22 de fev. de 2011

O mito de Sísifo


Os deuses tinham condenado Sísifo a empurrar sem descanso um rochedo até ao cume de uma montanha, de onde a pedra caía de novo, em consequência do seu peso. Tinham pensado, com alguma razão, que não há castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança.

A acreditar em Homero, Sísifo era o mais ajuizado e mais prudente dos mortais. No entanto, segundo outra tradição, tinha tendências para a profissão de bandido. Não vejo nisto a menor contradição. As opiniões diferem sobre os motivos que lhe valeram ser trabalhador inútil dos infernos. Censura-se-lhe, de início, certa leviandade para com os deuses. Revelou os segredos deles. Egina, filha de Asopo, foi raptada por Júpiter. O pai espantou-se com esse desaparecimento e queixou-se dele a Sísifo. Este, que estava ao corrente do rapto, propôs a Asopo contar-lhe o que sabia, com a condição de ele dar água à cidadela de Corinto. Aos raios celestes, preferiu a bênção da água. Por tal foi castigado nos infernos. Homero conta-nos também que Sísifo havia acorrentado a Morte. Plutão não pôde suportar o espetáculo do seu império deserto e silencioso. Enviou os deuses da guerra, que soltou a Morte das mãos do seu vencedor.

Diz-se ainda que, estando Sísifo quase a morrer, quis, imprudentemente, pôr à prova o amor de sua mulher. Ordenou-lhe que lançasse o seu corpo, sem sepultura, para o meio da praça pública. Sísifo encontrou-se nos infernos. E aí, irritado com uma obediência tão contrária ao amor humano, obteve de Plutão licença para voltar à terra e castigar a mulher. Mas, quando viu de novo o rosto deste mundo, sentiu inebriadamente a água e o sol, as pedras quentes e o mar, não quis regressar à sombra infernal. Os chamamentos, as cóleras e os avisos de nada serviram. Ainda viveu muitos anos diante da curva do golfo, do mar resplandecente e dos sorrisos da terra. Mercúrio veio pegar no audacioso pela gola e, roubando-o às alegrias, levou-o à força para os infernos, onde o seu rochedo já estava pronto.

Já todos compreenderam que Sísifo é o herói absurdo. É-o tanto pelas suas paixões como pelo seu tormento. O seu desprezo pelos deuses, o seu ódio à morte e a sua paixão pela vida valeram-lhe esse suplício indizível em que o seu ser se emprega em nada terminar. É o preço que é necessário pagar pelas paixões desta terra. Não nos dizem nada sobre Sísifo nos infernos. Os mitos são feitos para que a imaginação os anime. Neste, vê-se simplesmente todo o esforço de um corpo tenso, que se esforça por erguer a enorme pedra, rolá-la e ajudá-la a levar a cabo uma subida cem vezes recomeçada; vê-se o rosto crispado, a face colada à pedra, o socorro de um ombro que recebe o choque dessa massa coberta de barro, de um pé que a escora, os braços que de novo empurram, a segurança bem humana de duas mãos cheias de terra. No termo desse longo esforço, medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem profundidade, a finalidade está atiginda. Sísifo vê então a pedra resvalar em poucos instantes para esse mundo inferior de onde será preciso trazê-la de novo para os cimos. E desce outra vez à planície.

É durante este regresso, esta pausa, que Sísifo me interessa. Um rosto que sofre tão perto das pedras já é, ele próprio, pedra! Vejo esse homem descer outra vez, com um andar pesado mais igual, para o tormento cujo fim nunca conhecerá. Essa hora que é como uma respiração e que regressa com tanta certeza como a sua desgraça, essa hora é a da consciência. Em cada um desses instantes em que ele abandona os cumes e se enterra a pouco e pouco nos covis dos deuses, Sísifo é superior ao seu destino. É mais forte do que o seu rochedo.

Se este mito é trágico, é porque o seu herói é consciente. Onde estaria, com efeito, a sua tortura se a cada passo a esperança de conseguir o ajudasse? O operário de hoje trabalha todos os dias da sua vida nas mesmas tarefas, e esse destino não é menos absurdo. Mas só é trágico nos raros momentos em que ele se torna consciente. Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão da sua miserável condição: é nela que ele pensa durante a sua descida. A clarividência que devia fazer o seu tormento consome ao mesmo tempo a sua vitória. Não há estino que não se transceda pelo desprezo.

Se a descida se faz assim, em certos dias, na dor, pode também fazer-se na alegria. Esta palavra não é de mais. Ainda imagino Sísifo voltando para o seu rochedo, e a dor estava no começo. Quando as imagens da terra se apegam de mais à lembrança, quando o chamamento da felicidade se torna demasiado premente, acontece qua a tristeza se ergue no coração do homem: é a vitória do rochedo, é o próprio rochedo. O imenso infortúnio é pesado de mais para se poder carregar. São as nossas noites de Gethsemani. Mas as verdades esmagadoras morrem quando são reconhecidas. Assim, Édipo obedece de início ao destino, sem o saber. A partir do momento em que sabe, a sua tragédia começa. Mas no mesmo instante, cego e deseperado, ele reconhece que o único elo que o prende ao mundo é a mão fresca de uma jovem. Uma frase desmedida ressoa então: "Apesar de tantas provações, a minha idade avançada e a grandeza da minha alma fazem-me achar que tudo está bem." O Édipo de Sófocles, como o Kirilov de Dostoievsky, dá assim a fórmula da vitória absurda. A sabedoria antiga identifica-se com o heroísmo moderno.

Não descobrimos o absurdo sem nos sentirmos tentados a escrever um manual qualquer da felicidade. "O quê, por caminhos tão estreitos?..." Mas só há um mundo. A felicidade e o absurdo são dois filhos da mesma terra. São inseparáveis. O erro seria dizer que a felicidade nasce forçosamente da descoberta absurda. Acontece também que o sentimento do absurdo nasça da felicidade. "Acho que tudo está bem", diz Édipo e essa frase é sagrada. Ressoa no universo altivo e limitado do homem. Ensina que nem tudo está, que nem tudo foi esgotado. Expulsa deste mundo um deus que nele entrara com a insatisfação e o gosto das dores inúteis. Faz do destino uma questão do homem, que deve ser tratado entre homens. Toda a alegria silenciosa de Sísifo aqui reside. O seu destino pertence-lhe. O seu rochedo é a sua coisa. Da mesma maneira, quando o homem absurdo contempla o seu tormento, faz calar todos os ídolos. No universo subtamente entregue ao seu silêncio, erguem-se as mil vozinhas maravilhosas da terra. Chamamentos inconscientes e secretos, convites de todos os rostos, são o reverso necessário e o preço da vitória. Não há sol sem sombra e é preciso conhecer a noite. O homem absurdo diz sim e o seu esforço nunca mais cessará. Se há um destino pessoal, não há destino superior ou, pelo menos, só há um que ele julga fatal e desprezível. Quanto ao resto, ele sabe-se senhor dos seus dias. Nesse instante sutil em que o homem se volta para a sua vida, Sísifo, regressando ao seu rochedo, contempla essa seqüência de ações sem elo que se torna o seu destino, criado por ele, unido sob o olhar da sua memória, e selado em breve pela sua morte. Assim, persuadido da origem bem humana de tudo o que é humano, cego que deseja ver e que sabe que a noite não tem fim, está sempre em marcha. O rochedo ainda rola.

Deixo Sísifo no sopé da montanha! Encontramos sempre o nosso fardo. Mas Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e levanta os rochedos. Ele também julga que tudo está bem. Esse universo enfim sem dono não lhe parece estéril nem fútil. Cada grão dessa pedra, cada estilhaço mineral dessa montanha cheia de noite, forma por si só um mundo. A própria luta para atingir os píncaros basta para encher um coração de homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.
 

A história de Sísifo

Mestre da malícia e dos truques, ele entrou para a tradição como um dos maiores ofensores dos deuses. Sísifo casou-se com Mérope, uma das sete Plêiades, tendo com ela um filho, Glauco.
Certa vez, uma grande águia sobrevoou sua cidade, levando nas garras uma bela jovem. Sísifo reconheceu a jovem Egina, filha de Asopo, um deus-rio, e viu a águia como sendo uma das metamorfoses de Zeus. Mais tarde, o velho Asopo veio perguntar-lhe se sabia do rapto de sua filha e qual seria seu destino. Sísifo logo fez um acordo: em troca de uma fonte de água para sua cidade ele contaria o paradeiro da filha. O acordo foi feito e a fonte presenteada recebeu o nome de Pirene e foi consagrada às Musas.
Assim, ele despertou a raiva do grande Zeus, que enviou o deus da Morte, Tânatos, para levá-lo ao mundo subterrâneo. Porém o esperto Sísifo conseguiu enganar o enviado de Zeus. Elogiou sua beleza e pediu-lhe para deixá-lo enfeitar seu pescoço com um colar. O colar, na verdade, não passava de uma coleira, com a qual Sísifo manteve a Morte aprisionada e conseguiu driblar seu destino.
Durante um tempo não morreu mais ninguém. Sísifo soube enganar a Morte, mas arrumou novas encrencas. Desta vez com Hades, o deus dos mortos, e com Ares, o deus da guerra, que precisava dos préstimos da Morte para consumar as batalhas.
Tão logo teve conhecimento, Hades libertou Tânatos e ordenou-lhe que troxesse Sísifo imediatamente para as mansões da morte. Quando Sísifo se despediu de sua mulher, teve o cuidado de pedir secretamente que ela não enterrasse seu corpo.
Já no inferno, Sísifo reclamou com Hades da falta de respeito de sua esposa em não o enterrar. Então suplicou por mais um dia de prazo, para se vingar da mulher ingrata e cumprir os rituais fúnebres. Hades lhe concedeu o pedido. Sísifo então retomou seu corpo e fugiu com a esposa. Havia enganado a Morte pela segunda vez.
Outra história a respeito de Sísifo trata do ocorrido quando Autólico, o mais esperto e bem-sucedido ladrão da Grécia (que era filho de Hermes e vizinho de Sísifo), tentou roubar-lhe o gado. Autólico mudava a cor dos animais. As reses desapareciam sistematicamente sem que se encontrasse o menor sinal do ladrão, porém Sísifo começou a desconfiar de algo, pois o rebanho de Autólico aumentava à medida que o seu diminuía. Sísifo, um homem letrado (teria sido um dos primeiros gregos a dominar a escrita), teve a idéia de marcar os cascos de seus animais com sinais de modo que, à medida que a res se afastava do curral, aparecia no chão a frase "Autólico me roubou". Posteriormente, Sísifo e Autólico fizeram as pazes e se tornaram amigos.
Sísifo morreu de velhice e Zeus enviou Hermes para conduzir sua alma a Hades. No tártaro, Sísifo foi considerado um grande rebelde e teve um castigo, juntamente com Prometeu, Títio, Tântalo e Ixíon.
Por toda a eternidade Sísifo foi condenado a rolar uma grande pedra de mármore com suas mãos até o cume de uma montanha, sendo que toda vez que ele estava quase alcançando o topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo até o ponto de partida por meio de uma força irresistível. Por esse motivo, a tarefa que envolve esforços inúteis passou a ser chamada "Trabalho de Sísifo". 

Trabalho de Sísifo

Sísifo tornou-se conhecido por executar um trabalho rotineiro e cansativo. Tratava-se de um castigo para mostrar-lhe que os mortais não têm a liberdade dos deuses. Os mortais têm a liberdade de escolha, devendo, pois, concentrar-se nos afazeres da vida cotidiana, vivendo-a em sua plenitude, tornando-se criativos na repetição e na monotonia.

15 de fev. de 2011

Bagagem cultural é mais cobrada nos vestibulares

A temporada de estudos na França proporcionou a Juliana Pacetta, de 20 anos, jornadas culturais diferenciadas, como visitas ao Museu do Louvre, um dos maiores do mundo. No retorno ao Brasil, a estudante percebeu o quanto a bagagem cultural ganhou importância nos vestibulares do País, que transformaram o conhecimento de obras de artes plásticas e filmes em conteúdos obrigatórios.

Juliana passou os últimos dias comemorando a conquista do primeiro lugar no processo seletivo do curso de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), em São Paulo. Nos últimos quatro meses, além da FGV, "questões culturais" também foram cobradas de vestibulandos da Fundação Cásper Líbero e da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), por exemplo.
A ideia é testar a visão de mundo dos candidatos, exigindo conhecimentos culturais que extrapolem o domínio das disciplinas tradicionais do ensino médio. Em geral, por meio de itens interdisciplinares, são testados conhecimentos sobre música e artes plásticas, cênicas e audiovisuais - algo que uma jornada cultural pode transmitir mais facilmente que uma aula tradicional.
"Queremos alunos diferenciados, que deduzam, reflitam, contextualizem", diz o diretor do vestibular da Faap, Jorge Miguel. "A bagagem cultural pode indicar o potencial do aluno." Por lá, candidatos a vagas em Administração, por exemplo, deveriam conhecer o filme Cidade do Silêncio (2006).
O potencial de Juliana rendeu a ela uma bolsa integral de um ano no ato da matrícula na FGV, prêmio pelo destaque no vestibular. "Com certeza, as experiências vividas no exterior e o contato com a cultura foram fundamentais", diz.
Peso maior. Professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, Ocimar Munhoz Alavarse vê como positiva a exigência do "saber cultural" nos vestibulares. "No Brasil, há uma tradição curricular muito forte e algumas disciplinas passaram a ganhar mais peso."
Alavarse ressalta, porém, que o acesso à cultura não é universal e a avaliação da bagagem cultural pode ser um critério desigual em razão das diferenças socioeconômicas. "Mas o currículo (de uma avaliação) é sempre arbitrário e depende dos critérios do avaliador."
Ao exigir em sua prova a interpretação e a contextualização de obras como Bicho, de Lygia Clark, e Banhista Enxugando a Perna Direita, de Renoir, a coordenadora do curso de Direito da FGV, Adriana Ancona de Faria, diz selecionar candidatos com a formação ideal para a instituição. "É a capacidade analítica que é avaliada, habilidade que será cobrada no curso e na vida profissional", afirma.
Foi essa proposta que atraiu Isabella Becker, 21 anos, aluna de Direito da FGV. "O vestibular indicou que buscavam alunos flexíveis, com capacidades e habilidades além do conteúdo aprendido em sala de aula", lembra.
Coordenador de vestibular da Cásper Líbero, Roberto Chiachiri crê que a capital dá ao estudante a chance de uma "formação universal". Vestibulando da Cásper, Eduardo Nattanael, 17 anos, corre em busca disso. "Não consegui (passar no vestibular), mas foi a primeira tentativa. Percebi a importância da bagagem cultural. Quem conhece é capaz de aprofundar mais nas questões relacionadas a obras de arte, peças de teatro e filmes."

Fonte:
"O Estado de S. Paulo" - 14/02/2010

Assim, não dá para perder tempo. O conhecimento de artes plásticas, cênicas e audiovisuais são importantíssimos para o vestibular e para a vida.

10 de fev. de 2011

Visite 17 museus sem sair de casa

Você teria de ir a nove países para conhecer a coleções de 17 dos principais museus do mundo, como o Hermitage, de Moscou, o MoMA de Nova York, ou o Reina Sofia, de Madri

Agora você pode ver as obras das principais galerias de arte do mundo da sua casa. É um projeto do Google que com certeza vai fazer a alegria dos amantes das Artes e da Cultura.

Explorar os museus mais famosos do mundo sem sair de casa agora já é possível. Graças à tecnologia do Google Street View, imagens de 17 museus e mais de 1000 obras de arte estão disponíveis na web em alta resolução. A National Gallery, o Van Gogh Museum e o Palácio de Versailles são alguns dos lugares que os visitantes podem conhecer acessando googleartproject.com.

Veja abaixo:

(bluebus.com.br)

O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago


           Publicado em 1991, Saramago foi questionado até mesmo pelo governo e pela Igreja sobre o livro. Já a crítica esclarecida é unânime em atribuir ao livro o título de obra-prima.

São 24 capítulos, sem numeração, nem título.

Não há muitas informações sobre a vida do jovem Cristo. Os quatro evangelhos contam a vida de Cristo (menino e homem, morto aos 33 anos), omitindo sua juventude. Saramago, portanto, parte desta lacuna para contar a seu modo a vida do jovem Cristo. Ele oferece nova versão à tão conhecida história do filho de Deus.

A carnavalização é um termo proposto por Bakhtin para explicar o procedimento que aparece em textos como este, isto é, os desvios e inversões nas narrativas consagradas pela tradição. Desta forma, é a quebra do que está sacralizado pelas normas ou tradição.

Exatamente o que ocorre nesta história contada por Saramago que humaniza absolutamente Jesus Cristo. Ele está repleto de imperfeições e vícios nada divinos, com um Deus consciente do preço que a humanidade terá de pagar para que seu poder se estabeleça entre os homens, e com um diabo impotente e aborrecido diante de seu papel, eterno e imposto por Deus, de atuar na história como um contraponto à bondade divina.

O plano de Deus, segundo Saramago, é sacrificar Jesus, como seu filho, e tornar-se o único Deus a ser glorificado na terra, acabando, assim, o politeísmo e com as demais crenças religiosas. Desta maneira, escolhe um casal na terra de forma aleatória para gerar o filho de Deus.

Estes são exemplos da carnavalização do plano de salvação:

“Então, o Senhor não me escolheu, Qual quê, o Senhor ia só passar (...), mas reparou que tu e José eram gente robusta e saudável” (SARAMAGO, 2001, p.311)

“E qual foi o papel que me destinaste no teu plano, O de mártir, meu filho, o de vítima, que é o de melhor há para fazer espalhar uma crença e afevorar uma fé.” (SARAMAGO, 2001, p.370)

A carnavalização também pode ser vista pela relação entre Deus e o Diabo.

A face de Deus demonstrada na obra é um ser egoísta, pouco interessado pelos assuntos humanos. Já o Diabo mostra interesse pela preservação da vida, seja ela qual for, imagem que contraria o modo como a tradição cristã o apresenta: o “inimigo”.
Na verdade Deus não pode existir sem o Diabo:

(...) Não me aceitas, não me perdoas, não te aceito, não te perdôo, quero te
como és, e, se possível, ainda pior do que és agora, Porquê, Porque este
Bem que eu sou não existiria sem este Mal que tu és, um Bem que tivesse
que existir sem ti seria inconcebível, a um tal ponto que nem eu posso
imaginá-lo, enfim, se tu acabas, eu acabo, para que eu seja o Bem, é
necessário que tu continues a ser o Mal, se o Diabo não vive como o
Diabo, Deus não vive como Deus, a morte de um seria a morte do outro.
(SARAMAGO, 2001, p. 392-3).

O autor faz também cair às teses sagradas da Bíblia. Assim, o "anjo da anunciação" aparece para Maria na pele de um mendigo. Os três Reis Magos transformam-se em pastores e, em vez de ofertarem ao recém-nascido ouro, incenso e mirra, dão a seus pais leite, queijo e pão presentes mais "humanamente necessários" para quem chega ao mundo numa manjedoura. Até o envolvimento de Jesus com "Maria Madalena é desmistificado no livro.

O Jesus de Saramago é um homem só e sofredor nesta Terra, com a sua insustentável humanidade, seus temores e as suas perguntas sem respostas. Assim, o Cristo de Saramago não se sacrifica pela humanidade, mas sim pela culpa de seu pai José, pois ele poderia ter poupado os inocentes de serem sacrificados por Herodes, mas preferiu fugir para salvar a vida do seu filho e assim deixou que os recém nascidos de Belém fossem mortos. Com aspectos humanos, Jesus carregou essa culpa pela vida inteira. Sua decisão de tornar-se instrumento de Deus foi motivada por essa culpa.

             A verdade é que apesar de ser considerado ateu, Saramago nunca negou a existência de Deus. Ele apenas o humanizou. Jesus é o seu reflexo no homem.

Os recursos linguísticos utilizados pelo autor são um tanto inusitados: coloca ponto onde normalmente se espera encontrar uma vírgula e vírgula onde seria normal encontrar um ponto. Maiúsculas depois da vírgula e não depois do ponto. Escreve longos parágrafos sem pontuação. Talvez seja a representação da vida, sem paradas para respirar.

Fonte: 
SARAMAGO, José. O Evangelho Segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

9 de fev. de 2011

Escrever é falar no papel

Escrever é falar no papel. Esta frase foi retirada do livro de Donald Weiss Como Escrever com Facilidade, do Círculo do Livro. Ele afirma que o medo acaba inibindo as pessoas alfabetizadas a escreverem. Já que escrever é falar no papel, o primeiro passo para perder este medo é escrever como se estivesse falando, depois vai melhorando o texto, fazendo várias versões (rascunhos) dele.
Ele conta a história de João Carlos, um funcionário que criou um produto novo e foi fazer uma exposição sobre ele à diretoria da empresa. Ele foi tão bem que acabou sendo designado a diretor de "marketing", mas Wilson, presidente da empresa, pediu que lhe entregasse o texto de sua fala na próxima semana. 
A sua promoção, um sonho acalentado há muito, acabara se transformando em suplício, pois João Carlos nunca fora um bom aluno em Português, era traumatizado, não conseguia redigir um bilhete, imagine passar no papel a fala de quase uma hora. 
No final do dia, ele tomou uma decisão, foi falar com Wilson. Desistiria da promoção e acabaria com aquele ansiedade. Wilson não aceitou a sua abdicação, pois se ele dissera tudo aquilo tão bem, sem nenhum texto previamente escrito, João Carlos era mais inteligente do que imaginara. E foi mais além, dizendo-lhe que se ele teve a capacidade de falar tão bem, conseguiria escrever também. Era só perder o medo.
Às vezes, me perguntam como consigo escrever todos os dias, "fazer bons textos", de onde veio esta facilidade. Eu digo que já construí, e continuo, muitos textos ruins, a única diferença entre mim e o inquiridor é que sou corajoso, não tenho exarcebado em mim o senso de ridículo. 
Escrever sem medo e sem preguiça, fazendo vários rascunhos, lendo em voz alta o texto escrito para descobrir as falhas (subvocalização) são técnicas indispensáveis. E o restante advém da coragem, de não ter medo de errar e de ser criticado por alguém que nunca escreveu nada, mas que está sempre pronto a destruir a criatividade do outro. 

Hélio Consolaro
Professor de Língua Portuguesa

Breve História de Quase tudo

Um aspecto curioso de nossa existência é provirmos de um planeta exímio em promover a vida, mas ainda mais exímio em extingui-la.
A espécie típica na Terra dura apenas uns 4 milhões de anos. Desse modo, se quiser permanecer aqui por bilhões de anos, você precisa ser tão volúvel quanto os átomos que o constituem. Precisa estar preparado para mudar tudo em você - forma, tamanho, cor, espécie a que pertence, tudo - , e fazê-lo vezes sem conta. Isso é mais fácil de falar que de fazer, porque o processo de mudança é aleatório. Passar do “glóbulo atômico primordial protoplasmático” (como diz a canção de Gilbert e Sullivan) para ser um ser humano moderno, ereto e consciente exigiu uma série de mutações, criadoras de novos traços, nos momentos certos, por um período longuíssimo. Portanto, em diferentes épocas dos últimos 3,8 bilhões de anos, você teve aversão ao oxigênio e depois passou a adorá-lo, desenvolveu membros e barbatanas dorsais ágeis, pôs ovos, fustigou o ar com uma língua bifurcada, foi luzidio, foi peludo, viveu sob a terra, viveu nas árvores, foi grande como um veado e pequeno como um camundongo, e milhões de outras coisas. Se você se desviasse o mínimo que fosse de qualquer dessas mudanças evolucionárias, poderia estar agora lambendo algas em paredes de cavernas, espreguiçando-se como uma morsa em alguma praia pedregosa ou lançando ar por um orifício no alto da cabeça antes de mergulhar vinte metros para se deliciar com uns suculentos vermes.
Além da sorte de ater-se, desde tempos imemoriais, a uma linha evolucionária privilegiada, você foi extremamente - ou melhor, milagrosamente - afortunado em sua ancestralidade pessoal. Considere o fato de que, por 3,8 bilhões de anos, um período maior que a idade das montanhas, rios e oceanos de Terra, cada um dos seus ancestrais por parte de pai e mãe foi suficientemente atraente para encontrar um parceiro, suficientemente saudável para se reproduzir e suficientemente abençoado pelo destino e pelas circunstâncias para viver o tempo necessário para isso. Nenhum de seus ancestrais foi esmagado, devorado, afogado, morto de fome, encalhado, aprisionado, ferido ou desviado de qualquer outra maneira da missão de fornecer uma carga minúscula de material genético ao parceiro certo, no momento certo, a fim de perpetuar a única seqüência possível de combinações hereditárias capaz de resultar - enfim, espantosamente e por um breve tempo - em você.

(Disponível em:
<http://paginatreze.wordpress.com/category/ciencia/>. Acesso em: 16 out. 2008).