22 de mar. de 2011

Lições que o Japão deve aprender com Chernobyl

Por 12 vezes ao mês - é o máximo que os médicos permitem - Serguei Krasikov toma um trem e segue por uma terra de ninguém para assumir seu trabalho em um prédio ao lado do reator número 4, conhecido como "sarcófago". Entre suas tarefas está a de extrair líquido radioativo acumulado dentro do reator incendiado. Isto ocorre quando chove. O sarcófago foi construído há 25 anos em uma situação de pânico, quando a radiação espalhou-se para áreas povoadas após a explosão do reator, que agora está cheio de rachaduras.
A água não pode tocar o que se encontra na parte mais profunda, dentro do reator, onde estão cerca de 200 toneladas de combustível e detritos nucleares fundidos, que queimaram no fundo e endureceram na forma de uma pata de elefante.
Essa massa permanece tão radioativa que os cientistas não podem se aproximar dela. No entanto, há anos, quando conseguiram instalar instrumentos de medição perto dali, obtiveram leituras de 10 mil rem por hora (medida do dano que a radiação causa a organismos vivos), 2 mil vezes mais o limite anual recomendado para trabalhadores da indústria nuclear.
Krasikov, um homem de ombros largos e olhos azuis, trabalha como baby-sitter desse monstro há oito anos. E ficará ali até se aposentar, quando deixará a tarefa para outro homem, que também ali ficará até se aposentar. Questionado por quanto tempo isto deve continuar, Krasikov resmungou: "Cem anos?", arriscou. "Talvez aí, então, já tenham inventado alguma coisa." A morte de um reator nuclear tem um começo, mas não tem fim.
Embora alguns elementos radioativos decomponham-se rapidamente, a meia-vida do césio é de 30 anos e do estrôncio, 29. Os cientistas estimam que levará de 10 a 13 meias-vidas até que a atividade econômica e a vida voltem à região. Isto significa que a área contaminada - determinada pelo Parlamento da Ucrânia como sendo de 38,8 quilômetros quadrados, o tamanho da Suíça - ficará afetada por mais de 300 anos.
Na semana passada, os trabalhadores tentaram freneticamente esfriar os seis reatores na usina de Fuskushima, a 225 quilômetros de Tóquio. Mas é preciso observar a Ucrânia para compreender o imenso tédio e exaustão de lidar com as consequências de uma fusão nuclear. É um problema que ultrapassa as dimensões da vida humana.
Na terça-feira, Volodymyr Udovychenko chegou ao Parlamento da Ucrânia usando camisa púrpura e gravata. Ele é prefeito de Slavutych, que abriga a maioria dos 3,4 mil trabalhadores que continuam empregados na Estação de Energia Atômica de Chernobyl. Muitos não recebem seus salários integrais desde janeiro e o prefeito pediu US$3,6 milhões para pagá-los. "Os líderes do país deram as costas para o problema, acham que Chernobyl não existe", disse. "Mas Chernobyl existe. E aquelas 200 toneladas também."
Visitar Chernobyl hoje é sentir a passagem do tempo. Em Pripyat, cidade-dormitório dos antigos trabalhadores da usina, a pouco mais de 1,5 quilômetro da central nuclear, onde 50 mil pessoas tiveram algumas poucas horas para abandonar suas casas, o papel de parede caiu sob seu próprio peso e a pintura desapareceu das paredes dos apartamentos. O gelo esconde o interior das casas. Numa rua residencial, onde os prédios de apartamentos no estilo soviético predominam, o silêncio é tanto que pode se ouvir uma folha roçar na outra.
O mundo selvagem gradativamente vai se inserindo aí. Anton Yukhimenko, que leva grupos para visitar a zona morta, disse que raposas e javalis selvagens já começaram a buscar abrigo na cidade abandonada e, certa vez, viu um lobo passando silenciosamente a seu lado. Não faz muito tempo, um dos maiores prédios da cidade começou a despencar, suas estruturas apodrecidas por 25 invernos e verões. "Esta é uma cidade que foi tomada pela vida selvagem", disse. "Acho que em 20 anos isto aqui será uma imensa floresta."
As pessoas não têm permissão para avançar além de um espaço de 30 quilômetros distante do reator número 4, mas um fotógrafo e eu conseguimos entrar junto com guias da Chernobylinterinform, uma divisão do Ministério de Emergência da Ucrânia. No posto de controle que leva para a zona de exclusão, há uma pequena estátua da Virgem Maria e uma placa indicando o volume de césio e estrôncio encontrados em cogumelos, peixes e animais de caça.
Em um raio de 9,6 quilômetros começa a zona de reassentamento obrigatório. Um local com árvores queimadas é a marca da chamada Floresta Vermelha, por causa da cor dos pinheiros mortos que foram derrubados em massa e queimados.
À medida que nos aproximamos da usina, o detector de radiação dos guias repentinamente registra 1,5 mil microrem - 50 vezes o normal. No centro de tudo isto está o sarcófago, suas paredes irregulares e corroídas pela ferrugem. Desde o início da década de 90, autoridades da Ucrânia vêm trabalhando em um plano para substituí-lo e, finalmente, deram início ao projeto chamado "Novo Confinamento Seguro", uma arca de aço de 91 metros onde o reator ficará encerrado e isolado pelos próximos 100 anos. O custo estimado é de US$ 1,4 bilhão, a ser pago por nações doadoras. O projeto, que deveria estar concluído em 2005, vem tendo problemas com atrasos e falta de dinheiro.
"Nesse intervalo, a neve do inverno transformou-se em chuva, cuja água penetra no reator, com consequências imprevisíveis", disse Stephan Robinson, físico nuclear que trabalha para a organização ambiental Green Cross Switzerland.
"No inverno, ela congela", disse o físico, que visitou o local na semana passada. "A água se expande e se rompe. Então, talvez, parte do que está dentro se quebre. Uma pequena nuvem pode se soltar por uma rachadura. Se existe água da chuva, isto significa que há uma maneira de ela entrar. E se há um meio de ela entrar, também existe um meio de ela sair."
No entanto, mesmo depois de a nova arca ser construída, Krasikov duvida que será possível pôr fim à longa vigília do reator número 3. "Ninguém sabe o que fazer com o que está dentro", disse. "Haverá trabalho bastante para meus filhos e netos."
À tarde, saindo do local, a luz do sol desaparecia em meio à floresta de pinheiros, um cenário de paz, exceto no caso dos triângulos amarelo e laranja colocados no solo da floresta, alertando para a radiação.
Os trabalhadores saem do local em meio a uma parede de contadores Geiger do tamanho de um indivíduo, cada um aguardando que a máquina faça as medidas e emita o sinal verde, para sair da zona de exclusão e seguir pela estrada destruída. Amanhã, eles retornarão à Estação de Energia Atômica de Chernobyl para um outro dia de trabalho.

Por
Ellen Barry, jornalista do The New Yok Times.
O Estado de S. Paulo, 22/03/11

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