3 de jul. de 2015

Quando a violência urbana chega ao limite do tolerável, ecoa em alguns setores da sociedade o grito histérico da ignorância, que contribui para gerar ainda mais brutalidade

Existem dois tipos de estúpidos, de acordo com o filósofo esloveno Slavoj Žižek. O primeiro é o sujeito superinteligente que simplesmente não compreende muito bem a realidade para além da obviedade literal. Ele consegue entender a situação do ponto de vista lógico, simplesmente ignora a existência de regras sociais implícitas num certo jogo linguístico. Suponham, para ilustrar a ideia, alguém respondendo com sinceridade a pergunta: tudo bem?  O segundo tipo é aquele perfeitamente capaz de se identificar com o senso comum. Alguém que encontra a correspondência absoluta entre um dado de identificação social e si mesmo. Trata-se do sujeito que, sem qualquer constrangimento, absorve discursos, vocabulários, títulos e funções terceirizados, e passa a reproduzi-los como opiniões autenticamente próprias. O perfeito burocrata, por exemplo. Algo muito próximo do que Sartre chamou de má fé. A fuga para o “em si”, ou melhor, uma estratégia frustrada de fugir da angustia da decisão recolhendo-se na insignificância de uma vivência terceirizada. 
  • Se você não se enquadra em nenhuma das duas categorias, provavelmente já percebeu onde quero chegar. Não se sabe ao certo o autor ou mesmo quando começou a circular a popular expressão “bandido bom é bandido morto”. Lembro ter escutado a primeira vez no começo dos anos 90. Naquela altura, ela já era repetida pelo mesmo perfil dos que hoje gostam de repeti-la: sujeitos com muita pose e alguma limitação cognitiva. Ela foi francamente proclamada em todas as ocasiões onde a violência urbana pareceu ter chegado ao limite do tolerável.
    Nessa semana, graças à divulgação de boçalidades na internet (principalmente nas redes sociais), a frase voltou, acompanhada dos muitos elogios ao grupo de “motoqueiros” que resolveu fazer justiça” ao prender um “pivete” pelo pescoço em um poste no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro. O adolescente de 15 anos cometia crimes na região – ele tinha ficha na polícia, já havia praticado dois furtos e sido autuado também por agressão. Na última segunda (3), o rapaz foi surpreendido por um grupo de, segundo ele, 30 homens musculosos, quando andava por uma das ruas do bairro. Ele e um amigo foram espancados pelo grupo e acabou preso, nu, pelo pescoço, em um poste, por uma tranca de bicicleta.

    Violência por violência
    A grande maioria dos defensores dos “justiceiros de moto” -- como teriam se intitulado na noite da agressão -- afirma que chegou a hora de fazer justiça, que a ineficiência secular da policia em coibir esse tipo de delito, ou o aparecimento desses assaltantes, é tão flagrante que a única saída é maior rigor. Sugerem, entre outras coisas, que as leis sejam mais duras e que a maioridade penal seja reduzida. Normalmente é prudente evitar generalizações, mas nesse caso é impossível. Estamos tratando de um conjunto de indivíduos arrebanhados por um mesmo discurso superficial, felizes por encherem o peito e repetirem a fatídica sentença como se isso os dignificasse pro si só como autoridades capazes de discernir entre bandidos e gente do bem. Gente que, de fato, está convencida de que complexas relações sociais possam ser reduzidas a essa dicotomia simplista.  
    Não bastasse o orgulho ingênuo de se sentir grandioso por repetir frases de efeito, a premissa é absolutamente equivocada. Em primeiro lugar, a grande maioria dos gênios que assim “pensam” se coloca contra os bandidos em oposição a uma esquerda multiculturalista que abraça o criminoso. Como se a dialética da violência fosse resumida por uma dualidade de tal natureza. Como lembra Žižek, não existem apenas respostas erradas para os problemas, mas perguntas erradas. E quando colocado de forma equivocada, o problema jamais encontrará qualquer resposta coerente. Acho que não preciso perder meu tempo aqui explicando porque a escolha nessa história não é atacar ou defender algum delinquente. Se alguém te disser algo como: tem pena? Leva pra casa – não diga nada, não alimente o animal. Apenas saiba que está falando com alguém com problemas de natureza moral e cognitiva.
    Em segundo lugar, convém lembrar os mais entusiasmados que protelar tolerância zero não corresponde ao que fizeram os países tomados como exemplares por essa turma. Holanda ou Suécia, que sistematicamente vêm reduzindo sua população carcerária, jamais adotaram medidas de tal natureza. Eu duvido que os defensores de leis mais rígidas no Brasil sejam capazes de citar um único país cuja violência fora resolvida pela reação enérgica da polícia e de suas leis. Os Estados Unidos, que tomaram esse caminho, hoje contam com a maior população carcerária do planeta. Além disso – sejamos honestos -bandido bom é bandido morto já foi incorporado como diretriz informal da policia há muito tempo. A polícia americana pode ser bastante truculenta, mas não é páreo para a paulista, que mata mais e com uma população oito vezes menor. A PMERJ não fica atrás. Em 2013 a OAB/RJ lançou a campanha “Desaparecidos da Democracia” no qual mostram que mais de dez mil pessoas foram mortas sob suspeita de confronto com a polícia entre 2001 e 2011. Vale lembrar que o conceito de confronto para a PM é bastante amplo. A opção por mais truculência, mais violência e intolerância não tem ajudado nem os próprios policiais, já que, em média, a chance de um policial morrer no Brasil é três vezes maior que em outros países. Ou seja, essa estratégia de fazer e acontecer pelas armas talvez tenha um grande impacto na boca de políticos que fingem estar fazendo alguma coisa quando mandam a policia subir o morro para matar pobre ou de machões justiceiros que tentam convencer seu nicho da própria masculinidade, mas certamente não anda protegendo nem cidadão, nem o policial.
               
    Facebook e os reprodutores do senso comum

    Jacob Burckhardt, historiador suíço do século XIX, dizia que um dos problemas da modernidade era que “enquanto as condições materiais da sociedade ficam mais complexas, suas relações sociais se tornam mais cruas”. Um dos sintomas do que ele chamou de brutal simplificação social dizia respeito ao fato das pessoas se projetarem categoricamente em identidades fixas. Não surpreende que um sujeito autoproclamado de bem, se sinta não apenas superior, mas também incumbido da tarefa de limpar a sociedade daquilo que julga ser o problema.
    Na plateia, enfileirados, estão os reprodutores do senso comum, prontos para proclamarem corajosas palavras de ordem no seu Facebook (!). O clima parece entusiasmar a cooperação prática, e todos então se sentem seduzidos a oferecerem suas sugestões logo após proclamarem seu mantra:bandido bom é bandido morto. O que se segue é um conjunto de frases rabiscadas pelo contra senso e apresentadas como prognóstico de solução. “Não é a melhor justiça, mas é melhor do que justiça nenhuma!”, “é porque não foi contigo! Quando for, você vai querer fazer o mesmo com eles”.... Como se não bastasse a ignorância ao admitir publicamente um jargão protofascista como sua própria opinião, o discurso machão não se caracteriza como um erro de cálculo, mas como cálculo nenhum. A reprodução automática endossa passivamente um comportamento mais do que praticado, mas que salta aos olhos de um ignorante dessa natureza como uma ilusão de retribuição pelas injustiças que testemunha diariamente. Trata-se, portanto, de um delírio de vingança traduzido por um entendimento rasteiro sobre interações sociais.
    Como gostava de lembrar George Orwell, “a vingança é um ato que se quer cometer quando se está impotente e porque se está impotente”. Nesse caso, uma dupla impotência. A primeira, assumida, diz respeito à constatação de que existe injustiça. Em outras palavras, que de fato estamos cercados de uma estrutura social nociva que normaliza patologicamente um sentimento perene de injustiça. A segunda se refere precisamente à impossibilidade desse tipo de discurso oferecer qualquer diagnóstico coerente. Ele é perfeitamente capaz de identificar a violência mais óbvia, aquela que se manifesta como perturbação da ordem, mas falha miseravelmente em perceber que a própria ordem depende de muita violência para se impor. Pense quanta violência é necessária para manter estável e constante a grosseira distribuição de renda no Brasil.
    Para que esse (des) equilíbrio absurdo se mantenha, também é necessário sujeitos brilhantes como esses que repetem o jargão e discutem soluções para o Brasil em redes sociais. Na topologia do óbvio, criam a sensação de movimento, de que algo precisa ser feito, de preferência algo muito radical. Na escola do bom senso, onde juram ter se formado, são sabedores de verdades sociológicas de bem. No fim, a ilusão de movimento sustenta um status quo ad aeternum.
    No país com a segunda pior distribuição de renda do mundo, ninguém sabe o que são direitos humanos – já que nossos gênios sugerem que eles existem exclusivamente para proteger criminosos – mas todo mundo conhece o código de defesa do consumidor e onde fica o PROCON mais próximo. Todos aprenderam a comprar conscientemente assistindo ao Fantástico. O não consumidor é também o não cidadão. Chegamos ao ponto de termos esse ponto de vista abertamente defendido no legislativo pela fabulosa Leila do Flamengo, que não tem qualquer constrangimento em admitir: “Defendo as famílias e os moradores, não os desocupados”, ao lembrar seus eleitores que mendigos não são cidadãos.
    Ao querer acertar as contas com seus criminosos, escapa ao cálculo dos defensores passivos da máxima bandido bom é bandido morto que também são eles, os bandidos, resultado direto de uma estrutura social covarde e abjeta, montada historicamente por tipos sociais obcecados por uma ilusão de ordem. Falta, portanto, clareza e abstração suficiente para que o sujeito se dê conta de que mais de que não apenas está defendendo como novidade algo que há muito ocorre, como está brigando de forma quixotesca pela manutenção da mesma estrutura que supõe condenar. Os vigilantes do bairro do Flamengo nada mais são do que a repetição trágica de formas análogas de polícia privada, como as milícias que há um tempo circulam no imaginário urbano carioca.  Justiça, a quem interessar, é algo bem diferente disso tudo.
  • Fonte:
  • Bruno Garcia
  • Revista de História.com.br


A Geração X está chutando o balde

Essa semana recebi um e-mail de despedida de uma amiga e parceira de trabalho. Ela vendeu sua parte na sociedade da empresa que ela mesma havia montado, anos atrás, para tirar um período sabático. Vai para a Europa estudar gastronomia e fotografia, suas duas paixões.
Não é a primeira nem última amiga minha, por volta dos 35 anos, com uma carreira bem sucedida e vida estável, que toma essa decisão. Uns três anos atrás, um amigo próximo um dia disse adeus ao emprego que tinha. Todos ficaram meio surpresos. O cara trabalhava há mais de uma década em grandes empresas, era respeitado e tinha uma vida confortável no Rio de Janeiro. Mas encheu o saco. Resolveu estudar Gestalt, voltou pra Florianópolis – sua cidade natal – e abdicou de grande parte do conforto em busca do que o faria feliz de verdade. Ele nunca mais fez uma apresentação de power point na vida, usa o excel apenas para controlar seus gastos mensais e esbanja um brilho nos olhos toda vez que nos vemos. 
Fato é que histórias como essas têm sido cada vez mais comuns na minha geração. Enquanto todos se preocupam com a urgência e ambição da Geração Y, a Geração X, imediatamente anterior, está repensando seus conceitos e valores. Fomos criados acreditando que uma vida feliz era falar línguas, fazer carreira, trabalhar a vida inteira numa ou duas grandes empresas, comprar o apartamento próprio, construir uma família para sempre e ir pra Disney (ou Paris) uma vez por ano. Uma vida estável e fixa, sem rompantes de aventura.
Acontece que grande parte da Geração X chegou aos 30, 40 anos e descobriu que para juntar meio milhão e dar entrada, com sorte, num apartamento modesto que irá pagar até seus 60 anos, o caminho é longo e o preço é alto, bem alto. Os poucos que conseguem, heroicamente, conquistar seus bens e sonhos sem a ajuda dos pais, estão exaustos. Olham em volta e mal têm tempo de curtir os filhos ou as férias exóticas que sonham (e têm dinheiro para tirar) para a Tailândia, Marrocos ou Havaí. Há também aqueles que ficaram tão ocupados em conquistar aquilo que lhes foi prometido que deixaram para “daqui a pouco” os filhos, os hobbies e a felicidade e perceberam, agora, que “desaprenderam a dividir”.
No meio disso, veio essa sedutora mobilidade contemporânea, mostrando a nós o que nossos pais ainda não podiam nos ensinar, que é possível existir estando em qualquer lugar e que não é uma mesa de escritório ou um cartão de visitas que nos faz mais nobre, mas sim aquilo que de melhor podemos oferecer ao mundo. Só que descobrimos isso depois de passarmos grande parte da nossa juventude preocupados em nos sustentar, sermos bem sucedidos, conquistar prestigio e reconhecimento. Para, enfim, ter a liberdade de chutar o balde e sair por aí…

Esse texto foi publicado pela Fabiana Gabriel na Revista Carne Seca 
Retirado do site Vagabundo Profissional Blog