31 de jul. de 2012

Economia verde, economia inclusiva


O documento da ONU para a Rio+20 continha de positivo o reconhecimento de que a crise atual é estrutural, transcende os aspectos econômicos e financeiros, e resulta do esgotamento e das fragilidades do atual modelo capitalista de desenvolvimento.
Se o diagnóstico estava correto, a medicação agrava o estado do doente: a economia verde.
Esta economia não foge ao paradigma neoliberal de mercantilização dos recursos naturais. No frigir dos ovos, prioriza o capital privado.
A economia inclusiva ou sustentável procura atender as necessidades e direitos de todos os seres humanos; promove a distribuição equitativa da riqueza e das oportunidades para a geração de renda e o acesso a bens e serviços públicos; e assegura, assim, condições de vida digna a toda a população, erradicando a pobreza e reduzindo as desigualdades sociais.
A crise atual é um momento privilegiado para se avançar na transição para novos modelos de governança, capazes de redirecionar os diversos capitais na criação de oportunidades de negócios e empregos que representem alternativas de desenvolvimento sustentável e sustentado.
Frente a esse cenário, o Instituto Ethos propõe Compromissos de Ação, entre os quais vale destacar: buscar a ecoefetividade de nossas atividades, por meio da redução do consumo total e da intensidade de insumos (como água e energia); reduzir emissões de gases de efeito estufa e mitigar seus efeitos já inevitáveis; investir no desenvolvimento de novas tecnologias, processos, produtos e modelos de negócio, pautados pelos princípios da sustentabilidade.
Propõe ainda o desenvolvimento territorial sustentável, contribuindo para erradicar a miséria e a pobreza; trabalhar por uma economia a serviço do desenvolvimento humano; implementar políticas e ações nas empresas e cadeias produtivas, visando ao desenvolvimento do capital humano e social, com ênfase equivalente à aplicada aos capitais econômico e financeiro, e a redução das desigualdades de oportunidades e remuneração em razão de origem social, racial, étnica, geracional ou de gênero.
Isso requer melhoria da governança e promoção da transparência e integridade, além do compromisso de trabalhar pela erradicação da corrupção e pelo estabelecimento de novas arquiteturas institucionais que prezem pela participação plural dos diversos atores sociais.
Há que enfatizar a importância do aperfeiçoamento dos mecanismos de promoção da integridade e da transparência dos processos de planejamento, decisão e operação, públicos e privados; e empenhar-se para o aperfeiçoamento do sistema político e da democracia.
É preciso também contribuir com conhecimentos e competências de modo a aprimorar as políticas públicas e fortalecer a gestão pública e dos mecanismos de controle e participação social, bem como exercer cidadania ativa e fiscalizadora, tanto nos processos eleitorais quanto durante os mandatos eletivos.
Fonte
Por:
Frei Betto, Adital.

30 de jul. de 2012

O retorno dos filósofos comunistas


Ler Marx e escrever sobre Marx não faz de ninguém comunista, mas a evidência de que tantos importantes filósofos estão reavaliando as ideias de Marx com certeza significa alguma coisa. Depois da crise econômica global que começou no outono [nórdico] de 2008, voltaram a aparecer nas livrarias novas edições de textos de Marx, além de introduções, biografias e novas interpretações do mestre alemão.
Por mais que essa ressurreição [2] tenha sido provocada pelo derretimento financeiro global, para o qual não faltou a empenhada colaboração de governos democráticos na Europa e nos EUA, esse ressurgimento [3] de Marx entre os filósofos não é consequência nem simples nem óbvia, como creem alguns. Afinal, já no início dos anos 1990s, Jacques Derrida [4], importante filósofo francês, previu que o mundo procuraria Marx novamente. A previsão certeira apareceu na resposta que Derrida escreveu a uma autoproclamada “vitória neoliberal” e ao “fim da história” inventados por Francis Fukuyama.
Contra as previsões de Fukuyama, o movimento Occupy e a Primavera Árabe demonstraram que a história já caminha por novos tempos e vias, indiferente aos paradigmas econômicos e geopolíticos sob os quais vivemos. Vários importantes pensadores comunistas (Judith Balso, Bruno Bosteels, Susan Buck-Mors, Jodi Dean, Terry Eagleton, Jean-Luc Nancy, Jacques Rancière, dentre outros), dos quais Slavoj Zizek é o que mais aparece, já operam para ver e mostrar como esses novos tempos são descritos em termos comunistas, quer dizer, como alternativa radical.
O movimento acontece não só em conferências de repercussão planetária em Londres [5], Paris [6], Berlin [7] e New York [8] (com participação de milhares de professores, alunos e ativistas) mas também na edição de livros que se convertem em best-sellers globais como Império [9] de Toni Negri e Michael Hardt, A Hipótese Comunista [10] de Alain Badiou e Ecce Comu [11] de Gianni Vattimo, dentre outros. Embora nem todos esses filósofos apresentem-se como comunistas – não, com certeza, como o mesmo tipo de comunista –, a evidência de que o pensamento comunista está no centro de seu trabalho intelectual autoriza a perguntar por que há hoje tantos filósofos comunistas tão ativos.
A ressurgência do marxismo
Evidentemente, nessas conferências e nesses livros, o comunismo não é proposto como programa para partidos políticos, para que reproduzam regimes historicamente superados; é proposto como resposta existencial à atual catástrofe neoliberal global.
A correlação entre existência e filosofia é constitutiva, não só da maioria das tradições filosóficas, mas também das tradições políticas, no que tenham a ver com a responsabilidade sobre o bem-estar existencial dos seres humanos. Afinal, a política não é apenas instrumento posto a serviço da vida burocrática diária dos governos. Mais importante do que isso, a política existe para oferecer guia confiável rumo a uma existência mais plena. Mas quando essa e outras obrigações da política deixam de ser cumpridas pelos políticos profissionais, os filósofos tendem a tornar-se mais existenciais, vale dizer, tendem a questionar a realidade e a propor alternativas.
Foi o que aconteceu no início do século 20, quando Oswald Spengler, Karl Popper e outros filósofos começaram a chamar a atenção para os perigos da racionalização cega de todos os campos da atividade humana e de uma industrialização sem limites em todo o planeta. Mas a política, em vez de resistir à industrialização do homem e da vida humana, limitou-se a seguir uma mesma lógica industrial. As consequências foram devastadoras, como todos já sabemos.
Hoje, as coisas não são essencialmente diferentes, se se consideram os efeitos igualmente calamitosos do neoliberalismo. Apesar do discurso triunfalista do neoliberalismo, a crise das finanças globais neoliberais do início do século 21 serviu para mostrar que nunca as diferenças de bem-estar material foram maiores ou mais claras que hoje: 25 milhões de pessoas passam a viver, a cada ano, em favelas urbanas; e a devastação dos recursos naturais do planeta já provoca efeitos assustadores em todo o mundo, tão devastadores que, em alguns casos, já não há remédio possível.
Por isso tudo, relatório recente do ministério da Defesa da Grã-Bretanha [12] previa, além de uma ressurgência de “ideologias anticapitalistas, possivelmente associadas movimentos religiosos, anarquistas ou nihilistas, também movimentos associados ao populismo; além do renascimento do marxismo”. Essa ressurgência do marxismo é consequência direta da aniquilação das condições de existência humana resultantes do capitalismo neoliberal como o conhecemos.
O que é “comunismo”?
Por mais que a palavra “comunista” tenha adquirido inumeráveis significados distintos, ao longo da história, na opinião pública atual ela significa uma relíquia do passado e é associada a um sistema político cujos componentes culturais, sociais e econômicos são todos controlados pelo estado.
Por mais que talvez seja o caso na China, Vietnã ou Coreia do Norte, para a maioria dos filósofos e pensadores contemporâneos esse significado é insuficiente, está superado, é efeito de propaganda maciça e, sobretudo, é diariamente desmentido pela evidência de que o mundo não estaria vivendo uma “ressurgência” do marxismo, se o comunismo marxista fosse apenas isso.
Como diz Zizek, o comunismo de estado não funcionou, não por fracasso do comunismo, mas por causa do fracasso das políticas antiestatizantes: porque não se conseguiu quebrar as limitações que o estado impôs ao comunismo, porque não se substituíram as formas de organização do estado por forma ‘diretas’ não representativas de auto-organização social.”
O comunismo, como ideário antiestatizante das oportunidades realmente iguais para todos, é hoje a melhor hipótese, ideia e guia  para os movimentos políticos libertários antipoder, como os que nasceram dos protestos em Seattle (1999), Cochabamba (2000) e Barcelona (2011).
Por mais que esses movimentos lutem em nome de causas e valores específicos e diferentes entre si (contra a globalização econômica desigualitária, contra a privatização da água, contra políticas financeiras danosas), todos lutam contra o mesmo adversário: o sistema de distribuição não igualitária da propriedade, em democracias organizadas pelos princípios impositivos do capitalismo.
Como o demonstram a pobreza sempre crescente e o inchaço das favelas, este modelo deixou para trás todos os que não foram “bem-sucedidos” segundo suas regras, produzindo novos comunistas.
Comunismo e democracia
Em resumo, enquanto Negri e Hardt [13] buscam no “comum” (quer dizer, nos modos pelos quais a propriedade pública imaterial pode ser propriedade dos muitos), e Badiou busca nas insurreições (em ações como a da Comuna de Paris) [14], a possibilidade de se alcançarem “formas de auto-organização” não estatais, quer dizer, a possibilidade de formas comunistas, Vattimo (e eu) [15] sugerimos que todos examinemos os novos líderes democraticamente eleitos na Venezuela, Bolívia e outros países latino-americanos.[16]
Se esses líderes conseguiram chegar ao governo e começar a construir políticas comunistas sem insurreições violentas, não foi por terem chegado ao mundo político armados por fortes conteúdos teóricos ou programáticos; mas por suas fraquezas.
Diferente da agenda pregada pelo “socialismo científico”, o comunismo “fraco” (também chamado “hermenêutico” [17]) abraçou não só a causa ecológica [18] do de-crescimento, mas também a causa da decentralização do sistema burocrático estatal, de modo a permitir que se constituam conselhos independentes locais, que estimulam o envolvimento das comunidades.
Que ninguém se surpreenda se muitos outros filósofos, atraídos para o comunismo pelas ações e políticas de destruição da vida do neoliberalismo, também vislumbrarem a alternativa [19] que se constrói na América Latina. Especialmente, porque as nações latino-americanas demonstraram que os comunistas podem ter acesso ao poder também pelas vias formais da democracia.
Fonte:
Por
Por Santiago Zabala, na Al Jazeera | Tradução: Vila Vudu
* Santiago Zabala é pesquisador e professor de filosofia da Institució Catalana de Recerca i Estudis Avançats, ICREA[1], da Universidade de Barcelona. 
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[9] Império, 2005, Rio de Janeiro: Ed. Record, 501 p.
[10] A hipótese comunista, 2012, São Paulo: Boitempo Editorial, 152 p.
[17] Hermenêutico: adj. Relativo à interpretação dos textos, do sentido das palavras. (…) 3) Rubrica: semiologia. Teoria, ciência voltada à interpretação dos signos e de seu valor simbólico. Obs.: cf. semiologia  4) Rubrica: termo jurídico. Conjunto de regras e princípios us. na interpretação do texto legal (…). Etimologia: gr. herméneutikê (sc. tékhné) ‘arte de interpretar’ < herméneutikós,ê,ón ’relativo a interpretação, próprio para fazer compreender’ [NTs, com verbete do Dicionário Houaiss, emhttp://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=hermen%EAutica&cod=101764]

29 de jul. de 2012

A tartaruga e a metralhadora automática


Se você já parou para observar a indignidade de uma revista de aeroporto, como, por exemplo, a mãe que vê a mamadeira do seu bebê ser confiscada ou o idoso que mal se aguenta em pé, tendo a bengala desmontada, pode ter ponderado: este é o custo da segurança. Mas se você foi a uma sessão de Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge no cinema de Times Square na sexta-feira à noite (20/7), faria outra ponderação. A presença ostensiva de policiais armados e discretos, de sabe-se lá quantos à paisana, não garantia proteção contra o que o comandante da polícia de Nova York admitiu temer: o crime copycat, cometido por alguém tentando uma vaga sob o holofote da infâmia do atirador de Aurora.
via crucis em que se transformou a vida do passageiro aéreo é um produto do terrorismo, ainda que não possa ser explicada apenas por ele. Já o risco que corremos na plateia do cinema, na sala de aula de Virginia Tech e Columbine, ou no bar do Alabama, onde outro dia um homem entrou atirando e acertou em 17 pessoas, é filho legítimo de uma convicção americana: a liberdade individual só sobrevive numa democracia se você puder comprar uma arma automática com o poder de disparar 600 tiros por minuto.
Logo depois do massacre de Aurora, uma deputada do Partido Republicano pelo estado do – adivinhem? – Texas, declarou que a tragédia foi causada “pelos ataques às crenças judaico-cristãs” e concluiu o pronunciamento com a pérola: “Com tanta gente dentro do cinema, por que não havia alguém armado para reagir contra o atirador?” Voltemos ao Velho Oeste, ela parece recomendar.
“A melhor segurança de um país livre”
No ano passado, uma pesquisa do Instituto Gallup revelou que os registros de porte de arma dispararam nos Estados Unidos durante o governo Obama. Comerciantes que mal dão conta das encomendas de munição acreditam que a demanda se deve à certeza de que o presidente vai tentar passar leis de controle de porte de armas. Barack Obama nunca demonstrou a menor disposição de assumir o risco eleitoral de mexer no vespeiro do porte de arma. Deixo ao leitor a conclusão sobre a diferença entre a percepção e a realidade.
A trilogia do Batman, dirigida por Christopher Nolan, termina, mas a sequência do reality show de horror dos assassinatos em massa com armas de fogo tem reprise garantida graças à interpretação obscena da Segunda Emenda da Constituição americana: “Sendo necessária à segurança de um Estado livre a existência de uma milícia bem organizada, o direito do povo de possuir e usar armas não poderá ser impedido.”
A emenda, redigida por James Madison, em 1789, tinha o objetivo de acalmar o temor dos anti-federalistas contra o abuso de poder do governo federal do país recém-fundado. O texto original dizia: “O direito do povo de portar armas não deve ser violado; uma milícia bem armada e bem regulada é a melhor segurança de um país livre.”
A falta de coragem do Partido Democrata
Não passou pela cabeça dos fundadores dos Estados Unidos que eles estavam defendendo o porte de arma privado ou os direitos dos caçadores.
O assassino de Aurora não precisava de escopeta e centenas de rodadas de munição para acertar numa rolinha e morava num complexo residencial universitário onde a manutenção da segurança não lhe compete. Ainda assim, comprou armas, explosivos e armadura militar no exercício escatológico de liberdade que é celebrado pela deputada texana mentecapta. Se eu pisar numa calçada nova-iorquina com o copo de vinho que acabei de pedir num bar, posso ser convocada para me explicar diante de um juiz.
O inesgotável arsenal do lobby das armas para acertar políticos e a falta de coragem do Partido Democrata para enfrentar a carnificina não serão abalados pelo que aconteceu na sessão do Batman.
Até o próximo massacre.
Fonte:
Por:
Lúcia Guimarães, do Estado de S.Paulo.

a desconversão humana


Tentou a noite toda escrever algo. A tela em branco imprimia a sua crise duradoura.
Um escritor sem ideias. Café, cigarro, doses de uísque, nada serviram.
Tentara já vinho, conhaque, charuto, macrobiótica.
Há meses, o bloqueio criativo apareceu. Noites em busca de inspiração. Precisava escrever, era o seu ganha-pão, seu dom, sua vida, se dedicara anos. Nada.
Deixou o computador ligado e foi dormir.
O que leva um escritor a parar de escrever?
Por que Rimbaud, depois de criar a poesia moderna, sumiu?
E Sallinger, que escreveu apenas quatro livros? Auto exigência? Atração pelo nada.
“Escrever também é não falar, é se calar, uivar sem ruído”, dizia Marguerite Duras.
Síndrome de Bartleby é a paralisia que atormenta os escritores. Inspirada no personagem de Melville (Moby Dick), copista de um cartório que fica na sua mesa sem fazer absolutamente nada, sem ir a lugar algum. Nem mesmo se alimentar.
No dia seguinte, lá estava a frase metafísica na tela do seu computador: “O tempo só corre para quem se preocupa com a perda dele.” Quem digitou?
Heráclito? Sim, lembrava os pensamentos circulares do pré-socrático. Será que digitara num delírio torturado pelo sono e desespero? Surto de sonambulismo?
Sua diarista digitou? Sua diarista não aparecia há dias.
Olhou para o lado e viu seu gato vira-lata deitado no canto da mesa, com as orelhas em pé, encarando-o de relance. Não é possível!
O gato costumava passear pela mesa sempre que tentava escrever. Por vezes ficava em frente do monitor, tapando a visão. Às vezes brincava com o cursor do mouse. Em outras passeava sobre o teclado.
Suas patas apertavam e digitavam [pateavam] apenas frases como “procslxkdjshsdh gfgfggf czvc”.
Foi você?
Ele miou de volta.
Repetiu a experiência à noite. Deixou o computador ligado, fechou a porta do quarto, deitou-se. Não conseguia dormir. Tentava escutar os passos do gato pela casa. Mas o silêncio era o maior ruído.
Na manhã seguinte, outra frase digitada: “Esperar é também realizar.”
Olhou para o gato. Parecia dormir profundamente. Sua respiração, ofegante. O batimento cardíaco dos gatos é superior. Ou estava exausto?
Mas para quem contar que desconfiava que seu gato mandava mensagens quando ele ia dormir. Não podia para o seu editor, pois fugia dele, que cobrava um romance cujo adiantamento já fora pago. Nem ao melhor amigo, que esperava há meses o prefácio não escrito de um livro quase no prelo.
Ninguém sabia da sua síndrome. Vivia o tormento inventando desculpas, “já estou terminando”, “deu pau no computador e perdi tudo”.
Esperava o milagre da criação, a voz de Deus ou do diabo falando através dele, o despertar do inconsciente, emitindo sinais que chegariam aos seus dedos para movê-los em busca de uma história.
Fez as malas. Encheu a casa com potes de água e ração da melhor qualidade. Deixou o computador ligado. Escondeu os brinquedinhos do gato, para que não houvesse distração. Até limpou a mesa, para que seu suposto ghost writer felídeo tivesse a ordem necessária. Despediu-se com carinho. E foi para um flat pulguento do centro da cidade.
Passou quatro noites sem sair do quarto, fumando sem parar, ansioso pelo resultado da experiência. E preocupado. Seria seu gato um escritor que precisava da presença do dono para criar. Ou, como a maioria dos gênios, a paz, o silêncio e a solidão são o fogo que ferve as ideias e cozinha a arte?
Ao voltar para casa, encontrou-a toda revirada, resultado da solidão de um vira-lata carente: sofá arranhado, livros derrubados, papel higiênico desenrolado. Seu pequeno animal correu para saudá-lo, miou muito, trançou por suas pernas, saudoso.
Passo a passo, caminhou até a mesa de trabalho. Tela em branco. Apertou o Ctrl home. Mais de 78 páginas escritas em formato Word, letra areal, tamanho 12.
A Desconversão Humanachamava-se a obra. Que título pretensioso, pensou.
Riu sozinho. O que está acontecendo? Quem é você? Perguntou para o bichano que se acomodava no seu colo e ronronava.
Leu. Um tratado sobre a solidão e de como todas as possibilidades de busca pela fé e um sentido para a vida criaram um efeito contrário, tornando o homem isolado e inapto a conviver com a própria consciência.
Segundo o gato writer, a criação de uma moral, a absorção de deveres e tabus, embrulharam a nossa essência. “Deve-se viver o nada”, escreveu.
Maravilhado, apesar de não ter bagagem para compreender tudo, enviou por e-mail, sem nenhum comentário, apenas escrito “livro novo” no assunto, para o seu editor.
A resposta veio no dia seguinte: “Virou autor de autoajuda?”. Que tosco e insensível editor. Que encaminhou para o selo deste gênero da editora, que aprovou o manuscrito, revisou e entregou para o departamento de marketing, que preparou o lançamento em quatro meses.
Resenhas? Apenas num jornal de bairro e numa revista literária cristã.
Porém, pouco a pouco, o boca a boca interferiu no processo.
A Desconversão Humana em oito meses entrou para a lista de bestsellers, categoria não ficção.
Em oito semanas, atingiu o topo da lista.
Seu telefone não parou mais.
Queriam entrevistas, palestras, explicações. Editoras e agentes estrangeiros o procuraram.
O livro foi traduzido e publicado em 65 países. Em todos eles, sucesso.
Logo começaram a surgir explicações e versões resumidas.
Um escritor pilantra irlandês lançou Como Entender a Desconversão Passo a Passo. A editora propôs uma versão infantil ilustrada. Um poeta do Mato Grosso lançou O Bê-á-bá da Desconversão. Um indiano escreveu A Desconversão Tântrica. Um sueco, A Desconversão Líquida.
Sua vida não teve mais sossego.
Por onde andava, tinha que dar autógrafos e tirar fotos em celulares.
Seu e-mail estava entupido: pedidos de entrevistas, seminários e casamentos. Seus amigos literatos o ignoraram, dominados por preconceitos contra livros de sucesso.
Familiares vieram pedir dinheiro emprestado.
Estressado, decidiu se isolar e mudar para uma praia deserta, para um bangalô sem luz elétrica, e viver recluso.
Claro. Levou o gato com ele. Que nunca mais pode escrever.
Mas se esbaldou: natureza e peixes.

Fonte:
Por 
Marcelo Rubens Paiva
blogs.estadao.com.br/marcelo-rubens-paiva

“Mãe, eu quero. Você compra?”


A frase do título, que muitas vezes culmina em uma discussão, tem feito parte do dia a dia da maioria das famílias brasileiras nos últimos tempos. Discutir os limites das crianças frente ao que é apresentado nas televisões, via publicidade, é algo que muitas vezes está além do alcance das mães, pais e até educadores. Não raro vemos matérias, baseadas em pesquisas ou estudos psicológicos, que desvendam os caminhos para a atuação, para não dizer manipulação e controle, sobre o público infantil numa tentativa de reforçar o apelo de compra.
Contrariando um caminho trilhado, há anos, por diversos países com democracias consolidadas, como a Suécia, Alemanha, Austrália, Espanha (Catalunha), Chile, Estados Unidos, Holanda, Nova Zelândia, Portugal e Reino Unido, o Brasil continua permitindo que a publicidade seja direcionada ao público infantil. Mesmo que a criança e o adolescente sejam considerados públicos prioritários pela Constituição brasileira e reforçado no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), eles continuam sendo alvo das propagandas e do merchandising, instrumentos da publicidade,que os utilizamcomo mecanismo de “fidelização” de um futuro consumidor e, ultimamente, definidor de compras da família, numa estratégia de infantilizar o adulto e dar uma ideia de maturidade às crianças, numa troca de responsabilidades vil.
O que é mais estranho é que todas essas ações, que são consideradas violações de direitos, dão-se no espaço público do audiovisual, ou seja, nas rádios e televisões, que são concessões públicas. Para ser mais clara, é de propriedade do Estado o espectro eletromagnético que é temporariamente cedido a determinadas empresas de comunicação. E como parte das regras desta concessão está a atenção ao que já é estabelecida em lei, como informado no parágrafo acima. Como afirma o mestre em Ciência Política, pela Universidade de São Paulo, professor Guilherme Canela, “se o Estado (governo e sociedade) acorda institucionalmente que esse recorte etário merece prioridade absoluta, à mídia não é conferido nenhum salvo-conduto para se escusar de cumprir suas responsabilidades, especialmente porque radiodifusores são operadores de concessões públicas do Estado e da sociedade”.
Programação para todos os públicos
Esse “descumprimento” do acordo entre o Estado e o mercado ultrapassa também outras esferas, como a regulamentação do setor, defendida por organizações da sociedade civil e pesquisadores da área. No Brasil, o próprio mercado publicitário regulamenta toda a publicidade mercadológica por meio do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), que estabelece as normas e julga os casos que porventura sejam enviados por entidades representativas ou cidadãos comuns. Para o presidente da entidade, Gilberto Leifert, as tentativas de regulamentação revelam que o Estado não acredita no poder de discernimento do cidadão. “É um evidente paradoxo. Muitas vezes, o projeto de lei ou a intervenção do Estado sugere que o cidadão é considerado plenamente capaz apenas para constituir família, eleger representantes políticos, pagar impostos, mas seria incapaz de fazer escolhas a partir da publicidade”, afirma.
Outra prova da complexidade do que estamos falando se deu com a retirada do programa infantil diário TV Globinho, substituído por um voltado para o público adulto capitaneado pela jornalista Fátima Bernardes nas manhãs na TV Globo. A emissora, que já chegou a apresentar O Sítio do Pica-Pau AmareloVila SésamoXou da Xuxa, apresentou como argumentação que a grade infantil não dá nem audiência, nem receita publicitária, e diz seguir tendência internacional de deixar as crianças para a TV paga. Segundo a empresa, o canal fechado seria um espaço menos sujeito a controle externo, como classificação indicativa, sugerida pelo governo e proibições à publicidade infantil (como limite à propaganda de alimentos e ao uso de desenhos para seduzir o público-alvo). “O segmento infantil está na TV paga porque lá não tem censura nem restrição à propaganda”, diz Luís Erlanger, diretor da Central Globo de Comunicação. Importante questionar, neste caso, como ficam as crianças que não têm TV paga, já que o lazer e entretenimento também são direitos e a TV é uma concessão pública? Isso sem falar que como concessionária de um serviço público a empresa deve cumprir com o regulamento que prevê programação para todos os públicos.
Direito de ter brinquedo
Mas muitas pesquisas e estudos também são realizados para medir o impacto da publicidade no desenvolvimento psíquico e emocional, atual e futuro, das crianças e adolescentes. E os resultados são alarmantes. Segundo o Instituto Alana, organização não governamental de defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes em relação ao consumo em geral, bem como ao excessivo consumismo ao qual são expostas, as crianças são mais vulneráveis que os adultos e sofrem cada vez mais cedo com as graves consequências relacionadas aos excessos do consumismo, por estarem em pleno desenvolvimento. Para o Alana, são consequências danosas à exposição excessiva a obesidade infantil, a erotização precoce, o consumo precoce de tabaco e álcool, o estresse familiar, a banalização da agressividade e violência, entre outras.
Mas como não se mudam leis e costumes num passe de mágica, algumas tentativas de minar o poderio do mercado e proteger as crianças têm sido realizadas. Cabe registrar que está em tramitação no Congresso Nacional, há mais de dez anos, um projeto de lei que proíbe a publicidade de produtos infantis (PL 5921/01). O texto, de autoria do deputado Salvador Zimbaldi (PDT-SP), que faz parte da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática, já foi alterado nas comissões de Defesa do Consumidor e de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio. Para o relator, “é necessária uma lei sobre publicidade infantil porque o Conselho de Autorregulamentação Publicitária (Conar) não tem sido eficaz”. Depois que Zimbaldi apresentar o parecer, a proposta seguirá para a Comissão de Constituição e Justiça em caráter conclusivo.
O anteprojeto encontra bastante resistência por parte do setor empresarial, especialmente o de brinquedos. Para o presidente da Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq), que também é presidente da Fundação Abrinq, Synésio Batista, a publicidade infantil é fundamental já que toda criança tem o direito de ter brinquedo e a publicidade ajuda a aumentar a produção, despertando o interesse e deixando a criança informada, “não se oferece um produto dizendo o que ele não tem”, afirma Batista.
Discurso mágico
Outra forma de quebrar o bloqueio empresarial está na capacidade de organização da sociedade. Já é possível perceber que há intervenção de diversos setores desta na defesa pela regulamentação e isso tem mexido na estrutura de poder e aberto diversas frentes de debates sobre o tema criança e consumismo, especialmente nas redes sociais. Por conta disso, algumas campanhas publicitárias foram tiradas do ar. A mais recente foi o parque Mundo da Xuxa, que foi notificada pelo Procon/SP, e não pelo Conar, que apresentou como justificativa “o potencial de induzir o público infantil a atitudes que gerem risco à segurança e a saúde”. Importante registrar que esta campanha só saiu do ar depois que o coletivo Infância Livre de Consumismo (ILC), junto com outros movimentos e organizações, registrou queixas contra a propaganda. Este é outro exemplo de organização. Já as empresas Nestlé, Mattel, Habib’s, Dunga Produtos Alimentícios Ltda. (Biscoito Spuleta) e Roma Jensen (Roma Brinquedos) receberam as multas, também do Procon/SP, na semana passada, num total de mais de R$ 3 milhões, por campanhas publicitárias abusivas dirigidas ao público infantil. Estas últimas também foram resultado de mobilização de organizações da sociedade civil.
O Infância Livre de Consumismo (ILC) é um coletivo de pais, mães e cidadãos inconformados com a publicidade dirigida às crianças que nasceu como contraponto a campanha “Somos todos responsáveis”, promovido pela Associação Brasileira das Agências de Publicidade (ABAP). “Por mais informadas e conscientes que sejam as famílias, os pais não têm como combater um discurso mágico e atraente feito por adultos pertencentes a grandes e poderosos conglomerados empresariais, com alto poder econômico, que detêm pesquisas psicossociais, de mercado e até mesmo neurológicas”, avalia Marina Machado de Sá, publicitária e mestre em Políticas Públicas, uma das fundadoras do coletivo Infância Livre de Consumismo (ILC).
“Atentado à liberdade de expressão comercial”
Já a campanha “Somos todos responsáveis” defende que apenas os pais seriam os responsáveis pela proteção das crianças diante dos estímulos abusivos das propagandas ao consumismo. Para eles é importante, necessária e sadia submeter às crianças à informação. “Se a ideia é proteger as crianças da mídia, não adianta mais desligar a televisão, abaixar o volume do rádio e ficar longe das bancas de jornais”, diz Dalton Pastore, presidente do Conselho Superior da Abap. “A questão é mais complexa e merece uma discussão mais profunda, baseada em educação, e não em proibição”, complementa.
No entanto, atitudes como esta isentam o Estado e o mercado (empresas e publicitários) de quaisquer responsabilidades sobre a publicidade dirigida às crianças. “Nesta relação, fica patente a vulnerabilidade das famílias, da comunidade e da própria criança diante do discurso mercadológico”, alerta Mariana Sá.
Um alerta interessante feito por essas organizações diz respeito aos problemas causados ao meio ambiente. Segundo o ILC, o excesso de propagandas e conteúdo manipulatório dirigidos ao público infantil dificulta a educação cidadã e sustentável e vai contra a formação de um consumidor consciente, justo num momento em que o mundo repensa formas de consumo sustentáveis.
Assim cabe uma reflexão sobre o que está por trás dessa resistência do mercado no diálogo sobre a regulamentação do setor. É importante e urgente entender que isso é uma das pontas do iceberg chamado democratização da comunicação. Tema este que merece ser aprofundado, especialmente para entender o porquê de o discurso mercadológico estar baseado na censura e na defesa da liberdade de expressão. Como bem afirma Gilberto Leifert, a proibição de propaganda infantil é um “atentado à liberdade de expressão comercial”. Num país que acabou de sair de um processo de ditadura onde o calar foi um dos recursos mais (bem) utilizados, qualquer aceno que relembre esse momento é evidentemente danoso, significativo e causa aversão. Segundo o coordenador executivo da organização Andi Comunicação e Direitos, Veet Vivart, “associar a regulação, que é um instrumento democrático, interdita o debate”.
Cúmplices de violações
Daí surge outro debate sobre o porquê da importância dos pais, mães e demais responsáveis pelo cuidado direto de crianças e adolescentes, dizerem “não” aos constantes pedidos de “compra” emitidos por eles. Dizer não além de ser educativo, ajuda a criançada a entender que a vida não é o “céu de brigadeiro” que a TV mostra. Dito isso, é salutar compreender que um dos recursos da publicidade é o de se aproveitar do (grande) tempo que as crianças ficam exposta a programas televisivos, longe da presença de adultos, para impor uma lógica de consumo desenfreado, por meio de técnicas de aborrecimento (onde vencem pelo cansaço), aumento do volume no momento dos comerciais, o uso constante de merchandising, entre outras. Para se ter uma ideia do que estamos falando, as crianças brasileiras ficam até cinco horas na frente da TV, diferentemente de outros países, inclusive os Estados Unidos. No final, temos crianças obesas, sedentárias, doentes e mal informadas, para não aprofundar mais neste debate.
No final, a maioria dos pais e mães que trabalham fora de casa e, portanto, ficam longe de seus filhos, vê-se obrigado a comprar, atendendo aos pedidos insistentes do filho, na tentativa de suprir o tempo perdido. Mas é preciso entender que não se compra tempo, atenção e afeto, especialmente das crianças. Faz-se necessário e urgente refletir e criar estratégias de recompensa desse tempo a partir de momentos de aproximação, conversa, troca e atenção, onde os pais e mães fiquem com suas crianças e promovam momentos de interação com eles. Isso vale muito mais do que um brinquedo, na maioria das vezes caro, que será deixado de lado, em breve. Sem contar que é fundamental avaliar o pedido de compra. Afinal, é algo que vai ser realmente utilizado pela criança, é adequado para a idade, vai ajudá-lo de alguma forma, que habilidades serão desenvolvidas? Porquedo contrário, a velha resposta do “porque agora não tenho dinheiro”, atrapalha por não acrescentar, por não ajudar a pensar de forma sustentável e educativa. O “não” tem de estar embasado em outras motivações.
Importante resgatar que o processo de debate e regulação proposto pela sociedade civil é algo que deve inclusive acontecer dentro da esfera pública do Estado. Afinal,cabe a este ente promover e induzir os processos de garantia de direitos, uma vez que ele é o representante formal, referendado noutro processo democrático de consulta pública.
Por fim, quero lembrar que este é mais um ano de eleições e que estaremos escolhendo a/os nossa/os futura/os representantes à Prefeitura e Câmara de Vereadores. Em dois anos, escolheremos a/o presidente, governadores, senadores e deputados. E quantas vezes procuramos saber qual o plano de governo que eles propõem, nossas demandas de focar as crianças estão contempladas ou mesmo se acompanhamos esses compromissos pleiteados durante a campanha? Acredito que não. Normalmente preferimos nos omitir sob a desculpa de que política é lugar de corrupção, privilégios e impunidade. No entanto, essa postura nos coloca como cúmplice das inúmeras violações direcionadas a população infanto-juvenil brasileira.
Fonte:
Por:
Rosely Arantes é jornalista, educadora popular e especialista em Gestão Estratégica Pública.
Observatório da Imprensa

Sem munição


Ouvi dizer que, se dermos uma volta por Waikiki, em poucos minutos alguém nos entregará um folheto com mulheres seminuas segurando armas de fogo, escrito em inglês, talvez também em japonês, com propaganda de um dos muitos estandes de tiro. O maior da cidade, o Royal Hawaiian Shooting Club, anuncia que seus instrutores falam fluentemente japonês, que é também o idioma padrão de seu site. Há anos esse setor da economia do Havaí visa explicitamente a turistas japoneses, procurando tirá-los das praias e dos resorts e atraí-los para os shoppings, para fazer o que é proibido no seu país.
Os estandes de tiro de Waikiki, em geral cheio de japoneses, são iguais aos de todas as principais cidades turísticas. Entretanto, eles se encontram na interseção de duas sociedades com enfoques diametralmente opostos em relação a armas e seu papel na sociedade. O horrendo massacre no cinema de Aurora, Colorado, contribuiu para ressaltar que as leis sobre o controle de armas dos Estados Unidos são as mais brandas do mundo desenvolvido, e sua taxa de homicídios, a mais elevada. Dos 23 países "ricos" do mundo, a taxa de mortes por arma de fogo dos EUA é cerca de 20 vezes superior à dos outros 22. Com quase uma arma de fogo por pessoa, os EUA têm a taxa mais elevada de cidadãos armados do mundo; o Iêmen, país dilacerado por conflitos tribais, é o segundo, com cerca da metade da taxa americana.
Mas, e o país que se encontra na extremidade oposta do espectro? Qual é o papel das armas de fogo no Japão, a nação do mundo desenvolvido onde há menos delas em circulação e onde impera o controle mais rigoroso? Em 2008, os EUA registraram mais de 12 mil homicídios por armas de fogo. O Japão todo registrou apenas 11, menos do que os mortos no massacre de Aurora. E aquele foi um ano extraordinário: em 2006 houve apenas impressionantes 2, e quando o número saltou para 22 em 2007, foi um escândalo nacional. Em comparação, sempre em 2008, 587 americanos foram mortos por armas de fogo disparadas acidentalmente.
Quase ninguém no Japão é dono de uma arma. A maioria delas é ilegal e no país vigoram onerosas restrições à compra e à manutenção das poucas que são permitidas. Até a famigerada organização Yakuza, uma espécie de máfia, tende a renunciar às armas de fogo. As poucas exceções costumam se tornar casos de destaque nacional.
Os turistas japoneses que atiram no Royal Hawaiian Shooting Club infringiriam três leis em seu país: uma, que proíbe a posse de arma de fogo; outra, que proíbe a posse de munição sem licença; e outra que proíbe disparar a arma. Só a primeira já prevê condenações que variam de 1 a 10 anos de cadeia. Pistolas são totalmente proibidas. Desde 1971, é ilegal comprar, vender ou transferir espingardas de pequeno calibre. Quem tinha um rifle antes disso pode conservá-lo, mas seus herdeiros terão que entregá-lo à polícia quando o dono morrer.
As únicas armas de tiro que os japoneses podem adquirir e usar legalmente são espingardas de caça e armas de ar comprimido. Mesmo assim, não é fácil. O processo é descrito num estudo de David Kopel que se tornou referência sobre o controle de armas no Japão, publicado na Asia Pacific Law Review de 1993. Kopel, que não é nenhum maluco de esquerda, é membro da National Rifle Association (NRA) americana e já escreveu na National Review que leis mais brandas sobre o controle de armas de fogo poderiam ter detido Adolf Hitler.
Para ter arma de fogo ou tiro no Japão, em primeiro lugar o cidadão precisa assistir a uma aula de um dia inteiro e ser aprovado numa prova escrita. Além disso, tem que assistir a aulas num estande de tiro e ser aprovado. Em seguida, terá de ir a um hospital fazer testes de capacidade mental e testes para verificar se usa drogas (no Japão, os possíveis proprietários de armas de fogo precisam provar que são mentalmente sãos), testes que serão entregues à polícia. Por fim, terá de passar por uma rigorosa verificação a fim de garantir que não possui antecedente criminal e não pertence a grupos criminosos ou radicais. Somente então poderá vir a ser o orgulhoso dono de uma espingarda de caça ou ar comprimido. Além disso, tem de entregar à polícia documentação sobre o lugar específico no qual a arma será guardada em sua casa, bem como a munição, que deverão estar trancadas a chave em lugares separados. A polícia inspecionará a arma uma vez por ano, e a cada três anos o proprietário terá de voltar a frequentar as aulas e fazer novos exames.
Até o contexto básico do enfoque do Japão em relação à propriedade de armas de fogo é quase o oposto ao existente nos EUA. A legislação americana sobre armas começa com a afirmação, na Segunda Emenda, do "direito das pessoas de ter e carregar armas", e a partir daí estabelece os detalhes. A legislação japonesa começa com a lei de 1958 que determina que "ninguém possuirá arma ou armas de fogo e espada ou espadas", e depois relaciona algumas exceções. Em outras palavras, a lei americana visa a consagrar o acesso às armas, enquanto a japonesa começa com a premissa de sua proibição. A história disso é complicada, mas vale a pena notar que a legislação americana tem suas raízes na resistência às restrições impostas pelos britânicos ao porte de armas, enquanto alguma literatura acadêmica relaciona a legislação japonesa à campanha nacional para desarmar os samurais, o que talvez explique em parte o motivo pelo qual a de 1958 menciona as armas de fogo e espadas, lado a lado.
Evidentemente, Japão e EUA estão separados por inúmeras diferenças culturais e históricas. Kopel explica que, seja qual for o motivo, os japoneses tendem a ser mais tolerantes com o poder de busca e apreensão da polícia necessário para que a proibição funcione. "Os japoneses, tanto os criminosos quanto os cidadãos comuns, estão muito mais dispostos que os americanos a consentir em buscas e apreensões e a responder às perguntas da polícia", ele escreve. Mas até mesmo a polícia japonesa só começou a andar armada em 1946, quando obrigada pela autoridade de ocupação americana. Agora, a polícia japonesa recebe mais horas de treinamento do que a americana, os policiais estão proibidos de carregar armas quando não estão em serviço e dedicam horas ao estudo de artes marciais, em parte porque "devem usar armas de fogo muito raramente", segundo Kopel.
As maneiras de pensar dos japoneses e dos americanos a respeito da criminalidade, da privacidade e dos poderes da polícia são tão diferentes que é impossível isolar completamente e comparar os dois regimentos relativos ao controle de armas. Não é muito mais fácil avaliar os custos e benefícios do enfoque do Japão, que contribui para a sua taxa de crimes ser a segunda mais baixa do mundo, embora ao custo de restrições impostas por um "Estado policial", como Kopel o define. Afinal, a segunda emenda da Constituição americana visa preservar "a segurança de um Estado livre", garantindo que o governo não detenha o monopólio da força. Entretanto, vale a pena considerar outro Estado policial: a Tunísia, que tinha a menor taxa de propriedade de armas do mundo (1 por 1.000 cidadãos, em comparação com 890 para americanos) quando seu povo derrubou uma brutal ditadura que durava 24 anos, dando origem à Primavera Árabe. 
Fonte:


Por:

Max Fisher, The Atlantic


TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

Os EUA estão se tornando uma nação de estranhos, diz sociólogo de Northeastern


Não era Gotham City. Era um cinema de Aurora, no subúrbio de Denver, no Estado norte-americano do Colorado. Em cartaz na sexta, dia 20, a estreia de Batman - O Cavaleiro das Trevas Ressurge. No lugar do Coringa encarnado por Jack Nicholson e Heath Ledger noutros tempos, um transtornado James Holmes, estudante de neurociência, doutorando na Universidade do Colorado. Disparos feitos, 12 mortos e 58 feridos. Mas a conta não fecha aí.
"Se fizermos o cálculo, o principal problema não são os massacres. É a violência pequena", diz Jack Levin, diretor do Brudnick Center on Violence & Conflict da Universidade Northeastern, de Boston. Para investigar os diferentes "gatilhos" dos serial killers, mas killers e criminosos "cotidianos", o sociólogo prefere mirar as questões a partir de uma grande angular, com estatísticas do FBI e pesquisas próprias sobre a mentalidade, o modus operandi e a realidade dos assassinos brutais.
Para Levin, a cultura das armas, o fenômeno copy cat e a frustração dos outsiders são os principais detonadores desse pesadelo americano. "Os EUA estão se tornando uma nação de estranhos. É um eclipse da ideia de comunidade", critica o autor de Extreme Killing (2011) e The Violence of Hate (2010), entre outros 30 livros. A seguir, a entrevista de Jack Levin ao Aliás.
Como o sr. analisa o que aconteceu em Aurora na semana passada?
É possível analisar massacres com estatísticas do próprio FBI. Sabemos que acontecem entre 20 e 25 massacres, com cerca de 200 vítimas, todos os anos nos EUA. Mas, certamente, esse número deve ser mantido em perspectiva, pois há mais de 15 mil vítimas de crimes isolados por ano nos EUA. Então, se fizermos as contas, o principal problema não são os massacres. É a violência pequena: a agressão doméstica, o assassinato de familiares, os crimes contra amigos e colegas de trabalho, os confrontos entre gangues de jovens e assim por diante. Além disso, apenas 16% dos massacres miram alvos aleatórios, isto é, atentados contra desconhecidos em lugares públicos como cinemas e clubes. A maioria é seletiva: os ataques visam a amigos e colegas de classe, quer dizer, conhecidos que os assassinos culpam por suas infelicidades na vida. O assassino quer se vingar e o faz pelas armas. Outro fator especialmente presente na cultura norte-americana é o fácil acesso a armas semiautomáticas. Isso esclarece parte, mas não todo o problema. Na maioria, os atiradores são solitários e socialmente isolados. Não têm a quem recorrer quando passam por momentos difíceis. Os EUA estão se tornando uma nação de estranhos. Muitas pessoas estão dispostas a se mudar para lugares distantes milhares de quilômetros por um novo emprego, ou por um novo começo, ou por uma última chance. É um eclipse da ideia de comunidade.
Após o tiroteio, a venda de armas subiu 43% no Colorado.
Muitos americanos acreditam que a dimensão do massacre em Aurora poderia ser reduzida se uma pessoa da plateia do cinema portasse uma arma. Realmente duvido disso. A polícia chegou à cena do crime 60 segundos depois do ataque. E chegou 60 segundos tarde demais. No calor da hora, seria difícil diferenciar o assassino e as vítimas. Uma pessoa armada possivelmente poderia ter atirado na pessoa errada.
Nesse contexto, qual é o peso da cultura americana das armas?
Nos EUA, a maioria dos mass killers usa armas semiautomáticas. Reduzir a disponibilidade de armas de alta potência poderia reduzir a prevalência desses ataques body count. Mas é sempre possível usar outras armas. Em 1995, Timothy McVeigh plantou uma bomba num prédio federal de Oklahoma, tirando 168 vidas. Em 2001, os ataques terroristas com aviões em Nova York e Washington resultaram na morte de quase 3 mil pessoas - sem uso de armas portáteis. Quer dizer, a substituição é possível.
Atualmente assistimos a guerras civis, massacres e outros crimes violentos no  cotidiano. O que está acontecendo?
Não sei se a violência é parte da natureza humana ou se é parte da cultura da sociedade. A melhor resposta é: ambos. Ao mesmo tempo, há longos períodos na história marcados pela ausência de fortes conflitos e guerras. Além disso, a violência política não é encontrada no mundo inteiro. Do mesmo modo, certos países têm notavelmente mais massacres que outros. Isso indica que a cultura desses países certamente faz diferença. E recentemente o fator copy cat (imitação) se fortaleceu devido à atenção que a violência conquistou na mídia. O que antes atraía uma cobertura apenas local agora é nacionalmente (e internacionalmente) divulgado, dando a episódios isolados o poder de inspirar outros. O massacre de Columbine de 1999 inspirou muitos jovens a atirar em colegas de classe em vários países, inclusive no Brasil.
No Brasil, aliás, cidades como Rio e São Paulo estão vivendo uma onda de crimes.
Sim, mas o mass murder é bem diferente dos diversos homicídios "cotidianos", cometidos principalmente por jovens. É preciso notar que a taxa de homicídio varia especialmente de acordo com a pobreza de certas cidades, onde os jovens não têm esperança para o futuro. Se você olhar atentamente para as taxas de homicídio internacionais poderá ver que a maioria dos países pobres tende a ter os mais altos índices desses crimes. Muitos assassinatos "cotidianos" são homicídios culposos. Não são premeditados, mas acontecem no calor do momento. Esses homicidas não perpetram violência aleatoriamente. Por outro lado, os que se sentem outsiders na sociedade são mais propensos a descarregar seu ódio contra os outros.
Há diferenças entre serial e mass killers?
Os serial killers tendem a ser sociopatas, capazes de matar sem sentir nenhuma culpa, nenhum remorso moral. Já os mass killers padecem de uma psicopatologia provocada por uma situação terrível - quer dizer, por eles interpretada como terrível. Eles sentem que estão se vingando, fazendo justiça. O gatilho é quase sempre alguma perda catastrófica - do emprego, de um relacionamento importante, de uma posição acadêmica e assim por diante. Ao que parece, o atirador de Aurora foi expulso do programa de doutorado da Universidade do Colorado. Talvez isso tenha sido o gatilho. Porém, tanto serial killers quanto mass killers são motivados pela necessidade de se sentirem importantes, se tornarem celebridades, amadas ou odiadas. E a mídia não tem apenas o direito, mas a obrigação de informar as pessoas sobre esses ataques. Ao mesmo tempo, também deve ter muito cuidado para não dar atenção excessiva a esses crimes. Não devemos dar espaço a esses monstros nas revistas de celebridades, contando detalhes das vidas desses assassinos. Não podemos transformar os vilões em vítimas.
Fonte:
Caderno Aliás, O Estado de S. Paulo.


26 de jul. de 2012

Lobo e rato




O regime sírio é capaz de usar armas químicas contra o seu próprio povo e compactua com a rede terrorista Al-Qaeda para realizar atentados com a finalidade de assustar a população e desacreditar os rebeldes. Estas são algumas das denúncias de Nawaf Fares, o ex-embaixador sírio no Iraque e até agora o mais importante desertor do regime.
Claro que as denúncias devem ser acolhidas com ceticismo. Fares é um rato saltando do navio. Ele tem sua própria agenda. Foi por 34 anos um serviçal de uma ditadura, trabalhando inclusive no aparato de segurança. Espera agora que sua delação seja premiada, como acontece com tantos bandidos.
Uma deserção incentiva a outra, o que pode contribuir para a implosão do regime. Enquanto isto, a própria Damasco já é cenário de combates e a TV estatal informou que nesta quarta-feira, o ministro da Defesa foi morto em um atentado na sede da Secretaria de Segurança Nacional, assim como o segundo em comando, que era cunhado do ditador Bashar Assad.
Mas, de volta a Nawaf Fares, fascina descobrir o que existe de verdade nas suas denúncias, que carecem de provas. Numa entrevista à BBC de Londres, Fares disse algo interessante: “Eu construi minha opinião com base na mentalidade do regime”. Aí, ele sabe do que está falando. Se temos motivos para desconfiar do rato que salta do navio, temos até mais para desconfiar daqueles que ainda permanecem. Basta ver como é nebulosa a história sobre este atentado que custou a vida de gente do alto comando do regime nesta quarta-feira. Afinal quem matou quem? Afinal, como aconteceram as mortes? Por que as pessoas morreram?
Fares afirma que Bashar Assad é um “lobo ferido”, capaz de fazer qualquer coisa para permanecer no poder, inclusive “erradicar a população”. Mesmo descontando muito do que este desertor fala, temos uma medida do que está jogo. Já vimos do que Assad foi capaz até agora, imagine encurralado?
Também preocupa o que está à frente, além desta ditadura. Como o ex-diplomata desertor, eu tenho poucas dúvidas que os dias de Assad estão contados (quantos?). E nas voltas que a vida e a política dão, um dia ratos como Nawaf Fares estarão novamente no navio. Ele espera retornar para uma Síria “livre e democrática”, ele que colaborou para isso aí: uma ditadura cruel e mentirosa. Nunca é fácil a missão de uma comissão de verdade e reconciliação.
***
Colher de chá para o Nilton (dia 18, 10:22) por enfocar a capacidade de sobrevivência do regime Assad. 


Fonte:
Por:
Caio Blinder
De Nova York