da separação

A vizinhança diga o que quiser, mas o dentista Reginaldo Castro Pacheco, de 39 anos, não teve o menor constrangimento de pedir colo na casa dos pais ao se divorciar. Depois de sete anos de união, em 1997 seu casamento chegou ao fim e ele não teve dúvida: fez as malas e voltou para seu velho quarto dos tempos de solteiro. ''É verdade que tive de fazer adaptações, pois ele havia sido transformado em escritório'', observa. No início, diz que se sentiu muito mais acolhido do que se estivesse num apartamento, sozinho. ''Minha mãe sempre me espera com o jantar pronto, prepara as coisas que gosto de comer. Quem não quer ser paparicado?''
O conforto tem lá seu preço. O ritmo na casa era bem diferente do dele. ''Meu pai me cobrava horário para chegar em casa, achava um absurdo quando eu resolvia sair durante a semana, porque no dia seguinte tinha de trabalhar, e não deixava que eu levasse namorada para dormir comigo - elas sempre dormiam no sofá.'' Pacheco resolveu aceitar as regras. ''Fiz vista grossa às cobranças e, com calma, fui mostrando que já era adulto, trabalhador e responsável.''
Agora Reginaldo quer ter o próprio espaço. No ano que vem, seu apartamento ficará pronto e ele pretende se mudar. Mas não abre mão de levar a mãe junto. ''Meu pai faleceu no início do ano e gostaria de tê-la perto de mim. Estou negociando com ela'', diz, em tom de brincadeira
#Q: Faltam referências para se lidar com as novas situações:#
PARA DRIBLAR OS CONFLITOS
As novas situações não são boas ou ruins, mas faltam
referências sobre como lidar com elas


A americana Vicki Lansky é autora de livros sobre como educar os filhos. O último,Conversando sobre o Divórcio - Reduzindo os Efeitos Negativos e Preparando os Filhos para a Separação, acaba de ser lançado no Brasil pela M.Books. A pedido de ÉPOCA,Vicki elaborou um miniguia com recomendações para encarar as novas configurações da família moderna.
 Conflitos familiares pesam sempre mais sobre os filhos, seja qual for o formato da família. Um pai ou mãe confortável com suas escolhas tem melhores condições de gerenciar a situação, não importa quem esteja - ou não - na outra ponta do relacionamento.
 Separações são difíceis e dolorosas, mas por si só não causam danos aos filhos. O modo como os pais encaram a situação é que pode ser nocivo. n A busca legítima por relações mais saudáveis não isenta os adultos de responsabilidades com as famílias que constituíram. Deve haver um esforço para oferecer uma referência estável para os filhos.
 Para a guarda dos filhos em casas separadas dar certo, é importante que os pais: 1) não usem a hora de ''trocar'' as crianças com o ex-cônjuge para falar de dinheiro ou problemas, e sim de questões logísticas e dos êxitos delas; 2) se comportem como parceiros na educação; 3) não usem os filhos para ''mandar recados'' nem os façam tomar partido nas brigas.
 O dilema de lealdade divide as crianças no caso de famílias separadas. É importante dar permissão aos filhos para que amem o ex-cônjuge ou ex-companheiro.
 O diálogo é fundamental sempre, em qualquer modelo de família. Os filhos precisam saber o que está acontecendo em casa e, principalmente, de que maneira são atingidos pelas escolhas dos pais.
 Planos de família são como roupas: devem ser reavaliados de tempos em tempos para verificar se ''cabem'' nas necessidades do momento.
Fonte:

Revista Época
Reportagem de Paula Pereira
23/12/2003

Por que gays incomodam tanto?

Por que os gays são rotineiramente agredidos?
Por que viraram alvo do debate político, Judas da nova era?
Por que tantos se interessam em reprimir os desejos de um e se preocupam com o que ele faz com o corpo?
Por que tantos debateram se estão certas a união, a felicidade ou o amor entre pessoas do mesmo sexo?
Em Quanto Mais Quente Melhor, de 1959, o personagem vestido de mulher de Tony Curtis  pergunta: “Por que um cara se casaria com outro?”
“Por segurança”, responde o de Jack Lemmon.
Vito Russo, cinéfilo ativista da Gay Activists Alliance, a primeira organização a defender os direitos dos homossexuais, na época em que iam presos, organizava concorridas sessões de cinema em Nova York.
Mostrava como a indústria estereotipava e driblava a censura para narrar nas entrelinhas de filmes “noir” dramas homossexuais.
No livro The Celluloid Closed, ele prova que até os anos 1930 a sociedade convivia com os homossexuais do cinema. Um filme experimental de Thomas Edison, de 1895, mostra dois homens dançando, enquanto um terceiro toca violino. Em clássicos do cinema mudo, como Algie, the Miner (1912), A Florida Enchantment (1914), The Soilers (1923), homens dançam com homens, mulheres dançam com mulheres, trocam beijos, carinhos, o homossexual é retratado bem ou mal, mas é. Para alguns, era um clichê, que denegria a classe. Para outros, a visibilidade era fundamental para a afirmação gay.
Marlene Dietrich canta de fraque e cartola no filme Morocco (1936) e é aplaudida num night club ao beijar outra mulher.
Até em Chaplin, em Behind The Screen (1916), a homossexualidade é retratada: um homem beija uma mulher vestida de homem.
No filme Call Her Savage (1932), pela primeira vez um bar gay serve de cenário.
Veio Will Hays, que tentou uma fracassada carreira política, se tornou presidente da associação de produtores e distribuidores de cinema, Motion Picture Producers and Distributors of America, e lançou o Código do Produtor, que proibia o beijo de boca aberta, nu, “obscenidades”, que ganhou força em 1934, quando a Igreja Católica e fundamentalistas protestantes organizaram boicote aos filmes que não o seguissem.
A autocensura baixou em Hollywood. O censor contratado Joseph Breen reescreveu roteiros e o personagem gays. Há 80 anos. “Pessoas decentes não querem ver esse tipo de personagem”, dizia. Se te é estranho casais apaixonados em filmes antigos se beijarem de boca fechada, é resultado do poder do conhecido Código Hays.
Cenas lésbicas passavam se elas fossem retratadas como vilãs. Homossexuais, como assassinos e psicopatas.
Todos tinham um fim trágico. Muita culpa os aterrorizava.
Personagens gays de autores teatrais gays, como Tennenssee Williams, quando adaptados para o cinema, viravam alcoólatras atormentados.
Sutilmente, roteiristas e diretores desenvolveram personagens gays sem a censura perceber. Hitchcock os exibiu em Festim Diabólico e Psicose, Nicolas Ray, em Juventude Transviada.
O diretor William Wyler convenceu o roteirista Gore Vidal que Ben Hur era um drama gay numa Roma em que ser gay era comum.
“Só eu e o diretor sabíamos que se tratava de um amor gay. Se Charlton Heston soubesse, sairia do filme”, contou Vidal no documentário baseado no livro de Vito e curiosamente produzido por Hugh Hefner, fundador da Playboy.
Por que o homossexualismo incomoda tanto?
Por que tem gente que acha uma patologia um homem gostar de outro, e propõe a cura em clínicas psicológicas, “de preferência, bem longe” (Levi Fidelix)?
Por que uma candidata à Presidência retirou do seu programa o apoio ao casamento gay, e outros se recusam a incluir homofobia na lista de crimes?
O personagem homossexual Barton Scully (Beau Bridges) da série Masters of Sex, diretor clínico de um hospital e casado com uma mulher, vai fazer tratamento para curar seu desejo por homens, que inclui eletrochoque, “o mais eficaz da época”.
A série, que se passa na virada dos anos 1950 para 1960, retrata o drama de um homem que não aceita a sua homossexualidade e vai buscar por conta própria um tratamento que Fidelix, se eleito, oferecerá à população.
Será que é porque o homossexualismo não se explica pelos pilares do pensamento ocidental- materialismo histórico, Freud, darwinismo social-, não é genético, não é doença, não tem cura, contesta a ciência, a religião, reafirma o livre desejo, a possibilidade múltipla de se criar uma família, de manter laços afetivos, eróticos, porque gays contam que desde menino sabem que são gays, será que porque, numa família de vários filhos, um pode ser gay, sem nenhuma explicação?
Nasceu assim, não está no DNA, não é resultado de traumas infantis, não é “culpa” dos pais, do ambiente, da escola, de rigor moral, ou liberdade em excesso, independe do credo, classe social, raça, cor, origem, ascendência, não existem mais gays num país que em outro, numa região temperada ou tropical, na praia ou na montanha, não é a origem italiana, ou francesa, não existem mais ou menos gays entre judeus, católicos, negros, mulatos, pardos, brancos, altos, baixos, morenos, loiros, magros, gordos, durante a lua cheia.
Talvez por não terem uma explicação empírica ou transcendental, eles incomodam a tantos, pois desqualificam verdades e colocam em cheque teorias das quais uma Nação precisa para seguir e ter um sentido de ordem, conjunto e progresso.
Só tenho que pedir desculpas à comunidade gay. E agradecer sempre a insistência da sua militância por direitos iguais aos diferentes.
Graças a ela, nós, deficientes, que, com gays, comunistas, ciganos e judeus, fomos exterminados em campos de concentração nazistas, obtivemos direitos na esteira da luta.
Obrigado pela luta contra a Aids, por nos terem alertado da contaminação de bancos de sangue, que matou meu amigo hemofílico Henfil, e exigido da comunidade científica um tratamento para a doença.
Obrigado Rimbaud, por propor uma nova poesia, Artaud, um novo teatro, Proust, um novo romance, Duchamp, questionar o papel da artista, ao se vestir de mulher, Andy Warhol, pela arte contemporânea.
Obrigado Billie Holiday, que gostava de ser chamada de “William”, Greta Garbo, Isadora Duncan, Josephine Baker, Janis, Orlando de Virginia Woolf, Adrienne Monnier, primeira editora de Ulysses, ao casal Gertrude Stein e Alice Toklas, Bishop e Lota, a Amelia Earhart, primeira mulher a atravessar o Atlântico.
Perdão pela intolerância que os(as) agride.

Por
Marcelo Rubens Paiva
07/10/2014