1 de mar. de 2011

O que anda lendo ultimamente?


Da mesma forma que a música de Beethoven é capaz de oferecer ao ouvinte um pouco mais da personalidade arredia do gênio, com a literatura, também passamos a frequentar a cabeça dos escritores, descobrindo o que se passa ali dentro, quer eles queiram ou não. Se qualquer que seja a vida ela já vale a pena, imagine andar pelo mundo, conhecendo-o e conhecendo-se, tendo ao seu lado gente como Jack Kerouac, Eça de Queirós, Erico Verissimo, William Shakespeare, Cervantes, Dante, Chaucer, Dostoiévski ou os goliardos da Idade Média. A literatura é uma dama de muitos séculos que, como uma jovem vampira, está sempre cinematograficamente jovial, adolescendo com uma consciência de espírito que atravessa os séculos, à disposição de qualquer um que goste de ler e que saiba responder à pergunta de Drummond: “trouxeste a chave?”. Se pegarmos de volta o título deste texto, como um laço ou como a língua de um camaleão que se serve – vupt! - de sua comidinha, diga, por favor, o que você anda lendo ultimamente?

Adolescente, fiz parte do Círculo do Livro, que hoje não existe mais, infelizmente. Desde os treze anos me aventurava pela Coleção Vaga-Lume e gostava de Stephen King, Edgar Allan Poe e literatura fantástica. Mas foi um pouco mais tarde, aos vinte e dois, que algo aconteceu: por dias a fio, aguardei pela chegada do “Pequeno guia da literatura universal”, de Luiz Carlos Lisboa, cujo subtítulo é “através de quase duzentos livros que ninguém mais pode ignorar impunemente”. Uau! Me senti como o personagem de Leonardo Di Caprio quando chega à exuberante paisagem principal de “A praia”, filme que nasceu de um romance da literatura inglesa contemporânea, The beach, de Alex Garland. O livro de Lisboa faz parte de minha vida desde então e hoje, aos trinta e sete, encontro nele a mesma alegria que tinha quando moleque, as franjas balançavam estrada afora, como uma cortina de contas de vidro de uma república estudantil sempre em festa.

O ”Pequeno guia da literatura universal” é uma viagem literária, asseguram os editores, “pelo universo da fantasia, da inteligência e da beleza”. Sem dúvida. Dentre as obras selecionadas pelo autor, há romances, contos, peças de teatro, livros de poemas, além de ensaios, memórias, crítica e história. Com um guia como esse em mãos, o que você quer ler? Um romance? Que tal “Martin Eden”, de Jack London, “A metamorfose”, de Kafka, “O homem que foi Quinta-feira”, de Chesterton, ou “Fogo morto”, de José Lins do Rego? Eles estão enfeixados entre Camus, Hemingway, Cortázar e outros. Teatro? Shakespeare, Sófocles, Tchekhov, Brecht ou Nelson Rodrigues? Prefere poesia? Antiga ou moderna? Comece por Homero, Ovídio, passe por Bashô, Blake, Whitman, Bandeira e conheça o vasto mundo de Drummond - não se esqueça da chave. Se quiser, comece por Drummond e, de volta para o passado, chegue ao vasto mundo de Homero. O que mais? Leia o “Antigo Testamento”, “A República”, de Platão, “O Livro tibetano dos mortos”, “A Vida dos doze césares”, de Suetônio, a “Autobiografia”, de Benjamin Franklin, Nietzsche, Huxley, Nabuco e até mesmo Wilson Martins, autor do monumental trabalho - de dedicação e pesquisa - que é a “História da inteligência brasileira”.

Por que ler um guia como o de Lisboa? Porque muitos candidatos a leitores, ansiosos por adentrar o mundo da literatura, não sabem o que ler ou por onde começar. Isso acontece mesmo com aqueles que estão à iminência dos primeiros fios brancos na cabeça, algo que diz muito a respeito de um país que nunca foi um exemplo em se tratando de hábito de leitura e que a cada dia que passa tem menos apreciadores dos livros. Uma pena. Imagine o guia de Luiz Carlos Lisboa nas mãos de quem ainda está adolescendo? É o seu caso? Vamos torcer que sim. Nessa idade é mais fácil criar um laço de convivência entre leitor e livro. É como se, ao saber que seu corpo não precisa de tanto açúcar assim, e sim de mais exercícios, você percebesse que a literatura fará por seu cérebro o que abdominais farão por suas gordurinhas localizadas. Então, o que está esperando? Ao trabalho! Mas, antes, que tal desligar a TV (por favor) e afastar sua mente dos ruídos cotidianos do seu dia? Preste atenção: a leitura não deve ser vista como uma obrigação. Se ao ler você já não mexe seus lábios e nem a cabeça, parabéns, pois o caminho é esse mesmo. Ler requer paciência, algo que é bom ter vida afora. Então, já pensando que talvez sua paciência e concentração estejam prestes a sair por aí, por favor, aproxime-se.

Já pensou a respeito da transitoriedade de seu dia? Já ficou imaginando coisas, como, por exemplo, ser o único a prestar atenção em uma pedrinha triste e solitária, esquecida no jardim de sua casa? Não? Tudo bem. Não era nada disso mesmo. O que precisa saber é: há livros que você deveria ler, enquanto ainda é adolescente, pois eles vão crescer com você. “É como plantar uma árvore na juventude”, disse certa vez o crítico Lionel Trilling, “cada ano acrescenta um novo nó de crescimento no significado e o livro é um pouco como a árvore que vai amadurecendo”. É uma bela metáfora e seria bom que ela fizesse parte da sua vida. Por isso, mais uma vez, o que anda lendo?

E mais: será que anda lendo corretamente? Há algumas atitudes que, zás-trás, farão bem a você. Por exemplo: não há nenhum problema em se ler um livro deitado na cama ou no sofá, não é? Se estiver cansado, depois de ter trabalhado o dia todo, estudado à noite, e mesmo assim você ainda encontra tempo para um livrinho, protelando o sono merecido, parabéns. Sinceros. Nesse caso, por que não se senta, toma um cappuccino e, com uma luz apropriada sobre o livro, ouve sua banda predileta nos fones do mp3 e se debruça sobre a literatura? Vale a pena? Claro!

Em 1973, antes de escrever o “Pequeno guia da literatura universal”, Luiz Carlos Lisboa publicou “Tudo o que você precisa ler sem ser um rato de biblioteca”. Subtítulo? “Roteiro completo dos livros básicos para a sua vida”. São duas obras que versam a respeito do mesmo tema: livros, grandes livros. Como o autor chegou até eles? Quais foram seus critérios de escolha? “Eventuais sugestões de acréscimos, subtrações, fatais em trabalhos deste gênero, poderão compor outro livro, de um outro autor”, diz Lisboa, “não este, resultado de preferências confessadamente pessoais, limitado e omisso, talvez, mas em todo caso animado da esperança de ser útil”.

A utilidade é um bom critério de escolha, não é? Lisboa chegou a essa lista porque ele é um leitor voraz, um rato de biblioteca, como sugere o título de seu livro. Por que não confiar em alguém como ele? O único problema em relação a esses dois guias é que estão fora de catálogo, mas os sebos estão on-line, esperando por você, para o que der e vier. De qualquer forma, o autor não parou por aí e, em 2001, publicou mais dois guias, ambos com o mesmo título de seu primeiro estudo, “Tudo que você precisa ler sem ser um rato de biblioteca”, mas divididos em dois tomos: “guia do melhor da literatura brasileira” e “guia do melhor da literatura internacional”. O estômago roncou? Sim, são obras para abrir o apetite do leitor para o que virá em seguida. O menu? Pratos como: “Quincas Borba”, “Presença de Anita”, ” A menina morta”, “Grande sertão: veredas”, “O encontro marcado”, “As mil e uma noites”, “Dom Quixote”, “Robinson Crusoé”, “Orgulho e preconceito”, “O som e a fúria”, “Viagem ao fim da noite”, “O senhor dos anéis”, “Rei Lear” e outros textos, alguns curiosos, como “O ursinho Puff”, de A. A. Milne.

Outros autores, claro, preocuparam-se em abrir caminho para novos leitores. É o caso do prestigiado Harold Bloom, um vovô norte-americano dono de sobrancelhas horripilantes, autor de “Como e por que ler”, obra que, curiosamente, é lembrada por Lisboa em sua mais recente lista com o melhor da literatura estrangeira. Bloom é um leitor acima de tudo e, na altura de seus quase 80 anos, vem publicando livros que sacodem os estudos literários, como ocorreu com “O cânone ocidental” (1995) e, na virada do século, com “Shakespeare – a invenção do humano” (2000).

Em “Como e por que ler”, Bloom debruça-se sobre textos que não devem permanecer edulcorando a estante e, sim, vivos na imaginação dos leitores. Citando Virginia Woolf, ele estabelece seu objetivo: “não devemos desperdiçar nossas forças, lendo de modo errático e desavisado”, sugere a Clarice Lispector inglesa, e Bloom complementa: “portanto, enquanto não amadurecermos como leitores, algum aconselhamento sobre leitura pode ser-nos útil, talvez, até mesmo essencial”. Mais uma vez a utilidade. Tsc, tsc. Já passou da hora de lembrar que literatura não é utilidade em si, como discutem muitos autores por aí; literatura é antes um prazer irremediável dentre aqueles que gostam de ler ou, como diz Bloom, um “sofrido prazer”, ou seja, algo que “articule uma plausível definição do Sublime”. E o que isso significa? Ele explica: “existe o Sublime alcançado através da leitura, ao que parece, a única transcendência secular que é possível, senão por aquela transcendência ainda mais precária que denominamos ‘amor, paixão’”. Em outras palavras: “leia plenamente, não para acreditar, nem para concordar, tampouco para refutar, mas para buscar empatia com a natureza que escreve e lê”, ele diz. Bacana, não é?

Bloom divide seu livro em contos, poemas, romances e somente três peças: “Hamlet”, “Hedda Gabler” e “A importância de ser prudente”. Bloom é mais austero que Lisboa, mas sua lista não contém só autores clássicos; mais do que Shakespeare e Milton, há muitos escritores rebeldes, por assim dizer, cuja verve mira a juventude e suas linhas tortas, como Coleridge, Tennyson, Blake, Hemingway, e, como não poderia deixar de ser, textos em cujo horizonte de leitura encontra-se o leitor juvenil, como são os casos de “O Horla”, de Maupassant, “A canção de mim mesmo”, de Whitman e “Moby Dick”, de Melville. Aqui, a despeito de toda violência e barbárie, ainda há lugar para “Meridiano de sangue”, de Cormac McCarthy, autor de “Onde os fracos não têm vez”, cuja adaptação para o cinema foi muito bem conduzida pelos irmãos Coen. Como você pode imaginar, “Como e por que ler” já é um clássico instantâneo de nosso tempo e é um livro que fala de outros livros.

Vamos deixar a não-ficção de Bloom e partir para a ficção de Dai Sijie, que escreveu “Balzac e a costureirinha chinesa”, romance que cabe neste texto por dois motivos: além de ser uma narrativa que fala de livros que devem ser lidos na juventude, também traz uma história admirável, amarga e bela. Durante a Revolução Cultural chinesa, opressão e intolerância andam de mãos dadas e quem paga por isso são estudantes, professores, intelectuais e rebeldes de toda espécie, do mais simples operário ao camponês mais arredio. Dois rapazes vão parar numa aldeia e passam por uma espécie de reeducação. São escravizados e sofrem todo tipo de humilhação. Suas vidas resumem-se a um universo em preto & branco e eles não têm nenhuma razão especial para viver. Tudo muda quando descobrem uma valise cheia de romances ocidentais proibidos pelo regime do presidente Mao. Estão lá Balzac, Dumas, Flaubert, Baudelaire, Tolstói e outros autores que dão cor à vida dos dois estudantes e da costureirinha do título, que além de ser uma camponesa humilde e viçosa, é também o secreto objeto de desejo dos dois.

Aos poucos, com os livros, ambos começam a abrir a cabeça da costureirinha, mas não literalmente, claro, transformando-a. O mundo dela começa a mudar por causa de romances como “O conde de Monte Cristo”, de Dumas, “O pai Goriot”, de Balzac, “Jean-Christophe”, de Romain Rolland. “Até aquele encontro roubado com Jean-Christophe”, diz o narrador, amigo de Luo, “minha pobre cabeça educada e reeducada, simplesmente ignorava que se pudesse lutar sozinho contra o mundo inteiro”. Para cada um deles, esses romances flamejantes oferecem o mesmo sentido do Sublime ressaltado por Harold Bloom alguns parágrafos atrás. Por esse motivo, pela descoberta de que a vida não é só comida e peleja, o final do romance é surpreendente e, lendo-o, você há de concordar, não poderia ser outro o destino da costureirinha.

Estamos chegando ao fim, mas, antes, não poderia deixar de mencionar dois títulos que, em busca de formar leitores, merecem sua atenção. Em “Como e por que ler os clássicos universais desde cedo”, Ana Maria Machado, tomando como base sua própria convivência com os livros, ressalta a importância de crescer com textos que, como uma bagagem cultural imprescindível, serão levados vida afora pelo leitor. “Prefiro chamar a atenção para o fato de que esses diferentes livros foram lidos cedo, na infância ou adolescência”, diz a autora, “e passaram a fazer parte indissociável da bagagem cultural e afetiva que seu leitor incorporou pela vida afora, ajudando-o a ser quem foi”.


Já “Mistérios da literatura”, de Daniel Piza, que recorre à biografia do autor para discorrer sobre Poe, Machado, Conrad e Kafka, é outro singular esforço ao encontro da formação de leitores. Minha edição de “Mistérios da literatura” foi autografada pelo autor e gostei muito do que ele escreveu. Serviria a você, leitora e leitor, se estivessem no meu lugar: “Para Renato, este livro que eu queria que tivesse mais leitores como você”. Desconfio de que Piza escreva essa dedicatória a todos os leitores de seu livro, mas se chegou até aqui, até o final deste texto, talvez você perceba que essa dedicatória sugere o sentido de tudo que está em jogo aqui. A literatura é uma dama e, como tal, deve ser cortejada por todos que a querem bem.

Renato Alessandro dos Santos, 37, é professor. Ele edita o site tertuliaonline.com.br .


PARA SABER MAIS

Pequeno guia da literatura universal
Luiz Carlos Lisboa

Como e por que ler
Harold Bloom

Balzac e a costureirinha chinesa
Dai Sijie

Como e por que ler os clássicos universais desde cedo
Ana Maria Machado

Mistérios da Literatura
Daniel Piza

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