28 de jul. de 2011

O massacre da Noruega e o Brasil

Seria loucura e descaso se todos descartássemos o massacre praticado pelo cristão fundamentalista Anders Behring Breivik em Oslo como se fosse apenas um problema norueguês. Não é. Em todo o Ocidente, a direita religiosa tem ganhado força e se expressado da maneira mais assustadora possível, ao menos para pessoas pautadas por princípios humanistas e minimamente a par das conquistas da ciência no último século.
A Noruega está entre as sociedades menos religiosas do mundo e, em contrapartida, também entre as mais saudáveis, segundo os indicadores da ONU para expectativa de vida, alfabetização, renda per capta, nível educacional, igualdade entre os sexos, taxa de homicídios e mortalidade infantil. Se nessa sociedade do bem-estar social e progressista, o cristianismo fundamentalista de direita levou a esse massacre, o que esperar de nosso país, o Brasil, onde atualmente as crenças dos cristãos conservadores exercem uma enorme influência sobre o discurso público – em escolas, juizados e principalmente no Legislativo – ao ponto de intervirem em políticas de governos e silenciar, sob ameaça de danos eleitorais, políticos de boa fé?
Algo disso já podem ser observados por aqui, como no recente massacre perpetrado por um cristão fanático na Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo, subúrbio do Rio de Janeiro, no qual a velha mídia optou por não dar ênfase ao seu fanatismo cristão. Também está presente nas campanhas difamatórias orquestradas e tocadas por cristãos fundamentalistas nas redes sociais contra aqueles que defendem os direitos dos homossexuais e dos adeptos da umbanda e do candomblé, a legalização do aborto e a laicidade do Estado brasileiro.
No meu caso específico, há, além de campanha que busca me difamar (e que inclui e-mail apócrifo em que me acusam de “declarar guerra aos cristãos”, e-mail mentiroso que os ignorantes e de má fé passam adiante como se verdadeiro fosse), as constantes ameaças de morte. As pessoas que me ameaçam se dizem “transformadas por Cristo” numa primeira frase para, na seguinte, expor sua intolerância assassina, quase sempre justificada por versículos da Bíblia.
Sendo assim, o massacre na Noruega tem mais a ver conosco do que possamos pensar. Ele desafia os cristãos que não são fundamentalistas nem fanáticos e que não desprezam as descobertas científicas do último século; e que estão mais conectados com as coisas profundas sobre o amor, a solidariedade e o perdão ditas por Jesus de Nazaré – coisas ditas bem antes por outros sábios como Zoroastro, Buda e Confúcio, por exemplo – a tomarem uma atitude em relação ao crescimento do fundamentalismo.
Os cristãos de boa fé e bom senso não podem deixar que os fundamentalistas falem e ajam em seu nome. Eu quero acreditar que, assim como os devotos de religiões minoritárias e os ateus, os cristãos de boa fé também estejam perturbados com os bizarros atos e convicções da direita cristã fundamentalista. Então, já passou da hora de regirem, pois o silêncio, seja por medo ou por indiferença, só serve para dar abrigo a extremistas criminosos e enganadores.
* Jean Wyllys é jornalista e linguista, é deputado federal pelo PSOL-RJ e integrante da frente parlamentar em defesa dos direitos LGBT.
** Publicado originalmente na coluna do autor, no site da revista Carta Capital.

23 de jul. de 2011

Em 10 anos, País ganha 1 milhão de moradores que se declaram amarelos

O Brasil viveu, na última década, uma explosão da população de origem asiática, explicada em grande parte pelo retorno de brasileiros que moravam no Japão e pela chegada de imigrantes vindos principalmente da China.
Dados do Censo 2010 apontam 2,084 milhões de residentes no País que se declararam de cor ou raça amarela - um aumento de 1,322 milhão de habitantes em relação ao ano 2000, equivalente ao município de Guarulhos.
Em dez anos, os "amarelos" cresceram 173,7%. Embora a proporção ainda seja muito pequena, os orientais e seus descendentes passaram de 0,45% para 1,09% da população.
O pesquisador Kaizô Beltrão, professor da Fundação Getúlio Vargas e especialista em estudos demográficos, aponta uma terceira razão para o aumento dessa população: maior identificação dos mestiços com suas origens, o que pode ter levado filhos de brasileiros com asiáticos a se declararem amarelos.
No novo desenho da distribuição dos asiáticos, o Nordeste, e não mais o Sudeste, apresentou a maior proporção de população amarela, embora em números absolutos a concentração continue no Sudeste. São Paulo, que tem a maior comunidade japonesa do País, deixou de ser o Estado com maior porcentual de asiáticos e descendentes e caiu para sétimo lugar, apesar de ter tido aumento no número absoluto.
A atração pelo Nordeste pode ser explicada pelo aquecimento econômico, com investimentos em infraestrutura e serviços e aumento da demanda por mão de obra. Na população nordestina, o número de amarelos subiu quase dez vezes: passou de 67 mil em 2000 para 631 mil em 2010.
O Piauí passou a ser o Estado com maior proporção de asiáticos, com 2,3% da população total. Segundo o secretário estadual de Desenvolvimento Econômico e Tecnológico, Warton Neiva, há um grande número de asiáticos no agronegócio, especificamente na pecuária. Em Teresina, onde o número de asiáticos cresceu 14 vezes, é perceptível a presença de chineses em lanchonetes improvisadas para venda de pastel e caldo de cana.
Em Fortaleza, o aumento também foi impressionante, de 3,5 mil para 33 mil. Hoje é mais fácil achar uma temakeria na orla do que um local que venda tapioca. Discretos, os chineses não gostam de se identificar. Dono de uma loja de eletrônicos, Edson (nome fictício) se adaptou com facilidade aos costumes locais. Difícil foi a alimentação. "Mas agora há restaurantes de comida japonesa, então melhorou."
Embora detalhes do Censo 2010 sobre nacionalidade ainda não estejam disponíveis, alguns números oficiais dão pistas para o aumento da população amarela. Segundo o Ministério da Justiça, o número de chineses legalmente residentes no Brasil aumentou 25% entre 2009 e 2010, passando de 28,5 mil para 35,2 mil. O Censo 2000 registrou a presença de 15 mil chineses.
Atrativos. Investimentos da China em agricultura e energia têm trazido profissionais mais qualificados ao País. Além disso, há um grande número de chineses que chegam com visto de turista e se acabam se radicando no Brasil. Atuam na economia informal em comércio de importados e no setor de alimentos.
Na tentativa de evitar o aumento de imigrantes ilegais, o Itamaraty recomendou à embaixada brasileira na China atenção redobrada nos pedidos de vistos. Por enquanto, não há recomendação formal de restrição.
Identificação. Outro dado que comprova a vinda de asiáticos para o Brasil são as autorizações concedidas pelo Ministério do Trabalho a estrangeiros. O número para filipinos foi de 1.542 em 2006 para 6.531 em 2010.
Outra informação reforça a tese de que o aumento da população amarela se deve ao retorno de brasileiros. Dados da Associação Brasileira de Dekasseguis indicam que o número de brasileiros no Japão caiu 14,4% em 2009. "O movimento dekassegui aumentou a identidade dos mestiços que antes podiam se declarar brancos e agora se declaram amarelos."


** O Estado de S. Paulo (23/06/11)

21 de jul. de 2011

Agressões e mortes exigem criminalização "urgente" da homofobia, defendem especialistas

Crimes recentes e chocantes como a agressão a pai e filho confundidos com um casal gay em São João da Boa Vista (SP), no último fim de semana, ou o assassinato do operador Danilo Rodrigo Okazuka, 28, em Barretos, nesta terça (19), representam picos de violência que só podem ser revertidos caso se defina, “com urgência”, uma legislação específica que criminalize a homofobia.
A opinião é compartilhada por juristas e advogados especialistas em segurança pública e na defesa dos direitos de minorias consultados pelo UOL Notícias nessa terça-feira (20) --um dia depois da morte de Okazuka, segundo a polícia, por motivação homofóbica, e um dia após o juiz em São João ter negado a prisão preventiva de um dos agressores confessos do pai do jovem de 18 anos. Ele abraçava o próprio filho em uma feira agropecuária da cidade, pouco antes do ataque, e instantes depois de ter sido abordado por um grupo que questionava se eles eram um casal homossexual. O rapaz se feriu sem gravidade, mas o pai perdeu a maior parte da orelha direita.
Os três especialistas ouvidos pela reportagem se mostraram preocupados com a frequência de casos --que se "popularizaram" na mídia principalmente após sucessivos ataques a gays na avenida Paulista, no ano passado, em São Paulo --e com a violência empregada contra pai e filho no interior paulista. Paralelamente, no Congresso brasileiro, o projeto de lei complementar que criminaliza a homofobia, o 122/2001, não tem sequer perspectiva de ser levado a votação, ante a grande resistência à matéria principalmente entre as bancadas religiosas. Mês passado, porém, o STF (Supremo Tribunal Federal) aprovou a união civil entre pessoas do mesmo sexo.

"Insensibilidade" na magistratura

Para Walter Maierovitch, desembargador do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) e presidente e fundador do Instituto Brasileiro Giovanni Falcone de Ciências Criminais, a recente aprovação de mudanças nos critérios para prisões preventivas pode reforçar a conduta de criminosos que agem também contra as chamadas minorias.
Pela alteração vigente desde o último dia 4, por exemplo, pessoas que cometerem crimes leves --aqueles puníveis com até quatro anos de prisão –, e nunca antes condenadas por outro delito, só serão presas em caso de condenação final, em situações de violência doméstica ou quando houver dúvida sobre a identidade do acusado. Não é o caso, portanto, do agressor confesso do interior paulista.
“Atravessamos um momento muito difícil, e a opinião pública quer mudanças. Mas infelizmente temos leis equivocadas e morosidade na Justiça, o que só faz aumentar o sentimento de impunidade e a sensação de medo”, destacou. Na avaliação do jurista, mesmo que o conjunto de leis nem sempre atenda a demanda a contento, também há “a insensibilidade de muitos magistrados que, cada vez mais, adotam uma linha ideológica perigosa”: “Uma prisão dessas [em caso de homofobia] nada tem a ver com prisão de sentença final, é uma medida de segurança social. Manter soltas pessoas que violam direitos elementares, que não conseguem ter uma visão de sociedade igualitária, é algo muito perigoso ---são crimes de caráter grave, ou, como no caso desse pai agredido, gravíssimo: são pessoas que não conseguem dominar os próprios impulsos”, defende.
Maierovitch se diz contrário à criminalização da homofobia por avaliar --a partir de outros países que criminalizaram, por exemplo, o uso de entorpecentes --que a medida não reduziria os casos. Mas ressalvou: “Ainda que eu não acredite que criminalizando se vá reduzir o número de casos, estamos em um estágio perigoso legitima, sim, a criminalização. É pela educação e por mudanças culturais que isso se resolve, mas esses bandos têm saído impunes e não dá para a sociedade ficar sem uma resposta”.

Reforço na luta pela criminalização

Para a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), situações como as registradas em Barretos e São João da Boa Vista não tiram a força da discussão sobre a criminalização.
“Temos uma legislação estadual em São Paulo [a lei 10.948/2001] que pune homofobia na esfera administrativa --com multas e outras sanções, por exemplo, a quem discrimina essas minorias no comércio. Mas não há nada no sentido de criminalizar, por isso precisa haver lei federal”, pondera a presidente da comissão de Diversidade Sexual e Combate à Homofobia da OAB-SP, Adriana Galvão. “E o Congresso tem que refletir sobre isso, pois daqui a pouco não teremos mais o limite do respeito em nenhum aspecto --senão é muito simples uma pessoa simplesmente caminhar, conversar e outros acharem que, homossexual, ela tem que ser agredida”, destacou.
Conforme a advogada, a comissão foi criada em janeiro deste ano e, de março até semana passada, recebeu pelo menos 38 denúncias de supostas vítimas de homofobia. O número é considerado alto pela comissão. “Não há o Estatuto do Idoso, o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), a Lei Maria da Penha? Precisamos sim de uma lei que proteja o homossexual, pois está em grupo que é vitimizado –inúmeras vezes, verbalmente, mas é disso que deriva uma agressão física”, concluiu.

Estatuto LGBT

A presidente da comissão da Diversidade Sexual na OAB nacional, a gaúcha Maria Berenice Dias, disse que até o final do mês que vem a ordem apresentará um projeto de Estatuto da Diversidade Sexual que trata dos direitos da população de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT).
Especialista em direito de famílias formadas a partir da união homoafetiva, a advogada explicou que o estatuto tratará não apenas de adoção pro casais do mesmo sexo, como a punição para atos de discriminação ou preconceito contra homossexuais.
“Fatos como o desse pai agredido infelizmente acontecem e só evidenciam a necessidade de uma legislação específica –a falta de lei é que dá a sensação de impunidade e legitima esse tipo de ação. Afinal, as pessoas podem ter uma convicção pessoal ou religiosa, mas não podem afrontar o direito do outro”, definiu.

** Janaina Garcia
 UOL Notícias (21/07/11)

20 de jul. de 2011

A perda de confiança na ordem atual

Vigora uma desconfiança generalizada de que deste sistema não poderá vir nada de bom para a humanidade. Estamos indo de mal a pior em todos os itens da vida e da natureza. O futuro depende do cabedal de confiança que os povos depositam em suas capacidades e nas possibilidades da realidade. E esta confiança está minguando dia a dia.
1222 291x300 A perda de confiança na ordem atual
Leonardo Boff.

Na perspectiva das grandes maiorias da humanidade, a atual ordem é uma ordem na desordem, produzida e mantida por aquelas forças e países que se beneficiam dela, aumentando seu poder e seus ganhos. Essa desordem deriva do fato de que a globalização econômica não deu origem a uma globalização política. Não há nenhuma instância ou força que controle a voracidade da globalização econômica. Joseph Stiglitz e Paul Krugman, dois prêmios Nobel em economia, criticam o Presidente Obama por não ter imposto freios aos ladrões de Wall Street e da City, ao invés de se ter rendido a eles. Depois de terem provocado a crise, ainda foram beneficiados com inversões bilionários de dinheiro público. Voltaram, airosos, ao sistema de especulação financeira.
Estes excepcionais economistas são ótimos na análise; mas, mudos na apresentação de saídas à atual crise. Talvez, como insinuam, por estarem convencidos de que a solução da economia não esteja na economia, mas no ‘refazimento’ das relações sociais destruídas pela economia de mercado, especialmente, a especulativa. Esta é sem compaixão e desprovida de qualquer projeto de mundo, de sociedade e de política. Seu propósito é acumular maximamente, apropriando-se de bens comuns vitais como água, sementes e solos e destroçado economias nacionais.
Para os especuladores, também no Brasil, o dinheiro serve para produzir mais dinheiro e não para produzir mais bens. Aqui o Governo tem que pagar 150 bilhões de reais anuais pelos empréstimos tomados, enquanto repassa apenas cerca de 60 bilhões para os projetos sociais. Esta disparidade resulta eticamente perversa, consequência do tipo de sociedade a qual nos incorporamos, sociedade essa que colocou, como eixo estruturador central, a economia, que de tudo faz mercadoria até da vida.
Não são poucos que sustentam a tese de que estamos num momento dramático de decomposição dos laços sociais. Alain Touraine fala até de fase pós-social ao invés de pós-industrial.
Esta decomposição social se revela por polarizações ou por lógicas opostas: a lógica do capital produtivo cerca de 60 trilhões de dólares/ano e a do capital especulativo, cerca de 600 trilhões de dólares sob a égide do “greed is good” (a cobiça é boa). A lógica dos que defendem a maior lucratividade possível e a dos que lutam pelos direitos da vida, da humanidade e da Terra. A lógica do individualismo que destrói a “casa comum”, aumentando o número dos que não querem mais conviver e a lógica da solidariedade social a partir dos mais vulneráveis. A lógica das elites que fazem as mudanças intrassistêmicas e se apropriam dos lucros e a lógica dos assalariados, ameaçados de desemprego e sem capacidade de intervenção. A lógica da aceleração do crescimento material (o PAC) e a dos limites de cada ecossistema e da própria Terra.
Vigora uma desconfiança generalizada de que deste sistema não poderá vir nada de bom para a humanidade. Estamos indo de mal a pior em todos os itens da vida e da natureza. O futuro depende do cabedal de confiança que os povos depositam em suas capacidades e nas possibilidades da realidade. E esta confiança está minguando dia a dia.
Estamos nos confrontando com esse dilema: ou deixamos as coisas correrem assim como estão e então nos afundaremos numa crise abissal ou então nos empenharemos na gestação de uma nova vida social, capaz de sustentar um outro tipo de civilização. Os vínculos sociais novos não se derivarão nem da técnica nem da política, descoladas da natureza e de uma relação de sinergia com a Terra. Nascerão de um consenso mínimo entre os humanos, a ser ainda construído, ao redor do reconhecimento e do respeito dos direitos da vida, de cada sujeito, da humanidade e da Terra, tida como Gaia e nossa Mãe comum. A essa nova vida social devem servir a técnica, a política, as instituições e os valores do passado. Sobre isso venho pensando e escrevendo já pelo menos há vinte anos. Mas é voz perdida no deserto. “Clamei e salvei a minha alma” (clamavi et salvavi animam meam), diria desolado Marx. Mas importa continuar. O improvável é ainda possível.
* Leonardo Boff é teólogo e escritor.
** Publicado originalmente no site Agência Carta Maior.

São Paulo se torna a 10ª cidade mais cara do mundo, diz estudo

São Paulo supera Londres, Paris e Nova Iorque e se torna a décima cidade mais cara do mundo. Segundo a consultoria Mercer, viver hoje na capital paulista sai mais caro que na grande maioria das cidades europeias e americanas. O estudo é feito com base no custo que empresas multinacionais precisam gastar para manter um funcionário estrangeiro na cidade.
Em 2010, São Paulo era apenas a 21ª cidade mais cara do mundo. Mas a valorização do real e a explosão de preços de aluguel e alimentação fizeram com que a cidade desse um dos maiores saltos entre as 214 cidades avaliadas.
O Rio de Janeiro também subiu no ranking, passando da 29ª cidade mais cara do mundo em 2010 para a 12ª neste ano. 
A cidade mais cara do mundo para um estrangeiro viver é Luanda, seguida por Tóquio. Moscou é a quarta, seguida por Genebra. Zurique, também na Suíça, é a sétima mais cara do mundo. Nova Iorque é apenas a 32a cidade mais cara do mundo.

* O Estado de S. Paulo (12/07/11)

19 de jul. de 2011

Por que lutam os estudantes chilenos


São dias pouco agradáveis para o presidente do Chile, Sebastián Piñera. Além de ter sido obrigado a anunciar medidas para tentar frear os movimentos, ele enfrenta, nesta segunda-feira (11), protestos dos trabalhadores do setor mineral, principal atividade econômica nacional. Os operários querem garantias de que não haverá privatização da Codelco, a estatal do cobre.
O momento coloca em xeque a visão de um “Chile-maravilha”, comprada por parte da sociedade brasileira e dos países ricos. Os estudantes querem colocar a nu um sistema educacional que consideram desigual e excludente.
“O crescimento do mercado de educação superior fez com que aparecessem muitas diferenças entre os estudantes e entre as instituições”, afirma Germain Dantas, presidente da Federação de Estudantes da Universidade Federico Santa Maria, uma instituição privada de Valparaíso, e integrante da Confederação de Estudantes do Chile. “Há um uso maciço de recursos que não assegura a qualidade.”
Ele refere-se ao sistema adotado durante a ditadura de Augusto Pinochet (que governou de 1973 a 1990). No início da década de 1980, o governo decidiu promover a abertura ao modelo privado de educação. A visão era de que a criação de uma rede particular forte provocaria uma melhoria das escolas públicas. A lógica era simples: receberiam mais financiamento as unidades que conseguissem atrair mais estudantes, supondo-se que uma quantidade maior seria a consequência de um ensino de mais qualidade.
Os alunos passaram a escolher. Se quisessem seguir em uma escola pública, poderiam. Se quisessem migrar ao ensino privado, receberiam uma espécie de vale-educação, ou seja, a escola é subsidiada por cada estudante que recebe. “Em vez de funcionar como um instrumento para acabar com a desigualdade, a educação se transformou em um elemento para reproduzi-la”, lamenta Jaime Gajardo, presidente do Colégio de Professores do Chile, entidade que reúne 100 mil docentes de todos os níveis educacionais.
No sistema universitário, a situação se complicou ainda mais. Tanto nas instituições públicas quanto privadas é preciso pagar matrículas e mensalidades. Os juros fazem com que as dívidas, que inicialmente vão do equivalente a R$ 10 mil a R$ 15 mil, atinjam valores quatro ou cinco vezes maiores. Até esta semana, mesmo quem perdia o emprego deveria seguir pagando o crédito educacional.
Herança
Esta é uma das questões centrais: a Concertação, aliança de partidos que governou o Chile da redemocratização até o ano passado, não fez esforços para reformar o sistema. Pelo contrário, criou medidas na tentativa de aperfeiçoá-lo, acreditando que juros um pouco mais baixos ou um número maior de bolsas resolveriam a questão. “Hoje em dia estamos vendo as consequências disso. Você reforma algumas coisas, mas não muda o substancial. Ao não mudar o substancial, os problemas remanescentes explodem, afloram inevitavelmente”, diz Gajardo.
A conta que hoje se cobra foi apresentada pela primeira vez em 2006, quando centenas de milhares de estudantes secundaristas foram às ruas, na chamada Revolta dos Pinguins. O que se queria era o fim da municipalização do ensino, o fim do lucro nos colégios privados, a gratuidade da prova de seleção universitária e a anulação da lei do período Pinochet, que criava as várias categorias de escolas. A presidenta Michelle Bachelet aceitou convocar uma comissão que, no fim das contas, não deu espaço às reivindicações centrais dos jovens.
O movimento volta agora e, segundo lideranças da mobilização, vê com total descrédito uma solução negociada entre Executivo e Legislativo. “Isso não terá solução na política tradicional. Estamos reivindicando uma série de saídas que não estão previstas na política tradicional, como o plebiscito, que são medidas mais democráticas e que incluem a sociedade”, avisa o estudante Dantas.
Pagando o pato
Piñera havia avisado que este seria o ano da educação. Os estudantes foram às ruas reforçar a mensagem. Cientes de que o caminho do presidente era o de incentivo ao atual modelo, acharam melhor deixar claro que acreditam na ruptura e na formulação de um novo sistema. Quis a soma de fatores que o cansaço se tornasse público e vasto durante o governo conservador.
Em uma demonstração de pouca habilidade política, o ministro da Educação, Joaquín Lavín, determinou, pouco antes da segunda jornada de protestos por todo o país, que as escolas tomadas por estudantes antecipassem as férias de meio de ano. Ele próprio admitia que eram 206 unidades apenas na região metropolitana de Santiago.
“O ano escolar significa um certo número de horas de classes que devem ser respeitadas. Está em jogo também o subsídio que têm de receber os colégios e seus mantenedores”, ameaçava, indicando também que os estudantes teriam aulas até janeiro para repor o atraso caso não respeitassem a medida.
A resposta foi simples. Dois dias depois, o Chile assistiu à sua maior manifestação em quase três décadas. Em um protesto bem humorado, os alunos sugeriram que Lavín tomasse “o caminho da praia”, uma alusão a um pedido de demissão.
Secundaristas e universitários consideram que o ministro não tem mais condições de negociar uma solução para a crise. “É uma jogada política extremamente maquiavélica. Não resolve. É má política. (Nós) nos opomos a isso, assim como os estudantes secundários, afetados por essa medida, recusaram cumpri-la e seguem mobilizados”, afirma Dantas.
Piñera assumiu a negociação em pronunciamento em cadeia de rádio e TV na última semana. Anunciou um pacote de medidas no valor de US$ 4 bilhões (R$ 6,3 bilhões) para tentar encontrar uma solução. Prometeu aumentar o número de bolsas aos mais pobres e reduzir os juros de financiamento das universidades.
Não se comprometeu, no entanto, com as causas centrais: o fim da municipalização, ou seja, dar um novo caminho ao ensino em 40% das escolas do país; acabar com o sistema que dá ao país uma formação desigual e voltada exclusivamente ao mercado, deixando de lado a formação cidadã; e a estatização do ensino universitário. Como Bachelet em 2006, Piñera corre o risco de ver o movimento crescer.
“Há diferentes visões de como deve ser a educação. Há que se abrir a todas essas visões, e que se realize um plebiscito para definir qual a visão que vai prevalecer. Não pode seguir o que se vê hoje em dia, que é um governo que quer impor sua visão a todo o resto da sociedade”, pondera Gajardo.

Por João Peres, na Rede Brasil Atual.

Aquecimento: guia para os perplexos

Discussões sobre o aquecimento global geram posições bastante polarizadas. Uma das causas, fora a manipulação da opinião pública por grupos de interesse, é uma certa confusão com relação a fatos básicos sobre a ciência do clima.
1189 300x211 Aquecimento: guia para os perplexos
Por isso, apresento um breve resumo do que sabemos e do que não sabemos a respeito. Claro, o espaço aqui permite apenas que toque em alguns dos pontos mais importantes. Mas espero que ajude.
1) A Terra é um sistema finito, que recebe a maior parte de sua energia do Sol. Outra fração vem do decaimento de isótopos radioativos e da liberação de calor do núcleo.
2) O Sol emite radiação principalmente no espectro visível, correspondendo à cor amarela. Parte da radiação é refletida ao espaço e parte é absorvida e refletida perto da superfície. Um carro, estacionado sob o Sol com as janelas fechadas, fica bem mais quente.
3) A retenção do calor se dá devido a certos gases, responsáveis pelo efeito estufa: vapor d’água, dióxido de carbono, metano e ozônio. Sem a ação deles, a Terra seria 33 graus Celsius mais fria.
4) Nos últimos cem anos, a temperatura global aumentou em 0,74 grau Celsius. O nível do mar aumentou uns 20 centímetros.
5) Esses dados não estão em disputa. O que é controverso é a causa dos aumentos: natural ou antropogênica, ou seja, causada pela atividade humana.
6) A Terra passou por muitos períodos de aquecimento no passado. Evidências extraídas de amostras de gelo na estação russa Vostok, na Antártica, permitiram que se estabelecesse uma relação direta entre o aumento da concentração de gás carbônico na atmosfera e a temperatura nos últimos 400 mil anos. As temperaturas máximas correspondem a uma concentração do gás de 280 partes por milhão (ppm).
7) Esse número deve ser comparado com a concentração medida nos últimos 50 anos, que mostra um crescimento linear de 310 ppm (1958) a 385 ppm (2008), bem acima do máximo nos períodos de aquecimento no passado. Este aumento está diretamente relacionado com o aumento da população mundial e do consumo de combustíveis fósseis, fontes do gás.
8) A Terra passou por recentes flutuações regionais de temperatura; um ligeiro aquecimento na Idade Média (entre os anos de 905 e 1250) e um ligeiro resfriamento (Pequena Idade do Gelo) que afetaram a região do Atlântico Norte. A variação de temperatura foi de 0,2 grau.
9) O Sol tem um ciclo natural de 11 anos em que sua irradiação oscila periodicamente. Quando o Sol está mais ativo, é de esperar que a Terra aqueça. Contudo, não existe uma correlação direta entre o ciclo solar e o clima terrestre. Os resultados parecem contradizer a expectativa: mesmo que a última década tenha sido a mais quente nos últimos cem anos, o Sol tem ficado bem calmo, estando com seu ciclo atrasado.
Mesmo que a Terra tenha passado por períodos de aquecimento e resfriamento em seu passado, o aquecimento dos últimos cem anos está relacionado com uma maior concentração de gases poluentes na atmosfera e uma maior taxa de desmatamento. Esta é a conclusão da maioria dos cientistas e das academias de ciência em todo o globo.
* Marcelo Gleiser é físico.
** Publicado originalmente pelo jornal Folha de S. Paulo e retirado do site IHU On-Line.

TERRAMÉRICA – Criatividade na crise japonesa

As decisões energéticas que forem tomadas após o desastre nuclear de Fukushima engendrarão uma nova corrente na história, afirma neste artigo o filósofo budista japonês Daisaku Ikeda.

Tóquio, Japão, 18 de julho de 2011 (Terramérica).- O espírito humano possui uma qualidade extraordinária: a capacidade de abrigar esperança mesmo na crise mais devastadora. A demonstração deste potencial é a maneira como as pessoas estão respondendo à catástrofe sísmica que assolou o Japão em 11 de março deste ano. Após o terremoto e posterior tsunami, pessoas de todas as partes do mundo expressaram à população japonesa sua solidariedade, somando-se às tarefas de resgate e colaborando com incontável ajuda humanitária, tanto material quanto espiritual.
Nosso povo jamais esquecerá essa sentida reação. Em cada instante do longo processo de recuperação teremos presente nossa dívida de gratidão com as pessoas do mundo inteiro que manifestaram sua boa vontade. O historiador britânico Arnold J. Toynbee é conhecido, entre outras coisas, por sua teoria da relação entre o desafio e a resposta, segundo a qual uma civilização cresce e prospera quando consegue responder com êxito a desafios sucessivos. A luta diante de novos desafios continuará enquanto se desenvolver a história da humanidade.
O povo japonês deve buscar a forma de se levantar e superar os mais complexos problemas gerados por aquela catástrofe telúrica sem precedentes. Quanto maiores são os desafios, mais devemos manifestar o potencial para avançar e encontrar respostas criativas que contribuam para o caudal de sabedoria do gênero humano. Definitivamente, o sucesso desse processo tem suas raízes na fortaleza da comunidade humana.
Muitas pessoas sobreviveram espantosamente ao desastre graças à ajuda de seus vizinhos. Nos dias e semanas posteriores ao sinistro, quando não funcionavam os serviços básicos de comunicação, eletricidade, água e gás, foram as plataformas de vizinhos e os vínculos de apoio entre concidadãos que proporcionaram meios para subsistir. Conheço inúmeras vítimas que, apesar de perderem seus seres queridos, casas e meio de vida, dedicaram-se nobremente a ajudar outros e a trabalhar pela recuperação de sua terra, compartilhando o que possuíam e colocando toda sua energia na assistência aos demais.
Qualquer pessoa se sente invadida de emoção e admiração diante do esplendor dessa humanidade que brilha em momentos de crise. Vimos tais atos nos centros comunitários da rede budista Soka Gakkai, que abrimos nas regiões afetadas para abrigar as vítimas imediatamente após o terremoto. Apenas transcorrido o desastre, apesar de a rede viária que unia as áreas devastadas a Tóquio ficarem severamente interrompidas, nossos voluntários de Niigata, na costa noroeste, conseguiram chegar com elementos de ajuda buscando uma série de rotas alternativas.
Eles sofreram terremotos de grande magnitude em 2004 e 2007, por isso compreendiam a dor e as necessidades dos sobreviventes. Durante toda a noite prepararam provisões e elementos essenciais, como água, bolas de arroz e outros alimentos de emergência, geradores elétricos, combustível e banheiros portáteis, e conseguiram entregar tudo no menor tempo possível. Me contaram que foram levados pela gratidão à ajuda recebida na época dos terremotos em Niigata: “Foi tanta gente que nos ajudou que agora cabe a nós fazer tudo o que pudermos”.
O sofrimento provocado por um terremoto é atroz. Contudo, qualquer que tenha sido o lugar onde essas tragédias ocorreram – o terremoto de Sumatra em 2010, o maremoto no Oceano Índico de 2004, o tremor de terra em Sichuan, na China, em 2008, ou o do Haiti, em 2010 – sempre emergiu no terreno a solidariedade, a valentia e o altruísmo de cidadãos dispostos a agir em conjunto para ajudarem-se mutuamente. Naturalmente, as operações de assistência por parte das autoridades são indispensáveis nas tarefas de resgate e reconstrução.
No entanto, ao mesmo tempo, fica documentado que é a cooperação entre os integrantes de cada comunidade que pode oferecer uma mão salvadora aos que sofrem o impacto dos desastres e ficam submetidos a condições de extrema vulnerabilidade. A rede de cidadãos, que dia após dia interagem, cuidando-se e alimentando-se mutuamente, desempenha um papel fundamental na reconstrução. As associações comunitárias são imprescindíveis para se alcançar o tipo de segurança humana que nada pode quebrar, nem mesmo a calamidade mais extrema.
Nossa resposta aos trágicos desastres deve ser a de extrair um valor perene. Por um lado, isto significa que devemos refletir profundamente sobre o significado da felicidade autêntica. Ao mesmo tempo, devemos examinar nossa visão do futuro da humanidade, em especial a delicada questão da política energética. Assim como o desastre de Chernobyl, em 1986, chamou à reflexão, o colapso da central nuclear de Fukushima exerce um enorme impacto na opinião pública mundial.
Embora a opção que cada nação adotar seja diferente, não resta dúvidas de que as escolhas feitas engendrarão uma nova corrente na história, como a urgente transição para novas fontes renováveis de energia e o desenvolvimento de tecnologias mais eficientes que promovam a economia e preservem os recursos. A criação de uma sociedade sustentável exigirá um olhar capaz de pôr freio aos excessos da cobiça e de transformar sabiamente esses impulsos para propósitos mais elevados.
Espero que sejamos capazes de encontrar uma resposta que congregue toda a sabedoria humana para que possamos recuperar nossos meios de vida, nossa sociedade, nossa civilização e, como coroamento de tudo isso, possamos reconstruir o coração humano.
* Daisaku Ikeda é um filósofo budista japonês dedicado à promoção da paz mundial e presidente da Soka Gakkai Internacional (SGI). Para saber mais sobre o trabalho humanitário da SGI em relação ao terremoto, visite o site www.sgi.org/es. Direitos exclusivos IPS.
Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação dos Programas das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e para o Desenvolvimento (Pnud), realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde.

Alergia ao bronze

A crítica e o veto aos bustos, que a seu modo ornam alguns recantos da cidade de São Paulo, traz de volta uma história triste de conflitos da metrópole com seus monumentos. Não só na pilhagem de placas de identificação nos depenados pedestais do Largo do Arouche, mas também no roubo de bustos de eminentes figuras, como o da pianista Antonietta Rudge, na Praça Portugal, obra do escultor Luiz Morrone. Ou o de Goethe, na Praça Dom José Gaspar, obra de Tao Sigulda. O vandalismo deixou sua marca na destruição do anjo de alumínio e cerâmica esmaltada e policromada que o artista plástico Fúlvio Pennacchi esculpira para o túmulo de sua família, no Cemitério da Consolação. Nem tem faltado a intolerância político-ideológica no trato das obras de arte nos espaços públicos. O Monumento aos Heróis da Travessia do Atlântico, bela obra de Ottone Zorlini, homenagem aos pilotos italianos Del Prete e Pinedo por sua temerária viagem de avião, em 1927, foi removido da beira da Guarapiranga para a Av. Brasil e escondido no meio de arbustos, para finalmente retornar ao bairro de origem, sob acusação de ser um monumento ao fascismo, quando é, na verdade, obra de arte. Motivação oposta, mas do mesmo gênero, alcançou a escultura de Flávio de Carvalho em homenagem ao poeta García Lorca, parcialmente destruída por uma bomba em 1969, "acusada" de comunismo, e posteriormente restaurada.
Paulo Liebert/AE
Paulo Liebert/AE
Diante da São Francisco, busto de Álvares de Azevedo ‘sequestrado’ por estudantes
Nem o amor escapou da reacionária aversão à mensagem dos monumentos. A escultura de homenagem a Olavo Bilac, O Beijo Eterno, obra de William Zadig encomendada pelos estudantes da Faculdade de Direito, teve que ser removida da esquina da Av. Paulista com a Rua Minas Gerais. Os vizinhos incomodaram-se com a suposta indecência do beijo de um europeu nu numa índia nua. Alternou descansos no depósito da Prefeitura com permanências de obra de arte mal-amada em diferentes lugares da cidade até ser sequestrada pelos estudantes do XI de Agosto e colocada a salvo no território livre, diante da faculdade. Ali, sequestrado e salvo pelos mesmos estudantes, um busto de Fagundes Varela passa por ser de Álvares de Azevedo, ambos poetas e ex-alunos da academia.
Nestes dias, ao recusar um busto de bronze para uma das praças da cidade de São Paulo, a Comissão de Gestão de Obras e Monumentos Artísticos em Espaços Públicos questionou o gosto dos que, por esse meio, expressam menos o que é belo e mais o que julgam justo. Não deixa de ser controvertida a sentença de que "pontuar praças e canteiros centrais da cidade com bustos e cabeças (...) nada mais representa que poluir a paisagem". Além do que, "não se pode ficar preso a uma ideia do século 19", como esclareceu a presidente da comissão. Na proclamação desse veto, fixaram norma, mas omitiram-se seus autores em relação a outros marcos "poluentes" que vêm sendo incorporados ao cenário da cidade sem que fique claro o que têm a ver com ela e menos ainda sem que seus patronos levem em conta a concepção do espaço que preside a sua ocupação.
O notório mau gosto dos símbolos das entidades de serviços, geralmente colocados nos locais de entrada das cidades, não foi, neste caso, tema de objeção. Do mesmo modo, a colocação de Bíblias de alvenaria em locais públicos, edificadas para exibir um versículo e difundir os valores de uma religião determinada, não entra no elenco do questionamento agora adotado. Prosaicos monumentos que não fazem jus à beleza poética do livro sagrado, até porque a Palavra se propaga no púlpito, no refinamento da retórica, e não no cimento da idolatria. Por outro lado, imagens de santos e ermidas têm sido erguidas em espaços públicos em nome de outra religião, em conflito com o fato essencial de que no catolicismo a imagem não se divorcia do espaço sagrado do culto. É anômala manifestação de fé relegá-las ao profano de lugares de trânsito e até de uso antirreligioso, desprovidas do respeito que lhes corresponde. No fundo, uma guerra religiosa entre alguns, que é também de alguns contra todos. Maneira pobre de pensar e praticar a riqueza das religiões.
A insistência em usar o espaço público para a implantação ilegal de marcos e monumentos de proselitismo religioso conflita abertamente com nossa tradição republicana, do Estado não confessional, conquista fundamental em nome da pluralidade e da liberdade das crenças, que devem ser praticadas nos recintos próprios, como afirmação de um direito pessoal e privado. Os que abusam e os que permitem o abuso, por demagogia eleitoreira ou ignorância, não se dão conta do caráter antidemocrático dessas profanações, que corroem, justamente, os fundamentos da liberdade religiosa de que gozam seus autores.
Mesmo no pedido para colocar uma escultura numa praça, em nome de um ideário particular, seja ele político, literário ou religioso, há ampla margem de dúvida quanto ao que com o gesto se pretende: se afirmar a particularidade e nela a recusa do reconhecimento da universalidade que há no pluralismo das ideias e das artes ou se afirmar o cosmopolitismo que deveria ser característico da democracia urbana. É problemático constatar que, em cidades como São Paulo, os particularismos estejam cada vez mais empenhados numa guerra de conquista territorial e simbólica para proclamar os próprios valores e não para proclamar a precedência da diferença como direito e virtude civilizadores. Ao invocar a inferioridade estética dos bustos e sua obsolescência histórica como meio de exaltação da memória, a Comissão de Gestão na verdade joga no mesmo terreno dessa crescente intolerância.
Há algum tempo, ouvi sábia referência à questão do belo na cidade, justamente num debate sobre a ocupação de espaços públicos por obras de arte. Tratava-se de um debate no Centro Cultural Banco do Brasil sobre grafite e grafitagem. Grafiteiros defendiam-se das acusações quanto à suposta inferioridade estética de sua arte chamando a atenção para a pobreza das obras de arte de convenção que podem ser vistas em praças e locais públicos da cidade.
Nesse sentido, ao se manifestar sobre o caráter ultrapassado do busto como meio de expressão visual dos sentimentos dos que por meio deles querem perpetuar a memória de alguém, a comissão, sem a devida ênfase na questão subjacente e mais fundamental, chamou a atenção para o imobilismo estético da arte do busto, aliás, não obstante, a seu modo bela e não raro comovente, ainda que o tempo a tenha tornado ingênua.
Indiferença branca. Desse mal não padecem os grafiteiros, quase compulsoriamente criativos e inovadores porque devotados a uma arte que, infelizmente, padece das limitações de tudo que é sazonal e temporário. Não faz muito, frustrei-me ao visitar determinado recanto da cidade, onde vira belo e expressivo grafite que contracenava com uma touceira de capim, nascida oportunisticamente numa rachadura da calçada onde o pó acumulado e a umidade deram a uma semente trazida pelo vento o privilégio de germinar. O grafiteiro anônimo compreendeu o milagre daquela anômala invasão do pavimento e no muro ao lado, em preto, pintou uma solitária mangueira de água que, generosa, irrigava imaginariamente a touceira, manipulada por um jardineiro invisível, livrando-a da solidão e enchendo de poesia um canto irrelevante da cidade. Frustrei-me porque já não encontrei a grafitagem: alguém caiara a parede para restituir-lhe a indiferença branca da falsa limpeza de um muro sem imaginação. A touceira ali ao lado definhava, perturbando com seu verdor decadente o cinzento sujo do cimentado e seu invisível e autoritário poderio.
Em nossas grandes cidades, sobretudo São Paulo, o diálogo e a composição harmônica dessas obras com o cenário envolvente é pobre e, não raro, uma gritante desafinação. Aqui, prospera o que o antropólogo americano Oscar Lewis, em seus estudos sobre o México, definiu como cultura da pobreza. Uma cultura de colagem de restos de materiais para compor a habitação residual dos que a vida privou de tudo, até dos meios de fazer da morada uma expressão da alma e do imaginário. Essa cultura tem se estendido aos espaços públicos, na localização dos monumentos.
Nossas grandes cidades não têm uma política cultural de fomento à inovação na obra de arte destinada aos espaços públicos, como se viu justamente neste caso da recusa: uma entidade particular mandou fazer a escultura sem entender-se previamente com o setor da Prefeitura que cuida do assunto. Tampouco têm uma política de harmonização do espaço público com o sentido e a proposta das obras de arte nele depositadas. Monumentos e obras de arte nesses espaços têm a função de desconstruir criticamente a banalidade do cotidiano e reeducar libertadoramente seus usuários. São os cenários das virtualidades criativas e educativas do monumento na afirmação e moldagem do espírito da sociedade, como espelho de identidade na pluralidade estética, social e histórica. Sua falta priva a cidade do decoro próprio da pauta de civilidade que é o grande legado do urbano e da cidade.

*JOSÉ DE SOUZA MARTINS É PROFESSOR EMÉRITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO E, AUTOR, ENTRE OUTROS, DE UMA ARQUEOLOGIA DA MEMÓRIA SOCIAL (ATELIÊ EDITORIAL, 2011).

14 de jul. de 2011

Na Europa, a opção da moratória


Surpresa: fantasma da revolta política e agravamento acelerado da crise financeira levam governantes a considerar hipótese vista há pouco como insana

Ameaçada pela falência financeira e pela desmoralização completa da política institucional, a Grécia continua no centro do palco europeu — mas acaba de haver uma grande mudança no script de seu drama. A União Europeia (UE), que até o fim de semana exigia apenas sacrifícios dos gregos e respeito aos interesses dos credores, passou a trabalhar com outra opção, a partir de segunda-feira (11/7). Ela não está sendo, nem será, chamada por seu nome verdadeiro, mas é uma moratória parcial da dívida do país, seguida de renegociação.
Por enquanto, é apenas uma hipótese, e o desfecho poderá se dar sexta-feira (15/7), numa provável reunião de chefes de Estado. Mas o simples fato de ser considerada emite um sinal claro, muito positivo e que deveria ser entendido também no Brasil. Tentar superar as novas turbulências financeiras cortando direitos sociais e serviços públicos não é a única opção – e está se tornando insustentável.
O alarme que sacudiu a Europa soou na manhã de segunda-feira, quando a crise grega começou a contagiar Espanha e… Itália. As autoridades da terceira maior economia do continente tiveram dificuldades ao rolar sua dívida. Para fazê-lo, foram obrigadas a elevar as taxas de juros a um patamar recorde, desde a adoção do euro: 3 pontos percentuais acima das oferecidas pela Alemanha. A espiral de notícias desagradáveis expandiu-se com rapidez. Na noite de terça, a Moody’s, uma das grandes agências globais de análise de riscos, classificou como “lixo” [junky] a dívida da Irlanda (a de Portugal já fora rebaixada à mesma categoria uma semana antes). Na manhã desta quarta, até a França foi obrigada a elevar ligeiramente seus juros.
Na Itália, a reação do governo Berlusconi foi a mais previsível: um pacote de corte de serviços públicos e privatizações. Mas, ainda na segunda à noite, algo novo ocorreu, durante uma reunião de ministros de Finanças da UE. O encontro, realizado em Bruxelas, durou oito horas, muito mais que o previsto. Embora inconclusiva e repleta de nuances, como apontou fina análise da revista The Economist, a nota emitida ao final já não afasta a hipótese de uma moratória parcial da Grécia. Aponta, nas entrelinhas, uma divisão. Os ministros registram que o Banco Central Europeu (BCE) – o mais feroz guardião dos interesses dos credores – manifestou-se contra tal possibilidade. Mas não assumem automaticamente a posição do banco, algo inédito desde o início da crise grega.
A indecisão da UE é provocada por um risco concreto e uma divergência de fundo. O perigo imediato é o de um “acidente de crédito”, ou credit event. Os enormes sacrifícios impostos pelo governo grego à sua sociedade há duas semanas não convenceram os dirigentes europeus, até o momento, a liberar os recursos prometidos para o “resgate” do país. Dos 110 bilhões de euros prometidos pela UE (e necessários para evitar o risco de insolvência nos próximos dois anos), apenas um décimo foi liberado.
A possível moratória em debate não é ampla quanto soluções
vislumbradas  por economistas radicais. Mas seria um alívioderrotar políticas de ataque aos direitos sociais bem no ninho da serpente
O descumprimento do compromisso mantém o país sujeito a uma fuga de capitais, conforme queixou-se o primeiro-ministro George Papandreou, numa carta aberta dirigida, segunda-feira, aos ministros de Finanças. E ela poderia desencadear algo incontrolável. Parte dos credores detém títulos [“CDS” (credit-default swaps)] com cláusula de proteção contra insolvência. Se a fuga de capitais levar o Tesouro grego a não honrar parte de suas dívidas, estes credores poderão voltar-se contra o próprio sistema financeiro, requerendo o pagamento do seguro. A consequência seria uma quebradeira em dominó, de extensões desconhecidas.
Ainda mais revelador – embora invisível nos jornais brasileiros – é o desacordo crescente entre os próprios economistas do mainstream. Parte deles reconhece que as dificuldades financeiras dos Estados não se devem a suposto desperdício. São consequência direta dos enormes recursos despejados na economia (em particular nos bancos…), para evitar que a crise iniciada em 2008 desencadeasse uma depressão semelhante à dos anos 1930. Portanto, a tentativa de enfrentar o problema cortando gastos sociais e preservando os lucros financeiros não se apoia em nenhum critério técnico. Sua única base é o imenso poder político da pequena oligarquia que se enriquece às custas de juros, como escreveu há poucas semanas Paul Krugman, Nobel de Economia.
Em um editorial e dois artigos [1 2] recentes, The Economist destaca os absurdos e os riscos implícitos em tal política. Além de não ter sido ainda afastada, a ameaça de depressão é reavivada por governantes que adotam atitudes muito parecidas às da Grande Depressão. A revista adverte: à época, “poucos observadores imaginavam a catástrofe à sua frente. Era difícil conceber a ideia de que os dirigentes conduziriam suas economias para um desastre evitável. E no entanto, ele ocorreu”.
 * * *
 Como a reunião dos ministros de Finanças da UE foi inconclusiva, a decisão sobre a Grécia ficou postergada para um encontro extraordinário dos chefes de governo, que ocorrerá provavelmente na sexta-feira. A possível moratória em debate não é, evidentemente, tão ampla quanto as soluções vislumbradas por economistas mais radicais, como Mike Weisbrot e James Kenneth Galbraith (ler ponto IV de nosso texto sobre a crise europeia). Debate-se agora duas medidas parciais: impor, aos bancos privados credores da Grécia, o prolongamento de parte da dívida; e oferecer à Grécia recursos para que resgate com grande desconto, parte dos títulos de sua própria dívida nos mercados secundários, onde são cotados como “lixo”. Uma vez permitida aos gregos, a mesma solução seria reivindicada imediatamente, antecipaThe Economist, por portugueses, espanhóis e irlandeses
Ainda que limitada, ela abrirá, se assumida, uma janela de sensatez em meio a um ambiente insano. Adotadas a partir da Europa, há cerca de um ano, as políticas de cortes de gastos públicos espalharam-se pelo mundo, graças à força que os especuladores financeiros adquiriram em quase todos os Estados. Nos EUA, o Partido Republicano apoia-se em ideologia semelhante para impor corte de programas sociais e manter isenções de impostos que beneficiam os ricos. No Brasil, o governo de Dilma Roussef partiu, em seus primeiros seis meses, para um vasto “contingenciamento” de despesas, que tem o mesmo sentido, ainda que mais ameno (há alternativas, como escreveu o economista Amir Khair).
Será um alívio se tais políticas sofrerem uma primeira grande derrota, bem no ninho da serpente.

**Antonio Martins
Outras Palavras