29 de fev. de 2012

Antártida tem importância científica e geopolítica para Brasil, dizem analistas


Segundo a vice-presidente da Frente Parlamentar de Apoio ao Programa Antártico, a deputada Jô Moraes (PCdoB-MG), é hora do Brasil tratar com seriedade a importância estatrégica e científica da Antártida. No último sábado 25, um incêndio destruiu 70%  da base brasileira Comandante Ferraz e matou dois oficiais do exército no continente.
“As pesquisas realizadas na Antártida influenciam diretamente o cotidiano do brasileiro e possuem um valor estratégico, mas infelizmente são desconhecidas e desvalorizadas”, avalia Moraes. “Neste momento, não se trata mais de vontade política, mas sim de responsabilidade estratégica prosseguir com as pesquisas.”
Ter uma base científica e militar na Antártida é uma conquista estratégica para o País, defende Maria Vigínia Petry, professora da Unisinos que possui linhas de pesquisa na base brasileira Comandante Ferraz. “O que acontece na Antártida influencia diretamente o Brasil. Os ventos e as nuvens que atingem nosso País se originam da Antártida. As explicações para as secas ou inundações que o Brasil enfrenta podem estar lá”, afirma. “Além disso, é importante para o Brasil poder opinar sobre o continente que possui a maior reserva de água doce do planeta”.
Recursos
Apesar da importância geopolítica da base Comandante Ferraz, os recursos para sua manutenção são cada vez mais escassos. De acordo com a deputada Jô Moraes, em 2011 foram destinados 16,5 milhões de reais para investimento em infraestrutura da Missão Antártida. Porém, em 2012, os valores caíram para 9,78 milhões de reais. Uma significativa queda de 41%.
“O orçamento não permite que a estrutura física e de logística da base ofereçam sustentação às pesquisas. O programa se desenvolve em situações difíceis”, argumenta a parlamentar.
Em mais um ano de contenção fiscal, o governo reduziu os recursos previstos no Orçamento da União para a Missão Antártida. De 2011 a 2012, os investimentos caíram em 75,1 milhões de reais, previstos no Programa Antártico Brasileiro (Proantar), para 19,9 milhões de reais, descritos no programa temático Mar, Zona Costeira e Antártida.
Segundo a deputada, estima-se que sejam necessários 20 milhões de reais para a retirada dos escombros e início da reconstrução da base Comandante Ferraz. Está incluso neste valor a retirada da embarcação brasileira que naufragou na Antártida, em dezembro de 2011, com 10 mil litros de óleo combustível. “São medidas emergenciais e estamos confiantes em ter a liberação desta verba o quanto antes”, afirma.
Apesar das críticas, a deputada não considera a queda dos investimentos em infraestrura como fator responsável para o surgimento do incêndio. “O incêndio foi uma fatalidade e é cedo para saber o que o causou.”
Continuidade das pesquisas
As perdas científicas se concentram principalmente nos dados coletados no continente e que ainda não haviam sido analisados nos laboratórios brasileiros. “Perdemos os dados coletados de outubro a fevereiro que estavam armazenados na base, isso representa uma perda de 30% para o projeto”, afirma Petry, a professora da Unisinos.
Enquanto a base brasileira não for reconstruída, as pesquisas prosseguirão nos outros acampamentos brasileiros e no barco de pesquisa Almirante Maximiano — que possui cinco laboratórios e hangar para dois helicópteros –, de acordo com o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, Marco Antonio Raupp.
Para Petry, a estrutura dos acapamentos brasileiros e do barco Almirante Maximiano é suficiente para manter as linhas de pesquisa. “Acredito que todo os grupos possam continuar com suas pesquisa, mas creio que certamente haverá uma redução no número de pesquisadores na Antártida por uma questão de infraestrutura.”
Contudo, na segunda-feira 27, o ministro Raupp afirmou que serão destinados recursos extras para a reconstrução da base, estimada entre um e dois anos, e que a verba para o Proantar — a menor desde 2006 — será mantida.
Atualmente, o Proantar desenvolve linhas de pesquisas relacionadas aos fenômenos atmosféricos, às mudanças climáticas, à biologia marinha e às pesquisas tecnológicas de ponta multidisciplinares.

28 de fev. de 2012

O Brasil que a classe média não vê



O habitante da capital paulista, conhece as periferias de sua cidade? E a produção cultural surgida e muitas vezes autofinanciada que lá acontece? Com a pauta sobre o tema, constatei que conheço pouco ou praticamente nada da periferia.
Mais gente vive assim, sem saber o que está acontecendo por aí… Por meio da internet é possível “ir” um pouco até as periferias, ter uma noção do lado B da diversidade cultural brasileira. Cada periferia tem sua especificidade e, dependendo do enfoque, ela pode ser um conceito relativo. Mas o resumo simplista para definir periferia pode ser como o local onde pessoas vivem, fora do centro das grandes cidades. Para a urbanista Raquel Rolnik, a cultura da periferia ganhar cada vez mais espaço dentro e fora dela.
Em São Paulo há 96 distritos, dos quais 57 ficam na periferia e somam 6.838.641 habitantes, ou seja, 63% da população, com dados do IBGE de 2010. São onze regiões com população acima de 200 mil habitantes. Todas na periferia: Sapopemba, São Miguel, Jardim São Luís, Jardim Ângela, Jabaquara, Itaquera, Itaim Paulista, Grajaú, Cidade Ademar, Capão Redondo e Brasilândia. População total: 2.688.757 habitantes, mais do que em quase todos os 39 distritos não periféricos de São Paulo juntos. É importante saber como  vivem essas pessoas. Um povo pobre, trabalhador, que luta e busca ser feliz apesar de tudo. “Um povo lindo, um povo inteligente”, como dizem os poetas da Cooperifa. Um povo que merece ser visto pelas lentes da TV mostrando aquilo que tem de mais bonito.
Já disse Antônio Abujamra, em seu programa Provocações, que “as periferias desse enigma brasileiro, periferias que, ao contrário do que era de se esperar, vão buscar inspiração na Jamaica para fazer músicas de letras quilométricas: rap, hip-hop, funk. As pessoas, gostem ou não dessas coisas, não podem ignorar que é por onde a periferia descarrega seu discurso político; avisando à classe média e às elites para irem devagar, que as coisas têm limite”.
“Esse grande estilo de vida que é o hip-hop está aí pra criar alternativas ao que está aí exposto”, explica o rapper GOG. Genival Oliveira Gonçalves também é das periferias, mas de Brasília. Mais antigo, tem no discurso não só uma das questões básicas que definem periferia, a exclusão social, mas também o tema racial, de crítica à mídia corporativa e, indo além, em nome dos que morreram torturados pela ditadura.
Se a produção cultural da periferia seguir GOG, muita coisa poderá ser diferente no futuro… Os militantes do setor acreditam que a cultura revoluciona. É uma boa aposta! Ele crê na mudança do modus operandi… E vai direto ao ponto: “Se não nos dão oportunidade de mostrar, vamos criar todo um mundo paralelo para fazer isso. É preciso dizer que no Brasil existe uma luta de classe, de verdade!”.
Não só as palavras, muitas vezes duras, do hip-hop estão nas periferias. Saraus de poesias, cinema na laje, peças de teatro, exposições e instalações artísticas.
O geógrafo Paulo Roberto Andrade de Moraes montra, em seu estudo A Espacialização dos Eventos Culturais na Cidade de São Paulo1, que a concentração dos grandes eventos culturais em poucas regiões na cidade de São Paulo. Tendo como base o guia semanal de um jornal de grande circulação, fica evidente a grande oferta de equipamentos culturais principalmente nas regiões oeste, central e sudoeste.
A capital paulista possui 110 museus, 160 teatros, 294 salas para shows e concertos e quase 11 milhões de habitantes espalhados por diversos distritos e bairros. Trata-se de uma enorme cidade. E  muitas vezes frequentar esses espaços é caro e distante para quem está na periferia.
A concentração de eventos culturais se dá exatamente onde também estão os segmentos da população de maior poder aquisitivo. “A dificuldade na democratização ao acesso à cultura ocorre pela questão geográfica e econômica, que em alguns pontos, quando se trata de São Paulo, são indissociáveis”, comenta o pesquisador. Ele também alerta para a necessidade de alterar a Lei de Incentivo à Cultura. “As empresas não querem arriscar em algo que não tenha retorno garantido. Isso é um erro! Se quiserem dedução de imposto façam com que a cultura seja mais bem difundida e promovam a democratização cultural.”
Mas quem fica e está nos bairros mais afastados faz o quê? Na dita periferia paulistana se concentra grande número de jovens, que estudam, trabalham, fazem ambas as coisas ou nenhuma delas. Nos debates  sobre as necessidades das juventudes a cultura é sempre ponto importante. Mas não só a juventude habita essas paradas. De crianças a idosos, a periferia tem todas as faixas etárias.
Gil Marçal, coordenador do Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), da capital paulista, explica: “No VAI, em 2011, o orçamento foi de R$ 3,05 milhões, com 145 projetos contemplados, 135 de pessoas físicas e dez de pessoas jurídicas. Os projetos são de diversos tipos: montagem de espetáculo, circulação, produção, literatura, hip-hop, artes cênicas, espaços culturais etc.”
O programa foi criado pela Lei nº 13.540, de autoria do vereador petista Nabil Bonduki, e regulamentado pelo Decreto nº 43.823/2003, com a finalidade de apoiar financeiramente, por meio de subsídio, atividades artístico-culturais, sobretudo de jovens de baixa renda e de regiões do município desprovidas de recursos e equipamentos culturais.
Segundo Gil, à medida que avançam os serviços públicos e a cidadania, a periferia vai mudando também. O VAI tem por objetivos estimular a criação, o acesso, a formação e a participação do pequeno produtor e criador no desenvolvimento cultural da cidade; promover a inclusão cultural; estimular dinâmicas culturais locais e a criação artística. Desde 2004, quando da sua implantação, foram executadas seis edições.
Ainda no começo dos anos 1990, em São Paulo, teve início uma mudança da visão dos jovens na cidade e da própria cultura como ferramenta de transformação, engajamento. Ações não só de governos, mas principalmente de organizações não governamentais, ajudaram na construção de grupos e atividades, gerando hoje uma expressão cultural muito mais forte.
Gil é entusiasta do assunto e ele próprio é filho do Jardim São Luís, na zona sul paulistana. “A produção é imensa e difícil de mensurar. Tem cinema de quebrada, oficinas de formação do olhar, produção de vídeos (que inseriu muitos jovens na prática do audiovisual). Toda uma nova geração de videomakers. O barateamento dos equipamentos eletrônicos deu à galera a possibilidade de produzir”.
Ele relata também que os saraus, uma articulação fundamental para fixar a imagem da cultura das periferias, têm um circuito grande. Além da divulgação da produção poética, estimula debates e a organização local. Em 2008 aconteciam mais de sessenta saraus e todos tinham como protagonista o jovem da periferia. Agora é para todas as idades. “As ações acabam envolvendo os jovens, mas isso não quer dizer que a cultura das periferias seja feita só por eles”. E o VAI fortaleceu o circuito que se constituía. Em 2011, por iniciativa de Gil, os organizadores da Virada Cultural instalaram o palco Cultura Periférica, como forma de levar ao centro o que está sendo feito longe dele.
Um bom exemplo são os saraus poéticos. O poeta Sergio Vaz, um dos idealizadores do Cooperifa, pergunta: “Alguém pode me explicar como um sarau de poesia na perifa de São Paulo leva  quatrocentas pessoas para ouvir e falar poesia?”
“Quando a gente fala que gosta da periferia não quer dizer que odiamos outros lugares. Você ama a tua mãe, mas não odeia a dos outros”, explica o poeta sobre a preferência de produzir e estar nos espaços mais distantes. Sempre lembrando que “a Poesia está na pauta dos despautados contrariando os despeitados”.
O Sarau da Cooperifa é um movimento cultural que tranformou o bar do Zé Batidão na zona sul de São Paulo em centro cultural, em outubro de 2011 completou 10 anos de atividades poéticas e artísticas na comunidade do bairro de Piraporinha e região.
O aniversário de uma década está sendo comemorado em grande estilo, primeiro com a 4ª Mostra Cultural e agora com um sarau especial com música e poesia em um dos palcos mais importantes da cidade, o Auditório do Ibirapuera. Um espetáculo que promete ser simples, mas mantendo a mesma “pegada” dos saraus que acontecem todas as quartas-feiras no extremo sul da periferia paulistana.
Cine Viela
Os três jovens criadores do Coletivo Recanto Resiste (CoRRe), apresentam o seu projeto: “Tudo começou com essa vontade louca de parar de reclamar e agir. Meter a mão na massa e trazer, através da cultura, a transformação necessária a esse bairro da região de Parelheiros, na periferia sul da cidade cinza”. Segundo Thiago Beleza, Adriano Onairda, Luiza Mançano “a periferia se levanta e começa a tomar pra si tudo aquilo que sempre lhe foi negado. Decretamos o nascimento de mais um coletivo, chegando pra somar na luta das periferias”.

Aprovados pelo VAI, estão a todo vapor com o Cine Viela, que pretendem expandir para as vielas de outras “quebradas” utilizando uma kombi. “Lutamos para ocupar um espaço que é nosso e por meio dele tomar as rédeas de nosso futuro. Somos a prova de que, com muita CoRReria, podemos  realizar e atender às demandas nunca atendidas pelo poder público. Somos um coletivo que representa a resistência à exclusão imposta a todas as periferias de todos os lugares”.
Foto do Coletivo CoRRe. Crianças no Cine Viela

Luiza conta que a ideia inicial era exibir filmes independentes que levassem os moradores a refletir sobre os problemas do bairro. Mas o público formado foi outro… Em todas as sessões a maioria era de crianças e tiveram de mudar a programação. “Os moradores compreenderam a importância do projeto porque no bairro não tem lugar para criança brincar e para chegar ao cinema mais próximo é preciso ir até o Shopping Interlagos ou até Santo Amaro, o que leva, no mínimo, uma hora e meia”.

A importância da cultura da periferia pode ser medida pela grande quantidade de reportagens nas televisões comerciais e também programas específicos, como o da TV Cultura, semanal, sobre hip hop, Manos e Minas.
Colunista do Le Monde Diplomatique, Eleilson Leite afirma que “a periferia tem seus cantos e encantos. Ela merece estar na mídia. Mas não como invariavelmente aparece, expondo suas tragédias, mas por sua beleza, pela força do seu povo, por sua riqueza cultural e sua vontade de transformar”.  Conclui que o povo não quer sair da periferia, mas quer uma periferia cada vez melhor.
Fernanda Estima é editora assistente de Teoria e Debate

25 de fev. de 2012

O que um jovem faz aos 13 anos. Corta madeira, é claro!


O trabalho pode fazer parte da formação pessoal, desde que não afete o crescimento do indivíduo, respeitando a idade legal. Hoje, muitas empresas já empregam pessoas de 14 anos para fazer atividades de gente de 18 – ou, no caso da obra, 16 por 18. Usam como justificativa que treinam aprendizes, mas na verdade superexploram mão de obra barata. Isto sem contar as 33.173 autorizações de trabalho para crianças e adolescentes menores de 16 anos, contrariando o que prevê a Constituição Federal, concedidas pela Justiça entre 2005 e 2010. Desse total, 131 foram para crianças de dez anos.
A situação piora quando esses jovens estavam em condições de trabalho que nem um adulto deveria estar.
No final do último mês, quatro adolescentes foram encontrados entre os 52 trabalhadores libertados em fiscalização no município de Tailândia (PA), de acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Dois deles, de 13 e 14 anos, exerciam atividade de risco usando machados na extração e beneficiamento de madeira, trabalho que está entre as piores formas de exploração infantil, conforme a Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho e a legislação brasileira. Outro, de 16 anos, trabalhava com uma foice para abrir caminho para a passagem das toras. E uma garota de 15 anos trabalhava como cozinheira em uma das frentes de trabalho. As informações sobre a operação que resgatou os jovens são de Daniel Santini, da Repórter Brasil.
“O trabalho que eles realizavam era de ‘lapidador’, eles lapidavam o tronco até deixá-lo no formato de mourões para cercas. Dois dos adolescentes utilizavam machados e um, uma foice”, disse à reportagem a auditora fiscal do trabalho Inês Almeida, coordenadora da ação.
Muito evoluímos no sentido de erradicar as piores formas de trabalho infantil. Mas não na velocidade necessária, como já discuti aqui várias vezes, com dados aos montes. A Conferência Nacional de Trabalho Decente, que será realizada em maio, em Brasília, é um excelente momento para refletir: o Brasil está crescendo, mas será que não é o momento de aumentarmos a proteção para que nossas crianças consigam, de fato, se tornar os bons profissionais que o país precisa para manter esse mesmo crescimento?
Até entendo que muita gente sinta que sua experiência de superação é bonita. Mas, pergunto: será que não imaginam que o trabalho infantil não precisa ser uma doença hereditária?

24 de fev. de 2012

Síria: por que Assad não cai


O presidente sírio, Bachar al-Assad suporta o peso de ser um dos homens menos populares no mundo. É apontado como tirano – um tirano muito sangrento – por quase todos. Mesmos os governos que se recusam a denunciá-lo parecem aconselhá-lo a conter a repressão e fazer algum tipo de concessão política a seus oponentes internos.
Mas como ele pode ignorar todos estes conselhos e continuar a aplicar força máxima para manter o controle político de seu país? Por que não há nenhuma intervenção externa, para provocar sua derrubada? Para responder a estas questões, vamos começar reconhecendo suas forças. Primeiro, ele tem um exército razoavelmente poderoso; e até agora, com poucas exceções, o exército e outras estruturas de força na Síria permanecem leais ao regime. Além disso, ele ainda parece ter o apoio de ao menos metade da população, naquilo que está sendo descrito, cada vez mais, como uma guerra civil.
Os postos-chaves do governo e nos quadros do exército estão em mãos dos alawitas, uma ala do Islã xiita. São uma minoria entre a população e certamente temem o que pode lhes suceder se as forças de oposição, largamente sunitas, tomarem o poder. Além disso, as outras forças de minoria significativas – cristãos, drusos e curdos – também parecem temer um governo sunita. Por fim, a ampla burguesia mercantil ainda não se voltou contra o regime do Partido Baath.
Mas isso é suficiente? Se fosse tudo, duvido que Assad pudesse manter-se por muito tempo. O regime está sendo pressionado economicamente. O Exército Sírio Livre, na oposição, está sendo abastecido de armamentos pelos sunitas iraquianos e provavelmente pelo Qatar. O coro de denúncias na imprensa mundial, e em grupos políticos de múltiplas tendências, cresce a cada dia.
Ainda assim, não creio que encontremos, em um ano ou dois, Assad fora do poder, ou o regime substancialmente mudado. A razão é que aqueles que mais o denunciam não desejam de fato que ele vá. Vamos analisá-los um por um.
Arábia Saudita: o ministro do Exterior disse ao New York Times que “a violência tem de ser interrompida e o governo sírio não merece mais nenhuma chance”. Parece de fato duro, até que se leia o adendo: “a intervenção internacional deve ser descartada”. O fato é que a Arábia Saudita quer o crédito por se opor a Assad mas teme muito o que poderá sucedê-lo. Sabe que numa Síria pós-Assad (provavelmente, muito caótica), a Al Qaeda encontraria uma base; e que o objetivo número um da Al Qaeda é derrubar o regime saudita. Logo, “sem intervenção internacional”.
Israel: sim, os israelenses continuam obcecados com o Irã. E sim, a Síria baathista continua sendo um poder favorável ao Irã. Mas no frigir dos ovos, a Síria tem sido um vizinho árabe relativamente tranquilo, uma ilha de estabilidade para os israelenses. Sim, os sírios ajudam o Hezbollah, mas o Hezbollah também tem se mantido quieto. Por que os israelenses desejariam correr o risco de uma Síria pós-baathista turbulenta? Quem assumiria o poder? Seja quem for, não teria que reforçar suas credenciais ampliando a jihad contra Israel? E a queda de Assad não abalaria a estabilidade relativa que o Líbano parece agora desfrutar? Isso não terminaria reforçando e renovando o radicalismo do Hezbollah? Israel teria muito a perder, e não muito a ganhar, se Assad caísse.
Estados Unidos: a Casa Branca fala grosso. Mas você percebeu como ela é cautelosa, na prática? O Washington Post deu, a um artigo de 11/2, o título: “Massacre consuma-se, mas EUA não veem ‘nenhuma opção’ na Síria”. O texto frisa que Washington “não tem apetite para uma intervenção militar”. Nenhum apetite, apesar da pressão de intelectuais neocons como Charles Krauthammer – suficientemente honesto para admitir que “não se trata apenas de liberdade”. Trata-se, ele diz, de desconstruir o regime iraniano.
Mas não é exatamente por isso que Obama e seus conselheiros não veem alternativas?Eles foram pressionados para aderir à operação na Líbia. Os EUA não perderam muitas vidas, mas será que obtiveram alguma vantagem geopolítica? O novo regime líbio – se é que há um novo regime líbio – será melhor que o anterior? Ou é o começo de uma longa instabilidade interna, como a que abalou o Iraque?
Posso imaginar o suspiro de alívio em Washington, quando a Rússia vetou a resolução da ONU sobre a Síria. A pressão para iniciar uma intervenção de estilo líbio foi suspensa. Obama foi protegido, pelo veto russo, da pressão republicana em torno do tema. E Susan Rice, a embaixadora dos EUA junto à ONU, pôde jogar toda a culpa em Moscou. Eles foram “repugnantes”, disse ela, oh, tão diplomática.
França: Sempre nostálgico do papel outrora dominante de seu país na Síria, o ministro do Exterior, Alain Juppé, grita e denuncia. Mas tropas? Você só pode estar brincando. Há uma eleição à vista, e enviar soldados não renderia voto algum – especialmente porque, ao contrário da Líbia, não seria um passeio.
Turquia: o país ampliou de forma inacreditável suas relações com o mundo árabe, na última década. Ele está de fato descontente com uma guerra civil em suas fronteiras. Adoraria algum tipo de acordo político. Mas o ministro do Exterior, Ahmet Davutoglu teria garantido que “a Turquia não provê armas nem apoia desertores do exército”. Os turcos desejam, basicamente, ter boas relações com todas as partes. Além disso, a Turquia tem sua própria questão curda e a Síria poderia oferecer apoio ativo a esta minoria – o que, até agora, ela se absteve de fazer.
Portanto, quem quer intervir na Síria? Talvez, o Qatar. Mas o país, embora rico, está longe de ser uma potência militar. O ponto de partida é que, ainda que a retórica seja dura; e a guerra civil, feia, ninguém quer de fato que Assad vá. Por isso, tudo indica que ele ficará.

Fonte:
Por Immanuel Wallerstein | Tradução: Antonio Martins

Outras Palavras

23 de fev. de 2012

Estupro: o que nunca será sexo



“Carnaval é uma delícia. Sensualidade, pegação, muita dança, folia. Mesmo eu, que nunca fui carnavalesca, me delicio em São Paulo vazia, quase abandonada e aproveito pra escutar um bom samba, que não faz mal a ninguém. Todo o clima bom do carnaval vem, porém, do fato de que fazemos o que queremos. Quando queremos. Como queremos. Se não fosse assim, não seria bom. Como não é, pra tantas mulheres assediadas, estupradas, violadas em plena festa.” (do Mulher Alternativa, leia aqui).
Na última semana, três crimes de gênero contra mulheres foram pautados pelas TVs, rádios e portais na internet. Alguns, mais do que outros, como sempre. O julgamento de Lindemberg, que sequestrou a ex-namorada e é acusado de também tê-la matado foi o mais noticiado. Era a repercussão de um fato que a televisão cobriu largamente em 2008, afinal de contas.
“Um dia, por tudo isto ou por outros fatores que já não consigo especular, ela disse ‘não’.
Dizer não não é fácil.
Muitas vezes, vindo de uma mulher, o ‘não’ sequer é levado em conta como ‘não’. Brincadeiras e piadas conhecidas por todos, reforçam a máxima de que quando uma mulher diz não, na verdade ela quer dizer sim. Cada vez que esta ideia é encorajada e considerada enquanto prática e verdade, Eloá é novamente assassinada. Quantas vezes, numa balada, nós mulheres temos de dizer ‘não’ para o mesmo homem antes de sermos finalmente entendidas e deixadas em paz? Quantas vezes as adolescentes não repetem a afirmação de terem beijado um rapaz ‘só para que ele fosse embora’? Quantas vezes mulheres aceitam transar sem camisinha por não conseguirem dizer ‘não’ e condicionarem o sexo à proteção?”
(leia o texto completo em Dizer não: o assassinato de Eloá é um crime de gênero contra todas as mulheres)
Passou praticamente despercebido, nesse furor, um crime do pior tipo possível. No município de Queimadas, na Paraíba, o sobrinho do prefeito e alguns amigos planejaram um estupro coletivo como presente de aniversário a um amigo. Uma história de horror com requintes de crueldade. No fim das contas foram seis mulheres estupradas e, entre elas, duas assassinadas por reconhecerem os agressores – mascarados simulando um assalto (leia muitos textos bons sobre esse caso aqui.
“Confesso que é muito difícil de imaginar uma cena dessas. Na verdade, creio que a mente se fecha para os detalhes macabros, não queremos imaginar as mulheres amordaçadas e amarradas tendo suas roupas arrancadas e sendo penetradas, machucadas, humilhadas e espancadas por vários homens, um atrás do outro, a rir de seu desespero e medo e relinchando de prazer. Pois foi isso o que dez homens fizeram a mulheres que eram suas amigas e vizinhas!” (da Cecília Santosleia aqui).
“O fato de que a sociedade trata os estupradores como psicopatas, monstros e indivíduos que não pertencem à sociedade é, no mínimo, hipócrita. Os homens que violam e violentam os corpos das mulheres estão apenas reproduzindo os padrões disseminados pela sociedade. Padrões que colocam os nossos corpos como mercadorias, objetos de desejo, sem que nós sejamos protagonistas desse desejo. (…) Então, um homem ganha de aniversário um estupro coletivo e as mesmas pessoas que corroboram com essas relações sociais distorcidas se chocam, acusam, apontam dedos, desejam a morte desses homens. Sem perceber que esses homens trataram aquelas mulheres como elas são retratadas cotidianamente, como objetos. Já passou da hora de refletirmos que a culpa é do estuprador e não da vítima, e que é também dos que perpetuam o imaginário da mulher objeto. Um imaginário doente, violento e que nos agride todos os dias.” (daMarcha das Vadias do DFleia aqui).
“Vivemos numa sociedade que ensina mulheres e cobra delas que não sejam estupradas, ao invés de dizer aos homens: não estupre! O estupro é um crime de poder e humilhação, de violação máxima do corpo. Sabemos de tudo isso. Porém, é espantoso que dez pessoas decidam promover um estupro coletivo. Todos que sabiam e estiveram presentes participaram de um crime com grandes requintes de crueldade e misoginia.” (da Srta. Bialeia aqui).
“Dois aspectos do caso me chamaram muita atenção: dos homens que não não participaram de forma efetiva, nada fizeram, não as defenderam, não denunciaram. A outra coisa foi que duas mulheres que também estavam na festa foram separadas das outras e não foram tocadas. Essas eram as namoradas dos dois mandantes do crime. Essas duas características aparentemente menores do crime é que revelam o tipo de misoginia perversa que se esconde dentro da sociedade. Os homens que não participaram ativamente do crime, de alguma maneira entenderam que aquilo não era nada demais. É um direito dos homens estuprarem mulheres. E as esposas dos criminosos não foram violadas pois, afinal, já eram propriedade de alguém. As outras não foram poupadas pois afinal, não existia nenhum homem que zelasse pela segurança desse ‘bem’.” (daRenata Correaleia aqui).
“De vez em quando, especialmente quando acontecem casos de violência e crueldade quase indescritíveis contra a mulher, ressurge a frase: “toda mulher tem uma história de horror pra contar”. Acontece que eu não tenho. (…) Isso quer dizer o quê? Que sou especial? Ou que as outras mulheres inventam e se vitimizam? Não. Não. Não. Isso quer dizer que é possível. Que não são “os homens” que estupram “as mulheres”, que não há uma lei natural que determine que “isso sempre aconteceu e sempre vai acontecer”. Isso quer dizer que não é um fenômeno imutável sobre o qual devemos lamentar em voz baixa e rezar para que não aconteça com ninguém que a gente conhece. Não. Não. Não.” (da Luciana Nepomucenoleia aqui).
Para completar a trilogia do horror, uma menina de 12 anos foi estuprada dentro de um ônibus no Rio de Janeiro, com outras passageiras dentro, cobrador e motorista. Sem precisar se esconder, sem precisar de nada além de uma arma. O agressor não fez reféns, não ameaçou ninguém exceto a criança. Entrou e saiu. Assim.
Esses três crimes tem algo em comum: são crimes de gênero contra mulheres. São resultado de uma cultura machista que objetifica a mulher. Somos um corpo, nestes termos, e não seres humanos, pessoas. Na época do sequestro e assassinato de Eloá Pimentel, a sobrevivente Nayara deu declarações comentando que, no cativeiro, Lindemberg a chamava de “Barbie”. Nada mais ilustrativo do que uma boneca pra evidenciar, novamente, esta relação.
Esta semana eu caminhava na rua e passei em frente a uma feira sendo desmontada. Muitos homens e poucas mulheres. A rua não estava vazia mas também não estava cheia. No bairro da Vila Madalena, em São Paulo. Um dos trabalhadores da feira, ao me ver passar, exclamou em (bem) alto e bom som: “Parabéns, hein, princesa, assim sim…”. Ele devia estar a uns três metros de mim, se muito. Eu já me aproximava do meu destino, uma farmácia que fica bem na frente do local onde fui assediada. Não tive dúvidas e, em silêncio, mostrei o dedo do meio pra ele com uma expressão no rosto que provavelmente denotava todo o ódio que qualquer vítima de qualquer tipo de assédio sente. Ele se surpreendeu: “Nossa, que é isso…”, disse. Eu juntei minha raiva e gritei mais alto, para a feira toda escutar: “Não estou aqui pra você ficar olhando, caralho”. Assim, com palavrão e tudo. Entrei na farmácia. Quando saí ninguém ousou nem olhar pra mim.
Sei que nem sempre é o mais sensato a fazer. Naquela circunstância, considerei que era apropriado. O risco de uma ação violenta, sei muito bem, não depende da minha reação, nem da roupa que eu uso e, aparentemente, nem da rua estar vazia ou não. Os crimes de gênero que mencionei no início do texto têm testemunhas, aconteceram na luz do dia e dois tiveram homens conhecidos como agressores. Não há nada que me convença de que eu posso provocar ou deixar de provocar um acontecimento destes. Nem vocês.
“’Não é de se espantar’, diz Cook, ‘que nós mulheres culpemos umas às outras, considerando que fomos criadas para nos culparem enquanto mulheres’. Agnew-Davies concorda e acrescenta que este foco obsessivo na vítima resulta na invisibilidade do agressor. ‘Para as mulheres é muito mais frequente sobrevivermos com a idéia de que podemos prevenir um estupro mudando nosso comportamento do que vivermos com a imprevisibilidade e admitirmos pra nós mesmas que o agressor será muito mais provavelmente alguém que aconhecemos e amamos do que um estranho’.” (de Julie Bindel, noThe Guardianleia aqui a tradução).
O assédio na rua, conhecido de todas as mulheres brasileiras (ou quase todas), não chega perto do sofrimento dos estupros e assassinatos que tomaram a mídia. Mas tem em comum com eles, no pano de fundo, a ideia corrente de que nós mulheres somos apenas corpos sem desejo próprio e, pior, disponíveis.
“Ser biscate é um privilégio” (no Biscate Social Clubleia aqui).
PS: poucos dias depois de ter escrito este texto, uma mulher foi assassinada por reagir a uma cantada na rua durante o carnaval no Rio. Tremo de indignação, como diria Che, num mundo como este.
Fonte:
Marília Moschkovich, editora de Mulher Alternativa

17 de fev. de 2012

A vida na gaiola


escritório 300x205 A vida na gaiola
O trabalhador do século XXI é, tipicamente, um ser dos escritórios, labutando de sol a sol com um computador à sua frente. Foto: Galeria de Pepe_pito / Flickr
O trabalhador do século XIX foi, tipicamente, um agricultor, labutando ao ar livre e sofrendo a ação das intempéries. O trabalhador de parte considerável do século XX foi, tipicamente, um operário, labutando em uma fábrica e sofrendo com o calor, o ruído e o ritmo da linha de montagem. O trabalhador do século XXI é, tipicamente, um ser dos escritórios, labutando de sol a sol com um computador à sua frente e dezenas de colegas ao seu redor.
Do fim do século XX para as primeiras décadas do presente século, a arquitetura dos escritórios mudou sensivelmente: o crescimento das empresa e o aumento do preço do metro quadrado nas grandes cidades levaram as organizações a adensarem seus espaços de trabalho. Com isso, as salas deram lugar às baias; as baias deram lugar às células com divisórias e, agora, as células estão dando lugar às mesas comunitárias.
Os modernos escritórios foram projetados para facilitar a comunicação, estimular o trabalho coletivo, fomentar a produtividade e a eficiência.
No entanto, não são poucos aqueles que amaldiçoam a vida nas modernas gaiolas corporativas, com o ruído permanente de conversas indesejáveis, as interrupções frequentes de colegas inoportunos, o grasnar de celulares, o martelar ritmado de teclados, o coaxar estridente de cafeteiras e o uivar mecânico de copiadoras.
Por trás da arquitetura aberta há um conceito de gestão. O mundo corporativo tomou como premissa que a inteligência coletiva é superior à inteligência individual, e que trabalhar em grupo é melhor do que trabalhar sozinho. Os gênios solitários que se lixem. A vez agora é dos extrovertidos, dos entusiastas da vida social e do pensamento grupal. Contudo, como alerta Susan Cain, em artigo publicado pelo New York Times recentemente, é melhor ir devagar com o andor porque o santo é de barro. Com base em diversos estudos científicos, a autora coloca em xeque o pressuposto de que a colaboração e o trabalho em equipe tornam as organizações mais produtivas.
Primeiro argumento: algum trabalho em grupo pode ser estimulante e até divertido. Trocar experiências e aprender com a vivência de colegas enriquece a visão que temos da realidade, pode mudar nossa percepção sobre os problemas e até levar a soluções que não imaginaríamos sozinhos. Na prática, trabalhar em grupo significa, porém, participar de reuniões sem rumo nem fim e ser obrigado a interagir com colegas que não têm a mínima ideia do assunto tratado ou que agem exclusivamente em interesse próprio. Além disso, muitos indivíduos, quando atuam em grupos, portam-se como espectadores, mimetizam as opiniões de colegas e acomodam-se à pressão dos pares.
Segundo argumento: grupos frequentemente focam no próprio umbigo e desenvolvem raciocínios viciosos, ignorando perspectivas externas e reforçando o status quo. Eles costumam chegar a soluções de compromisso, que costuram interesses políticos, mas evitam correr riscos e tomar decisões mais duras, que podem ser necessárias em situações de crise.
Terceiro argumento: alguns estudos revelam que o trabalho em escritórios abertos é insalubre, tornando os profissionais mais predispostos a sofrer de pressão alta, estresse e exaustão. Além disso, os torna mais distraídos, inseguros e hostis, e ainda prejudica a produtividade.
Quarto argumento: em geral, as pessoas são mais criativas quando têm privacidade e ficam livres de interrupções. De fato, o isolamento ajuda a mente a se concentrar, induz a momentos de transcendência e facilita a criatividade. Significativamente, muitos profissionais inovadores são seres introvertidos e individualistas. Eles se sentem mais confortáveis trabalhando sozinhos, donos de sua própria agenda e do ritmo de ação.
Que fazer? Voltar ao modelo individualista e à arquitetura de salas separadas é inviável. Susan Cain sugere uma solução de equilíbrio, com ambientes de trabalho que permitam a interação entre os profissionais, porém, lhes facilite momentos de isolamento e reflexão. A autora acerta no diagnóstico, mas é ingênua na solução. Esquece que uma razão (implícita) para a existência de escritórios abertos é o chamado controle social. Ambientes abertos colocam os profissionais em constante situa-ção de atenção.
O escritório do século XXI é uma reinvenção do Pan-Óptico idealizado por Jeremy Bentham no século XVIII: um centro penitenciário no qual os ocupantes estão permanentemente sob vigilância. Juntam-se à arquitetura os modernos meios de informação e comunicação, garantindo que os habitantes das gaiolas corporativas se comportem com o decoro esperado. Criadores, inovadores e empreendedores que procurem outro endereço.
Fonte: Thomaz Wood Jr., da Carta Capital


O que é "Liberdade"?


O ano de 2009 marcou um século e meio da publicação do Sobre a Liberdade (On Liberty), de John Stuart Mill (1806-1873). Reconhecido universalmente como um dos textos fundadores do liberalismo por sua defesa intransigente do individualismo e da liberdade individual, o ensaio tem sido rotineiramente invocado – ao lado do Areopagítica (1664), de John Milton (1608-1674) – como um dos pilares da defesa da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa. Juízes, empresários de mídia, jornalistas e ONGs, dentre outros, recorrem a Mill para justificar seus votos e/ou alertar sobre as ameaças às liberdades fundamentais, oriundas da ação de seu inimigo natural, o Estado.
Por óbvio, ao se comentar um texto clássico, publicado há 150 anos, corre-se sempre o risco da simplificação e de se cometer algum tipo de anacronismo. Vale, todavia, celebrar a ocasião chamando a atenção para um aspecto pouco lembrado do Sobre a Liberdade: de onde Mill considerava que partiam as principais ameaças à liberdade dos indivíduos?
Liberdade versus autoridade
"Liberdade" talvez seja uma das palavras com o maior número de significações e, mesmo assim, certamente uma das mais presentes no pensamento chamado de moderno. Durante o período da "guerra fria", foi utilizada ideologicamente no Ocidente para demarcar duas visões de mundo em conflito e, mesmo depois do fim da União Soviética, ela continua sendo – inclusive entre nós – indiscriminadamente empregada para camuflar e/ou proteger os mais diversos tipos de interesse.
Na introdução de Sobre a Liberdade, Mill descreve as mudanças sofridas na luta entre liberdade e autoridade, ao longo do tempo. Na Antiguidade, o conflito se dava entre súditos e governantes e a liberdade era reduzida à proteção contra a tirania dos governantes, percebidos como estando sempre em posição antagônica em relação ao povo.
Com governantes eleitos e temporários, acreditou-se que a questão estava resolvida. No entanto, utilizando-se da expressão cunhada por Alexis de Tocqueville (1805-1859), Mill lembra o perigo da "tirania da maioria": a sociedade – e não o governo – passa a fazer as vezes do tirano. E aqui ele menciona o poder dos "costumes" (do latim mores), identificados como uma "segunda natureza" que, no entanto, é continuamente tomada como sendo a primeira.
No capítulo III, que trata "Da individualidade como um dos elementos do bem-estar", Mill retoma de maneira mais específica e veemente a questão do "jugo da opinião" (the yoke of opinion) – inclusive de seus diferentes conceitos –, do controle que ela exerce sobre o indivíduo e suas conseqüências. Inclui também o papel dos jornais e de seus jornalistas na formação das opiniões.
Vale a longa citação, lembrando que o texto se refere à Inglaterra vitoriana de meados do século 19:
"Nos dias de hoje, os indivíduos estão perdidos na multidão. Em política, é quase uma trivialidade dizer que agora a opinião pública governa o mundo. O único poder que merece esse nome é o das massas e o dos governos, que constituem o órgão das tendências e instintos da massa. Isso vale tanto para as relações morais e sociais da vida privada, como para as transações públicas. O que se chama de opinião pública nem sempre é a opinião da mesma espécie de público: nos Estados Unidos, o público é toda a população branca; na Inglaterra, principalmente a classe média. Porém, formam sempre uma massa, isto é, uma mediocridade coletiva. E o que é uma novidade ainda maior, a massa não recebe suas opiniões de dignitários na Igreja e no Estado, de líderes manifestos ou de livros. O que pensam é criado por homens muito semelhantes a eles mesmos, os quais se dirigem a eles ou falam em seu nome, impulsivamente, por meio dos jornais" (pág.101).
A influência de Tocqueville
John Stuart Mill, é sabido, conheceu pessoalmente, foi leitor e recebeu grande influência de seu contemporâneo francês Alexis de Tocqueville. Fez, inclusive, uma longa e detalhada resenha, publicada em duas partes, de A Democracia na América (1835-1840). Nela, Mill escreveu concordar com Tocqueville sobre o tipo de tirania a ser temido: era aquele "não sobre o corpo, mas sobre a alma".
Na sua introdução à edição da Martins Fontes (2000) de Sobre a Liberdade (utilizada como referência aqui), escrita originalmente em 1959, ao falar sobre o compromisso de Mill com a diversidade e a individualidade, Isaiah Berlin cita uma passagem de Tocqueville com a qual, afirma, certamente ele (Mill) concordaria:
"Usando de comparações, pode-se dizer que agora leem as mesmas coisas, ouvem as mesmas coisas, veem as mesmas coisas, vão aos mesmos lugares, têm suas esperanças e seus medos orientados para os mesmos objetos, têm os mesmos direitos e liberdades, e os mesmos meios de assegurá-los... Todas as mudanças políticas da época a promovem, uma vez que todas tendem a elevar o baixo e rebaixar o elevado. Toda expansão da educação a promove, porque a educação submete as pessoas a influências comuns... O aperfeiçoamento dos meios de comunicação a promove... O aumento do comércio e da manufatura a promove... A ascendência da opinião pública... forma uma massa tão grande de influências hostis à individualidade (que) nesta época o exemplo de dissidência, a mera recusa a ajoelhar-se diante do costume é por si só um serviço" (págs. XXXVII-XXXVIII).
Mais adiante, Berlin retoma as observações de Tocqueville ao falar sobre "a aguda consciência em nossa época do efeito desumanizador da cultura de massas (...) (da manipulação dos homens) pelos meios de propaganda de massas e pela comunicação de massas". E conclui que "tudo isso Mill sentiu profunda e dolorosamente". E mais, afirma que era esse, na verdade, o tema de Sobre a Liberdade e que Mill antecipou a permanência de sua relevância ao dizer "é de temer que os ensinamentos (do ensaio) conservem seu valor por muito tempo" (pág. XLVI).
Mill e os frankfurtianos
É interessante observar que Tocqueville foi também lembrado por Horkheimer e Adorno no famosoDialética do Iluminismo para caracterizar a "indústria cultural". Eles citam um pequeno trecho de conhecida passagem do A Democracia na América que trata do poder exercido pela maioria e suas conseqüências (vol. I, parte II, capítulo 7). Exatamente o trecho a que Mill fizera referência na resenha que publicou sobre o livro.
Apesar de partir de pressupostos radicalmente distintos daqueles de Mill, os frankfurtianos, no texto escrito originalmente no exílio norte-americano em 1947, estão também preocupados com a "autonomia do espírito" – cuja perda, para eles, está ocorrendo diante da transformação da cultura em mercadoria. Dizem eles:
"A análise feita há cem anos por Tocqueville verificou-se integralmente nesse meio tempo. Sob o monopólio privado da cultura `a tirania deixa o corpo livre e vai direto à alma. O mestre não diz mais: você pensará como eu: sua vida, seus bens, tudo você há de conservar, mas de hoje em diante você será um estrangeiro entre nós´. Quem não se conforma é punido com uma impotência econômica que se prolonga na impotência espiritual do individualista" (Dialética do Esclarecimento, Jorge Zahar; 1986; pág. 125).
Lições contemporâneas
A ameaça à liberdade – em particular à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa – tem sido identificada no espaço público agendado pela grande mídia como vindo exclusivamente do Estado, mesmo que estejamos vivendo em um Estado de Direito, no pleno funcionamento das instituições democráticas.
Nada mais oportuno, portanto, do que lembrar que este não era o entendimento de John Stuart Mill em Sobre a Liberdade. Para ele, o poder dos "costumes", da uniformidade do pensamento (hoje talvez ele dissesse, da opinião pública construída, sobretudo, pela grande mídia) constituía a verdadeira ameaça à individualidade, à diversidade e à pluralidade.
A liberdade de imprensa, no liberalismo de Mill, encontra sua justificativa na medida mesma em que permita a circulação da diversidade e da pluralidade de ideias existentes na sociedade – vale dizer, garanta a universalidade da liberdade de expressão individual ou do direito à comunicação –, condição sine qua non para o aparecimento da verdade, embora nada garanta que ela venha a prevalecer.
Fonte: Observatório da Imprensa